Vale 80 anos: é chegada a hora de acertar a dívida histórica e ambiental com Itabira

No destaque, início do garimpo de minério de ferro em Itabira

Foto: Acervo IBGE

Carlos Cruz

Muito provavelmente a multinacional Vale S.A, que nesta quarta-feira (1) completa 80 anos de fundação, em 1942, por decreto de Getúlio Vargas, criando a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) para explorar a hematita de Itabira do Mato Dentro, no pico Cauê, irá exaltar esse grande feito nas celebrações de aniversário da grande mineradora que virou, uma das maiores (se não, a maior) exportadoras de minério de ferro do mundo.

De fato, a empresa tem muito a comemorar nesta data. E Itabira, o que tem a celebrar?

A criação da então estatal de economia mista se deu por meio do Decreto-lei nº 4.352, de 1º de junho de 1942, no ato oficial de criação que encampou as Companhias Brasileiras de Mineração e Siderurgia S.A e Itabira de Mineração S.A.

Mas para Itabira, é de especial interesse o que dispõe o artigo 9º do mesmo decreto. É que além de isentar a nova empresa de impostos de importação e demais taxas sobre os materiais e equipamentos importados, o decreto de Vargas estabeleceu, pelo parágrafo único desse artigo que, o “Governo Federal entender-se-á com os Estados e Municípios no sentido de não serem aumentados os impostos e taxas que ora incidem sobre as minas, a sua exploração e a exportação de minério.”

Como nada incidia, foi assim que até a instituição do Imposto Único sobre Minerais (IUM), por meio do Decreto-Lei nº 1.038, de 21 de outubro de 1969, Itabira subsidiou com isenção de impostos a criação e o crescimento da Companhia Vale do Rio Doce.

Continuou subsidiando mesmo depois da instituição do IUM, 27 anos após a sua fundação, ao receber migalhas desse imposto considerado extremamente injusto para com Itabira, como bem frisou o poeta Carlos Drummond de Andrade em várias crônicas, com subsídios do tributarista itabirano José Hindemburgo Gonçalves.

E mais: subsidiou mais fartamente o seu desenvolvimento monumental como o seu único fornecedor de minério de ferro (hematita e itabiritos) até o início, em 1985, das operações em Carajás, no estado do Pará. Até então, Itabira só tinha como concorrente a mina de Piçarrão, em Nova Era.

Bairro Campestre, campo do Valério e a serra do Esmeril ainda quase intacta (Foto: Tibor Jablonsky/Ney Strauch-IBGE)

Conflitos permanentes

O poeta itabirano foi quem deu repercussão nacional aos conflitos permanentes de sua cidade natal com a então Companhia Vale do Rio Doce. Fez severas críticas ao sistema tributário injusto que contempla o município com migalhas.

Em sua crônica Só isso, publicada no dia 3 de outubro de 1964, no Jornal do Brasil, portanto cinco anos antes da instituição do IUM, Drummond escreveu que o imposto antes mesmo de ser instituído já se revelava extremamente injusto para com Itabira.

“O produto da arrecadação desse imposto será distribuído entre a União, os Estados e os Municípios, e é claro que não pode ir para Sancho, Martinho e para esse vosso criado. Mas a União terá 10%, o Estado 70% e o Município apenas 20%, o que me parece terrivelmente injusto.”

O poeta lembrou ainda que, para o município, minério “é riqueza que não se recompõe, e com a exploração intensiva se esgota para sempre”.

É assim que Drummond considerou que “os 20% destinados aos municípios – só isso? – em contraste com os 70% atribuídos aos Estados, têm algo de mesquinhamente ridículo, que não pode passar despercebido à sensibilidade municipal de nossos legisladores, na maioria procedentes de pequenos núcleos habitacionais, onde a miséria coletiva definha sob a miséria dos orçamentos”.

Infelizmente, o apelo do poeta por um justo rateio desse imposto, considerado insignificante tanto que foi extinto pela Constituição de 1988, substituído pelo ICMS (que a Vale não paga sobre as suas exportações, por força da Lei Kandir) e pela Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (Cefem), os royalties do minério, ainda não surtiu o efeito esperado, que viria se fizesse justiça tributária e com o resgate da dívida histórica e ambiental com Itabira.

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Sede da Vale

A pracinha do Pará, o grupo Major Lage e a serra do Esmeril, na década de 1980, ainda sem ter sido descaracterizada paisagísticamente pela Vale para extrair itabiritos ( (Foto: Tibor Jablonsky/Ney Strauch-IBGE)

Outra luta de Drummond, também sem resultado, foi pelo cumprimento do que dispõe o Estatuto da nova Companhia, que, pelo seu artigo 2º, estabeleceu que “a cidade do Rio de Janeiro é o domicílio da Companhia para todo os efeitos jurídicos e o lugar da sua administração é a cidade de Itabira.”

Essa determinação estatutária jamais foi cumprida, mesmo com a luta de Drummond e de José Hindemburgo Gonçalves parra que se tornasse realidade.

Em carta ao jornal O Cometa Itabirano, publicada na edição de março de 1981, o poeta contou como foi essa luta pelas páginas do jornal Correio da Manhã:

“O que fiz, isso em outra ocasião, foi esforçar-me, pelas colunas do ‘Correio da Manhã’, no sentido de obter que a Cia. Vale do Rio Doce cumprisse os seus estatutos, transferindo para Itabira a sua sede, arranchada docemente no Rio de Janeiro”, escreveu o poeta, que completou:

“Nessa campanha, por sinal, a artilharia pesada de argumentos, de que me vali, foi fornecida por um valoroso conterrâneo, o José Hindemburgo Gonçalves. Nada conseguimos. É tão comum Itabira perder suas causas e seus direitos!”, registrou o jornalista e poeta Carlos Drummond de Andrade.

A não transferência da sede da Vale para Itabira foi mais uma perda incomparável, pelo que poderia ter significado, caso viesse aqui residir a alta direção da então estatal, criando infraestrutura mais moderna, modificando a realidade socioeconômica e cultural da Cidadezinha Qualquer.

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De como Itabira deixou de ser sede da Vale, conforme reivindicou uma comitiva itabirana em visita ao Catete, no Rio, em 1955

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Drummond escreve sobre um certo José Hindemburgo Gonçalves, tributarista que lutou em prol de Itabira

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Drummond e a mineração

Dívida histórica

Manifestação pela desprivatização da Vale, em frente ao Teatro João Caetano, no centro histórico do Rio (Foto: IBGE)

Tem sido assim, de promessa e mais promessas não cumpridas que a dívida histórica da Vale com Itabira foi se acumulando, sem nunca ser resgatada.

Muitos anos mais adiante, em 27 de abril de 1980, o então poderoso presidente da Vale, o engenheiro Eliezer Batista da Silva (1924-2018) finalmente reconheceu essa dívida histórica, ainda não resgatada, por meio de uma carta enviada aos itabiranos, por ocasião da inauguração do conjunto habitacional Juca Batista, que homenageia o seu pai.

Eliezer Batista da Silva foi presidente da CVRD por duas vezes, a primeira entre 1961 e 1964 – e a segunda de 1979 a 1986. Teve, portanto, tempo de sobra para dar início ao resgate da dívida histórica com Itabira, que ele reconheceu por diversas vezes, mas que ficou só na promessa:

“Itabira, sede histórica da CVRD, não desaparecerá dos anais da Companhia, como também não será relegada a ponto de referência ou índice técnico no desenvolvimento da empresa, assim como, ao esforço de seu trabalhador, o Brasil não dedicará apenas um registro em sua História.”

“A vida das jazidas que ajudaram a financiar os custos de transformação de um país continental será prolongada com a entrada em operação do projeto Carajás, a repartir com o Cauê e Piçarrão, o ônus desse financiamento. É o meu compromisso com a terra de meu pai, nascido no então distrito itabirano de São José da Lagoa.”

“Itabira não será esvaziada. Não deixaremos que ela seja abandonada, transformada em uma cidade fantasma, um simples registro para a História. A nossa administração na CVRD está empenhada firmemente em restituir a Itabira a riqueza dela extraída e impedir que se repita o que ocorreu com inúmeras outras cidades ao fim do ciclo do ouro”, prometeu o então poderoso presidente da Vale.

Leia a íntegra do discurso de Eliezer Batista aqui:

“Itabira não será esvaziada, não será uma cidade fantasma, temos essa dívida com o município”, disse Eliezer Batista, em 1980

Caso de sucesso

Hoje a história se repete com mais promessas. Serão cumpridas? Marco Antônio Lage (PSB), prefeito de Itabira, afirma peremptoriamente que sim, enquanto aguarda ansiosamente pelo anúncio do pacote de obras e investimentos que a mineradora promete fazer no município, no curto prazo.

Isso para que Itabira vire um “case de sucesso” em reabilitação ambiental e na reconversão econômica, para que se torne sustentável com a diversificação de sua economia, outra promessa ainda não cumprida e que se arrasta há muitas décadas.

Marco Antônio Lage espera que a Vale melhore a sua imagem fazendo de Itabira um “case” mundial de sucesso

Terá que incluir, também, solução que seja aceitável e correta para os moradores que já são atingidos pelo descomissionamento de diques na barragem do Pontal, em especial, às centenas de famílias que serão desalojadas, cujo número será divulgado neste mês, assim como para a (in)segurança das barragens e suas ameaças por toda extensão das zonas de autossalvamento (ZAS).

Que a Vale dê respostas claras e transparentes quanto às vedações da Lei Federal nº 14.066/2020, que instituiu a nova Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) –  e que proibi novas construções, públicas e privadas, nas localidades por onde pode passar a lama de rejeitos, no caso de rupturas de alguma das estruturas existentes em Itabira.

Que pare de despejar toneladas de partículas de poeira de minério em  suspensão sobre a cidade, provocando doenças respiratórias, invadindo as vias respiratórias e as residências sem sequer pedir desculpas pelo incômodo desse recorrente impacto de vizinhança, além das detonações nas minas que a todos assustam.

Sem isso, não haverá “case de sucesso”, por mais que invista na diversificação da economia local.

 

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2 Comentários

  1. E o impacto visual das serras degradadas pela mineração?
    Até quando vamos suportar essa paisagem horrenda que contorna quase a metade do perímetro urbano?
    Antes se falava na formação de cinturão verde entre as minas e a cidade.

  2. Matéria que deveria ser transformada em jogral nos pontos mais movimentados da cidade, para a juventude começar a dar ciência da arruaça que a mineradora promove no territorio.

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