Drummond escreve sobre um certo José Hindemburgo Gonçalves, tributarista que lutou em prol de Itabira
Editorial Correio da Manhã
Poeta
“E, mudando-se algumas palavras, pode-se aplicar a certas entidades dessa natureza o que em tempos já remotos a vox Populi afirmou sobre um diretor da Companhia Vale do Rio Doce: “Comeu o doce, bebeu o rio e deixou na caixa o vale.”
Estão acontecendo milagres que desmentem certos hábitos do nosso linguajar público. Oradores já têm gritado do alto da tribuna da Câmara: “Atenção, meus senhores, isto é uma coisa séria, isto não é literatura!” E quantas vezes não se diz de um idealista, em tom de desprezo: “É um poeta!” Mas agora aconteceu o milagre: um poeta levantou a voz, reclamando providências da administração pública; e parece que será ouvido. A sede da Companhia Vale do Rio Doce acaba sendo transferida para Itabira.
Pois Itabira produz muito ferro, sem retirar jamais daquela riqueza o menor proveito. Teve, porém, a sorte de produzir também um grande poeta e este levantou a voz, protestando em nome do metal contra o asfalto. O município em que, há cinquenta anos, viu pela primeira vez a luz, continua na mesma pobreza de então, enquanto os lucros são canalizados para outras paragens, através de uma direção com sede na avenida Rio Branco.
O caso não é isolado, como se sabe. Quase todas as entidades que administram a exploração das riquezas do interior são dirigidas do Rio de Janeiro. Na capital do país, à sombra do benevolente poder central, será mais fácil dirigir com eficiência as grandes empresas oficiais.
A Petrobras já fez jorrar uma senatoria. E, mudando-se algumas palavras, pode-se aplicar a certas entidades dessa natureza o que em tempos já remotos a vox Populi afirmou sobre um diretor da Companhia Vale do Rio Doce: “Comeu o doce, bebeu o rio e deixou na caixa o vale.”
Agora, se Itabira continuar tendo sorte, pelo menos uma pequena parte do doce ficaria em um dos municípios potencialmente mais rico e atualmente mais pobre do país. E deverá isto ao poeta.
Oxalá houvesse outros poetas da mesma altitude. Seria mais rica a nossa literatura e menos pobre o nosso interior. A descentralização administrativa das entidades em causa chegaria a ser mais proveitosa do que a transferência da própria capital do país.
Pois a presença dos administradores e engenheiros responsáveis em Itabira, além de beneficiar o município, também fomentará a mineração, ao passo que é duvidoso que a presença de milhares de funcionários ministeriais no planalto goiano seja capaz de fomentar a pecuária do Brasil Central.
Agora já se deu o primeiro passo. Depois, fora daqui com o Instituto do Açúcar e do Álcool para o Recife, com o Instituto do Café para São Paulo, com o Instituto do Sal para Natal, o do Pinho para Curitiba e o do Mate para Cuiabá, o que terá o benefício suplementar de diminuir a correria para as diretorias.
Para tanto, basta substituir os relatórios pelos poemas e o relator pelo poeta…
(Correio da Manhã, quinta-feira, 14 de julho de 1955)
Marechal
Carlos Drummond de Andrade
O segundo editorial do “Correio” de quinta (“reboque”, no vocabulário da casa) atribui a um poeta o mérito da campanha em prol da mudança de sede da Cia. Vale do Rio Doce para… o vale do Rio Doce. Mas o poeta, que é meu conhecido, lamenta não lhe caber essa honra.
O êxito de um movimento dessa natureza tem realmente algo de milagroso, porque no Brasil chamamos milagre à correção de um erro. Este, porém, ainda não foi corrigido, e é cedo para cantar vitória.
Nem haveria propriamente triunfo: ninguém quis derrotar a Cia. Vale do Rio Doce. O que se passou foi um desses episódios da crônica familiar, em que um dos cônjuges, por muito amar o outro, reclama contra sua falta de assiduidade, e vai buscá-lo no bar ou à mesa de buraco, onde ele permanece indefinidamente, esquecido de que seu lugar é na poltrona caseira, junto ao primeiro cônjuge e aos filhos.
A Vale do Rio Doce levou a ausência a um ponto intolerável; gostou loucamente do Rio de Janeiro, e quase não se lembrava mais de que era uma senhora casada com o povo de Itabira.
O povo de Itabira é que era ou parecia um tanto displicente, e não aparentava ligar o abandono a que fora votado. Tudo ia nesse estado lastimável, quando alguém interferiu para restaurar em sua plenitude a sociedade conjugal.
Esse alguém, como não podia deixar de ser, era bacharel. E a essa qualidade juntava duas outras: técnico fiscal e amador de estatística, podia lidar desembaraçadamente com leis, estatutos, cifras, percentagens, médias.
E por maior sorte ainda, tirava seu nome tal ou qual sugestão de força, disciplina e firmeza, virtudes mais de militar que de advogado. Refiro-me a José Hindemburgo Gonçalves, itabirano de 39 anos, vindo à luz no ano em que os alemães infligiram aos russos uma surra tremenda, junto aos Lagos Masurianos. O general dessa peleja chamava-se Von Hindemburg, e o pai do garoto nascido numa cidadezinha de Minas, de puro entusiasmo deu-lhe o nome famoso.
Hindemburgo II não tem as baldas do “junker”, mas se revelou comandante hábil e tenaz. Um dia pegou por acaso uma estatística de exportação e impressionou-se com o vulto nela assumido pelo minério de ferro. Pensou na pobreza de sua terra, de onde jorra a fonte de dólares, e que em troca recebe apenas o título (ilegível) da população. Redigiu um memorial cheio de verdade e algarismo, mimeografou-o e espalhou-o por meio mundo.
A princípio seus conterrâneos ficaram meio desconfiados. A prática da vida os desencantara em tudo. O rapaz fazia média, talvez, para ser deputado; ou logo mudaria de assunto, e a Vale do Rio Doce riria de criancice.
Mas Hindemburgo não queria nada para si; queria simplesmente corrigir o erro. Insistiu, discutiu, convenceu os céticos harmonizou a inarmonizável política municipal, promoveu a fundação de uma sociedade municipalista, forçou o pronunciamento da Assembléia Legislativa e do governador do Estado, levou sujeitos astrais, como o poeta, a escrever artigos, e quando a Cia. Vale do Rio Doce acordou, centenas de câmaras municipais pelo Brasil afora bombardeavam o sr. Café Filho com telegramas de solidariedade a Itabira.
Itabira acabou fretando um avião especial e vindo ao Rio, em peso (que lindo), lembrar ao presidente que a Cia. continua na conversa mole. Diz que vai, e não vai. Acha a cidade “unconfortable”, e embora milhares de pessoas ali vivam tranquilamente e passem bem de saúde, os doutores tem medo de, lá chegando, encontrar apenas febre amarela silvestre ou não encontrar chocolate com brioche à hora do desjejum.
O resto se sabe. O dr. Café prometeu ir àqueles itambés e fazer cumprir seu despacho. Esperamos que o faça. O mérito da campanha? É de todo mundo e ninguém; não seria possível interessar metade das câmaras municipais do país se, como disse muito bem o “Correio”, essa reivindicação não apontasse um mal brasileiro, que está na consciência de todos: a exploração organizada e oficial do interior pela metrópole, o asfaltismo guloso e sibarita, dirigindo a milhares de quilômetros de distância as atividades econômicas que sustentam nossa terra.
Todos têm sua parte no resultado, na medida, em que fizeram ouvir a voz do bom senso. E o “Correio” também a teve, divulgando as razões itabiranas. Mas a justiça manda proclamar que devemos ao marechal Hindemburgo Gonçalves o plano e o ímpeto da campanha. E ninguém se iluda: se as providencias não vierem sob o comando do nosso marechal recorreremos à ação popular prevista na Constituição art. 141 § 38.
C.D.A.
[Correio da Manhã, domingo, 17 de julho de 1955. BN-Rio/pesq.mcs1375]
Nota da redação: Embora a decisão presidencial tenha sido um fato histórico, com Café Filho determinando a imediata transferência da sede da CVRD para Itabira, para que se cumprisse o que dispunha o seu estatuto de fundação, a estatal foi “procrastinando” até que findou o mandato presidencial. Café Filho não veio à Cidadezinha e Itabira ficou sendo o que sempre foi: “a boca da mina”.
Ilustração: Genin
Não fui eu! Não fui eu que criou essa clara imagem do poeta Drummond. A culpa é do Genin. E por coincidência, Genin e Drummond cultivam dedicação à Cidade. Viva Genin, o de Itabira.
é o maior ataque drummondiano à Vale e indiretamente ao conformismo itabirano já ocorrido na história,
Em tão poucas semanas um turbilhão de sonhos, desejos, reivindicações, revelações e direitos (em todos os sentidos da palavra direitos, no plural inclusive, certamente) estão vindo à tona. Jogados na cara, como fazia o velho Chaplin .
(Tudo isso num só site, ou sítio internético, o Vila, para os íntimos. Só podia mesmo ser primo primeiro do jornal o Cometa e vir da pesquisa incansável e competentíssima daquela que só assina em minúsculas: pesq.mcs: leia-se Maria Cristina Silveira)
—–retomando o texto objetivo:
Todos ou quase todos irrealizados, Principalmente este acima priorizado por Hindemburgo Gonçalves e Carlos Drummond de Andrade ainda na metade dos anos 1950.
—a transferência da administração da mineradora para seu local-origem: do Rio para Itabira,
Teria sido um grande exemplo que fatalmente seria seguido Brasil afora. Cidades e seus municípios, seus interiores, se desenvolveriam mais rapidamente para além da destruição e buracos inevitáveis da exploração mineral.
Haveria sim chocolate no brioche. E confortabilidade. Bons hotéis, restaurantes, os cinemas não fechariam, o prazer das águas límpidas em suas inúmeras cachoeiras fariam a delícia que o mar e a areia pegajosa fazem. A convivência e a evolução intelectual, a boa convivência que democratiza as universalidades e deixam a descansar sem findar – por que não?- as ‘provincianidades’. As escolas de primeiro a terceiro graus se implantariam quase tanto como jorram as águas dos rios, e as que descansavam nos aquíferos subterrâneos.
Por que a riqueza já existente com seus pianos nas salas de estar se somariam à riqueza que veio do veio de ferro e ouro e se multiplicaria em dividendos, socializando para todos. do mais simples trabalhador ao poderoso senhor de gravata.
Haveria menos bravatas e mais solidariedade e paz,
Chocolate no brioche, quando poderemos apreciar esses sabores de cima do Pico do Amor olhando a Cidade – tão bela vista que nos ofereceu o Comunista Oscar Niemeyer. O certo é que estamos ferrados. Agora as vitimas do crime da Vale de Mariana e Brumadinho estão recorrendo a justiça inglesa para que a Vale Assassina cumpra o dever, aqui a justiça não lhes valeu de nada.