De saída, Bolsonaro ocultou dados de cartão corporativo e entradas no Planalto
Governo do ex-presidente negou dados públicos até últimos dias e manteve sigilo sobre os R$ 79 mi do cartão corporativo
Por Bruno Fonseca, Matheus Santino
Agência Pública – Informações sigilosas, trabalho adicional e risco à segurança do presidente: essas foram algumas das justificativas usadas nos últimos dias do governo de Jair Bolsonaro para negar acesso a dados públicos pela Lei de Acesso à Informação (LAI).
Segundo apuração daAgência Pública, alguns dos temas mais sensíveis ao antigo governo — como os gastos do cartão corporativo e os registros de entrada no Palácio do Planalto — seguiram sob sigilo até o fim de 2022, através de decisões que ainda precisam ser revertidas pela atual gestão.
De acordo com despacho assinado no primeiro dia útil de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) determinou “a adoção de providências pelo Ministro de Estado da Controladoria-Geral da União, no prazo de trinta dias, para revisão de atos que impuseram sigilo indevido a documentos de acesso público”. A medida é uma das promessas de campanha do petista, que se comprometeu a reverter decisões administrativas do governo anterior que negaram o acesso a dados públicos pela Lei de Acesso à Informação (LAI).
A abertura dos dados, contudo, precisará passar pela decisão de órgãos que têm mantido os entendimentos da gestão de Bolsonaro. É esse o caso do Comando do Exército, que continuou com o sigilo sobre o processo administrativo do ex-ministro da Saúde e atual deputado federal Eduardo Pazuello (PL) . Segundo apuração do Estadão, um recurso de pedido de acesso à informação, respondido em janeiro deste ano, bloqueou novamente o acesso aos documentos que compõem o processo.
A Pública também vem requisitando os documentos desde 2011 através da LAI, apesar de sucessivas negativas do Exército. No final de 2022, contudo, o órgão enviou um extrato do processo, que confirma a decisão do Comando do Exército de acolher as justificativas de Pazuello e de arquivar o procedimento.
Segundo os dados enviados pelo Exército, o julgamento de Pazuello, que participou de um ato político em maio de 2021 sem autorização do comandante, se deu em prazo curtíssimo. A defesa do general foi apresentada em uma quinta-feira, dia 27 de maio de 2021.
Em cinco dias úteis, no dia 2 de junho, o Comando já havia acolhido a defesa e decidido pelo arquivamento. No dia seguinte, 3 de junho, a decisão favorável a Pazuello já estava publicada pelo Centro de Comunicação do Exército.
Secretaria da presidência de Bolsonaro diz não ter registrado reuniões
Além da mudança de decisões sobre o que está sob sigilo, o governo Lula também precisará lidar com outra questão: há dúvidas se dados estratégicos foram ou não registrados devidamente durante o governo Bolsonaro — ou se podem ter sido apagados.
A reportagem da Pública requisitou através da LAI os registros de atas de reuniões da Secretaria de Assuntos Especiais (SAE) nos últimos dois anos. No dia 2 de janeiro, a resposta enviada dizia que “nos anos de 2021 e 2022, a agenda da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos foi composta por visitas de cortesia, não constando reuniões”.
A SAE é um dos principais órgãos da Presidência. Dentre as atribuições, estão formular políticas e estratégias nacionais de longo prazo e assistir o presidente da República em contatos com autoridades ou personalidades internacionais.
A SAE de Bolsonaro foi chefiada desde março de 2021 pelo almirante Flávio Augusto Viana Rocha. O militar, próximo do ex-presidente, era considerado um “chanceler paralelo” do Governo Federal devido à sua grande participação em missões de diplomacia internacional.
Além disso, de acordo com reportagem do O Globo, três ex-assessores suspeitos de fazer parte do “Gabinete do Ódio” integraram a SAE a partir de um decreto de Bolsonaro de 2020. O Gabinete do Ódio é o nome dado a um grupo de assessores de Bolsonaro que coordenavam perfis em redes sociais de apoio ao ex-presidente e que seriam comandados pelo filho Carlos Bolsonaro, vereador do Rio de Janeiro (PL).
“É real o receio que o governo anterior não tenha dado a importância devida ao registro de dados públicos”, comenta Maria Vitória Ramos, co-fundadora e diretora da agência de dados independente e especializada na Lei de Acesso à Informação Fiquem Sabendo.
Ela explica que agentes públicos não podem se negar a registrar informações de compromissos oficiais, como reuniões, ou dados de execução de políticas públicas, e será importante que o governo Lula investigue o que foi produzido — e o que não foi — em relação a esses dados.
“Colocamos essa questão no documento que enviamos à equipe de transição: um dos primeiros passos seria fazer uma auditoria no sistema eletrônico de informação do governo e em outras bases de dados, pois, de fato, o governo anterior demonstrou em muitos momentos um descuido ou a intenção deliberada contra a transparência pública”, avalia.
Para Ramos, o prazo do governo Lula de avaliar os sigilos de Bolsonaro em 30 dias é até otimista, tendo em vista que os ministérios e órgãos ainda estão sendo montados. Além disso, ela comemora muitas das decisões de transparência desse início de governo, como a criação da primeira Secretaria de Acesso à Informação, apesar de apontar ressalvas.
“Ela é muito importante do ponto de vista estrutural, pois a LAI é hoje, ao meu ver, a principal ferramenta de democracia participativa e de transparência pública no país. Por outro lado, a secretaria ficou separada [em outro departamento] das outras ferramentas da LAI, que são a transparência ativa e passiva, o Portal da Transparência e o governo aberto e dados abertos. E eles serem articulados em conjunto é importante”, aponta.
Os R$ 79 milhões sigilosos do cartão corporativo
Um dos principais segredos trancados a sete chaves pelo governo Bolsonaro são os gastos do cartão corporativo. A Pública vem solicitando detalhamento sobre as despesas do cartão da Presidência durante toda a gestão de Bolsonaro, que não permitiu o acesso aos dados.
O último pedido, respondido em dezembro de 2022, classificou a informação como reservada e sob sigilo até o término do mandato do ex-presidente, por estar dentro da categoria de informações que podem colocar em risco a segurança do presidente e do vice. Além disso, a Secretaria-Geral da Presidência da República se limitou a orientar que os dados fossem buscados no Portal da Transparência.
O problema é que, atualmente, o Portal da Transparência não informa detalhamento de gastos de vários usuários do Cartão de Pagamento do Governo Federal. Dentre esses usuários sigilosos, estão a Secretaria Especial de Administração da Presidência, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o gabinete da Vice-Presidência da República e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Segundo a Pública levantou, ao todo, esses quatro órgãos da Presidência já gastaram R$ 79,5 milhões desde 2019 em valores sigilosos. Só em 2022, último ano do governo de Bolsonaro, foram R$ 24 milhões em gastos sob sigilo.
De acordo com uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), ao qual a Revista Veja teve acesso, entre janeiro de 2019 e março de 2021, o governo Bolsonaro teria gasto cerca de R$ 21 milhões no cartão corporativo.
A maior parte dos gastos estaria relacionada a viagens de Bolsonaro e Mourão: R$ 16,5 milhões, que englobariam hospedagem, alimentação e apoio operacional. Em agosto de 2022, Jair Bolsonaro disse em entrevista ao Programa Pânico da Jovem Pan que nunca usou o cartão corporativo.
Os visitantes secretos do Palácio do Planalto
A lista de entrada no Palácio do Planalto é outro tema sensível mantido sob sigilo por Bolsonaro. A Pública, assim como diversos outros veículos de imprensa, vem requisitando os registros de entrada e saída nas dependências do Palácio e órgãos anexos durante todo o governo Bolsonaro. A lista completa, contudo, tem sido negada com a justificativa de que ela contém informações classificadas.
Um dos pedidos feitos pela Pública, respondidos em dezembro do ano passado, foi negado com essa justificativa. Segundo a Presidência da República do governo Bolsonaro, seria desproporcional e desarrazoado separar na lista de pessoas que entraram no Planalto os nomes que estivessem dentro do grupo de informações classificadas. O governo respondeu apenas a pedidos feitos sobre pessoas específicas, como o ex-ministro Pazuello, que esteve no Planalto apenas duas vezes em 2022, segundo os registros.
O sigilo da lista completa de visitantes do Planalto impede saber, por exemplo, a entrada de lobistas de empresas privadas, como fabricantes de armas.
Durante o governo Bolsonaro, o GSI chegou a usar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) para negar pedidos de informação sobre as visitas do Planalto. Essa justificativa chegou a ser usada para barrar pedidos sobre a entrada dos pastores envolvidos no escândalo de desvio de recursos do Ministério da Educação (MEC) para prefeituras. Mais tarde — e após manifestação da Controladoria Geral da União (CGU) — o governo voltou atrás e divulgou os dados.