A poesia de Drummond em defesa da terra natal
Carlos Cruz*
Itabira festeja o nascimento do seu filho mais ilustre com uma Festa Literária e espera que o seu legado possa atrair turistas e desenvolvimento sustentável. Mas se esquece que a maior herança deixada por Carlos Drummond de Andrade está na sua luta por uma Itabira melhor, para que o fruto de sua riqueza mineral possa se reverter em mais benefícios para a sua população. Exemplos podem ser extraídos de vários poemas e crônicas que ele escreveu, muitos ainda no calor dos acontecimentos.
Por muitos anos, e ainda hoje, o poeta tem sido criticado por alguns de seus conterrâneos menos informados, “por nada ter feito pela sua cidade natal”. Achavam – e ainda acham que Drummond esnobava Itabira. Não é verdade.
O poeta simplesmente se reservou ao direito de manter viva em sua memória a imagem de Itabira antiga, com seus pouco mais de 4 mil habitantes, vivendo sua rotina de cidade do interior, com uma economia simples e diversificada, baseada também na mineração em pequena escala.
E, principalmente, guardou a lembrança de um povo culto (a cidade no início do século contava com jornais tipográficos que circulavam quinzenalmente), que dispunha já no início do século passado de teatro e cinema – e de bandas de música.
Portanto, uma presumível vinda dele à sua cidade natal iria mostrar uma outra realidade, bem diferente da que Drummond conheceu em sua infância. E, com certeza iria se decepcionar.
Drummond saiu de Itabira em 1915 para estudar em Nova Friburgo (RJ). Seu retorno à cidade natal só ocorreu em 1926, já casado com Dolores Drummond, quando lecionou Geografia e Português no extinto ginásio Sul-Americano.
A sua experiência como professor durou pouco tempo – e no mesmo ano, o jovem casal mudou de vez de Itabira. Seu último retorno foi em 1954, quando aqui esteve para cuidar do traslado do corpo de sua mãe, Julieta Augusta Drummond.
Desconhecimento
Drummond não se importava com o marketing pessoal, daí que pouco se lixava para aquilo que o itabirano inculto pensava a seu respeito. Mas mesmo assim, ele nunca deixou de brigar por Itabira. Conforme em diversas ocasiões ele confessou, a relação com a cidade era atávica, ligada à história e à indignação frente ao que veio acontecer à sua terra natal com o advento da mineração em larga escala, a partir de 1942.
O poeta chegou a imaginar que o progresso acelerado, degradante e em vários aspectos desumano de exploração mineral, contava com a silenciosa cumplicidade e conivência de seus conterrâneos. “Penso às vezes, cruamente, que o itabirano vendeu a sua alma à Companhia Vale do Rio Doce…”, escreveu.
Hoje, a maioria da população itabirana é constituída por pessoas chegadas de fora para trabalhar na mineração, principalmente, ainda. São trabalhadores vindos de todas as partes do país – a mineração hoje gera cerca de 3 mil empregos diretos e outros tantos indiretos.
E a maioria, com raras exceções, assim como muitos itabiranos, pouco conhece de sua riquíssima obra literária. Muitos só ficaram sabendo de sua existência após a sua morte e também com a edição pela Casa da Moeda, no fim dos anos 1980, da nota de NCRz$ 50,00 (Cinquenta cruzados novos), que trazia impressa a sua efígie.
Críticas ao progresso e lembranças da infância
O poeta itabirano foi quem deu repercussão nacional aos conflitos permanentes de sua cidade natal com a então Companhia Vale do Rio Doce e fez severas críticas ao sistema tributário injusto que contempla com migalhas o município.
Em sua crônica Só isso, publicada no dia 3 de outubro de 1964 no Jornal do Brasil, Drummond pede licença “para fugir por alguns minutos à linha aérea e desinteressada destes escritos e tratar do assunto que compete aos doutos em lei e em economia.” E prossegue: “Por trás dele, azula uma paisagem de serra, a que estou emocionalmente ligado e este é o ponto de contato entre o colunista e a matéria técnica”.
Na crônica, Drummond fala do projeto de criação do Imposto Único sobre os Minerais (IUM), mas que se apresenta com uma distribuição extremamente injusta para os municípios mineradores.
“O produto da arrecadação desse imposto será distribuído entre a União, os Estados e os Municípios, e é claro que não pode ir para Sancho, Martinho e esse vosso criado. Mas a União terá 10%, o Estado 70% e o Município apenas 20%, o que me parece terrivelmente injusto.”
O poeta lembra que para o município, minério “é riqueza que não se recompõe, e com a exploração intensiva se esgota para sempre”. É assim que Drummond considera que “os 20% destinados aos municípios – só isso? – em contraste com os 70% atribuídos aos Estados, têm algo de mesquinhamente ridículo, que não pode passar despercebido à sensibilidade municipal de nossos legisladores, na maioria procedentes de pequenos núcleos habitacionais, onde a miséria coletiva definha sob a miséria dos orçamentos”.
Cidades mineradoras
Em agosto de 1984, a Prefeitura de Itabira promoveu um Encontro Nacional de Cidades Mineradoras com o objetivo de mais uma vez tentar reverter essa injusta distribuição de recursos que privilegiava os estados mineradores em detrimento dos municípios.
Em correspondência ao poeta, o então editor do jornal O Cometa, Lúcio Sampaio, perguntou-lhe a sua opinião e indagou sobre a possibilidade de dar alguma colaboração para divulgar o encontro. A resposta de Drummond, em 9 de junho, mais uma vez comprova o ceticismo do poeta em relação aos políticos.
“Minha velhice experiente me ensinou tantas coisas. Uma delas: descrença em nossos homens públicos.” Drummond manifestou ainda a sua “impossibilidade racional de crer na letra das palavras e no discurso dos homens”.
Mas o poeta, mesmo não acreditando nas palavras dos homens e revelando o seu justificado ceticismo, poucos dias depois de se negar a participar da divulgação do encontro de cidades mineradoras, para grata surpresa de todos na redação do Cometa, enviou para publicação O Maior Trem do Mundo:
Antes, em novembro de 1983, Drummond publica no Cometa outro poema profético. Lira Itabirana viralizou nas redes sociais 32 anos após a sua publicação, com a maior tragédia ambiental do país, provocada com o rompimento da barragem que destruiu o povoado de Beto Gonçalves, no município de Mariana – e seguiu pelo rio Doce até litoral capixaba deixando seu rastro de destruição.
Lira Itabirana
O Rio? É doce./A Vale? Amarga/Ai, antes fosse/Mais leve a carga./Entre estatais/e multinacionais,/Quantos ais!/A dívida interna./A dívida externa./A dívida eterna./Quantas toneladas exportamos/De ferro?/Quantas lágrimas disfarçamos/Sem berro?
E assim, sucessivamente, Drummond transformou O Cometa em palco de sua poesia engajada em defesa de sua terra natal.
Declaração de amor e profunda saudade
Em abril de 1984, Drummond solicita ao Cometa a publicação de um relatório do físico e matemático francês Henri Gorceix, que em 1875 visitou Itabira, Sabará e Ouro Preto. A convite do imperador dom Pedro II, Gorceix viera estudar as condições exigíveis para o funcionamento e instalação de uma escola de minas no país – e que acabou se instalando em Ouro Preto, em 1876.
Havia, ainda que remota, a possibilidade de a escola se instalar em Itabira, em decorrência de aqui se encontrar uma grande reserva de minério de ferro, embora fosse ainda desconhecida o seu potencial.
De posse do relatório de Gorceix, Drummond lamentou mais essa perda incomparável para Itabira. “A pouca sorte de nossa terra está manifesta: com abundante material de estudo para a escola, Itabira não pôde tê-la por causa da distância e da falta de comunicações.”
O poeta sempre sonhou com uma universidade em sua terra natal, como “centro formador e fomentador de novas ideias”. Hoje, com certeza ficaria feliz com a implantação do campus da Unifei – e torceria, com certeza, para que se transforme em uma verdadeira universidade, não só com cursos de engenharia, mas também nas áreas biológicas e humanas.
Drummond ecológico
O poeta itabirano foi um dos precursores dos movimentos ecológicos na sua terra natal. Em entrevista à revista Pau Brasil, de setembro de 1985, uma publicação bimestral sobre ecologia e cultura, editada pelo Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAAE), de São Paulo, o poeta denunciou:
“A minha cidade natal foi, inicialmente mina de ouro e de ferro, que agora ‘curte’ as agruras da exaustão. Hoje, minha terra vive a sorte de região espoliada, com os intestinos à vista, sob o pó de minério que suja os corpos e torna as almas sombrias.”
Drummond, sempre ligado ao que ocorria em Itabira, prossegue: “A concentração média anual de poeira em suspensão é de 80 microgramas em suspensão. Itabira acusa o máximo de 240 microgramas por metro cúbico. Esse inferno de vida rende muitas divisas ao Brasil, fato de que se gaba a empresa estatal Companhia Vale do Rio Doce”.
“Continuo morando em Itabira”, disse o poeta em entrevista
Em sua última entrevista, concedida ao repórter Geneton Moraes Neto, no suplemento Ideias, do Jornal do Brasil, dias antes da morte de sua filha Maria Julieta, o poeta fala da saudade que sente da terra natal. “Tenho uma profunda saudade e digo mesmo: no fundo, continuo morando em Itabira, através de minhas raízes e, sobretudo, através dos meus pais e irmãos, todos nascidos lá e todos já falecidos. É uma herança atávica, profunda, que não posso esquecer. Mas a atual Itabira eu mal conheço. Não vou lá há anos. Exatamente por isso: porquê a Itabira que conheci, na qual nasci, passei a infância e um pouco da minha mocidade, é completamente diferente da atual. A minha Itabira era uma cidade de 4 mil habitantes, se tanto. Hoje tem mais de 100 mil habitantes”.
Críticas à mineração: “É uma coisa trágica”
Em entrevista ao programa Diálogo, da extinta TV Manchete, em 13 de maio de 1984, Drummond assim falou de sua cidade natal: “Eu não vivo há muito tempo numa cidade do interior. Há muito tempo que eu não vejo a minha cidade, que é uma cidade pequena. Mas hoje, transformada pela Companhia Vale do Rio Doce, acho que é uma cidade ‘meio monstro’, né? Ela tinha 4 mil habitantes, agora tem mais de 100 mil, sendo que 10 mil estão desempregados, à espera de que a Companhia dê a eles um trabalho qualquer. Está se retirando de Itabira, transferindo-se para Carajás, e vai fazer lá a mesma coisa que fez no interior de Minas Gerais. Vai despojar a terra de sua riqueza e vai exportar isso. Nem sequer aquilo beneficia o Brasil: beneficia a empresa! E, depois, abandona aqueles buracos! Itabira está destinada a ser, daqui a 20 anos, um buraco em que apenas deposita o fino, o pó que se desprende do minério que vai ser transportado pelo vagão. É uma coisa trágica!”
Viagem à cidadezinha
Mas mesmo distante fisicamente de sua terra natal, Drummond sempre se manteve atualizado sobre o que ocorria em sua cidade natal e “viajava” nos recortes de jornais da cidade enviados por “itabiranos amigos”. E não se esquecia de lembrar da Cidadezinha Qualquer , do tempo em que aqui viveu.
Na edição de agosto de 1985 do jornal O Cometa, em artigo intitulado Notícias Municipais, o poeta e jornalista Carlos Drummond de Andrade fala da cidade antiga, relembra os seus costumes e cultura:
“A cidade vivia horas de esplendor, embora fosse politicamente sitiada. Os últimos proprietários de terrenos auríferos vendiam suas lavras para uma companhia estrangeira; o sonho das duas estradas de ferro, a Central e a Vitória a Minas, ainda não se dissipara; o correio vinha todos os dias, a lombo de burro, e podia-se ler na terça-feira os jornais cariocas de domingo, coisa que mais tarde tornou-se impraticável; um grande clube carnavalesco, o Casaca Vermelha, promovia cortejos equestres memoráveis, que jamais se repetiram, enquanto os cordões Primavera, Mineiro, Vai ou Racha! e Violeta extravasavam a alegria dos mais modestos; dentro em pouco, a municipalidade, sob a presidência de Alexandre Drummond, daria à cidade abastecimento de água e energia elétrica; os ‘homens bons’ lutavam contra o juiz de direito faccioso e sem compostura, e punham-no para correr da comarca entre foguetes, banda de música e missa em ação de graça. Valente cidade, que o governo iria oprimir e esquecer, porém não dominar”.
“Diante desses jornais amarelecidos, sinto-me intensamente municipal e nostálgico, e subo de novo a Ladeira do Bongue, revejo Lilingue, Chico Zuzuna, o velho Elias do Cascalho, feiticeiro africano, o poço de Água Santa, os coqueiros de espinho na estrada para o Pontal, o pequeno cemitério do Cruzeiro aguardando os meus parentes e o frio das manhãs serranas, e as namoradas intocáveis no alto das sacadas de arabesco, tudo isto misturado, longínquo, próximo, nítido, cheirando absurdamente a jasmim – e perdido.”
*Publicado originalmente no jornal Hoje em Dia, em 18 de agosto de 1989. Editado e atualizado para este site
Magnífica. Simplesmente espetacular essa matéria sobre o Drummond. Toca o coração e nos leva a refletir sobre a impotência de alguns para mudar as coisas em Itabira, e a omissão de outros para tal. E o tempo passando… E as riquezas naturais se extinguindo…
É angustiante perceber que, apesar dos alertas estratégicos do poeta, nada foi feito para estancar esta sangria e criar alternativas para o futuro das novas gerações de Itabiranos.
Parabéns Carlos Cruz, excelente matéria.
Excelente texto Carlinhos, muito bom, gostei muito.
A POESIA DE DRUMMOND EM DEFESA DA TERRA NATAL
Magnifico texto em geral. Sem comentários para aqueles Itabiranos que ainda dizem que Itabira para Drummond era apenas um quadro na parede. A cidade ta cheia de pessoas que não busca conhecer realmente a sua história em prol da nossa cidade e acabam acreditando em tudo que dizem sobre Drummond!
Através dessa matéria realmente da para entender a sua luta por Itabira, e mesmo além de ser considerado o maior poeta do país nunca esqueceu a nossa cidade, ele foi um dos únicos na sua época que foi contra os modos operacionais da maior mineradora do mundo, que infelizmente tem acabado com nossas terras e nem mesmo os nossos representantes públicos enxergavam isso naquela época, sendo assim até nos dias de hoje!
Parabéns Carlos Cruz pelo conteúdo totalmente importante para história de Itabira em Memória do nosso poeta maior CDA!!! “A diversidade Cultural é a herança de um povo.”
👨💻Alexandre Lennon
Artes Visuais e Audiovisual CMPC
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