Mesmo com dois aquíferos (Cauê e Piracicaba), Itabira sofre há quase um século com a falta de água enquanto sobra para a mineração

Carlos Cruz

Reportagem do jornalista Pedro Peduzzi, da Agência Brasil, com base em dados divulgados pelo Instituto Trata Brasil, comprova uma triste realidade nacional: no país, cerca de 33 milhões de pessoas vivem sem acesso à água potável, uma contradição já que no subsolo do território nacional estão dois dos maiores aquíferos do mundo – o Guarani, localizado no Centro-Sul do país, e o Alter do Chão, na Região Norte.

Situação semelhante vive a cidade de Itabira, minerada há quase 82 anos por uma grande empresa, a multinacional Vale S.A, que detém desde 1942 o quase monopólio das águas  superficiais existentes no entorno da cidade, tendo também destruído as principais nascentes, a exemplo das fontes do Pará, Borrachudo, Camarinha, Três Fontes, na Graminha, Bicão, salvando-se por obra da natureza, a água termal do poço da Água Santa, mesmo que ainda poluída.

Além das águas superficiais, a mineração detém também os recursos provenientes dos aquíferos Cauê e Piracicaba, que são as águas subterrâneas consideradas de classe especial. Para isso, faz a captação de cerca de 1.100 litros por segundo (l/s), quase três vezes mais o consumo da cidade, atualmente em torno de 400 l/s.

A mineradora utiliza esses recursos para lavrar o itabirito concentrado em suas plantas industriais, o que demanda alto consumo tanto de água nova como também da que é reutilizada.

Não bastando todo esse consumo, a “gulosa”, como a chamava o poeta Carlos Drummond, a Vale vai agora pegar carona na demanda quase secular da cidade, por ela mesmo provocada, por fontes alternativas de abastecimento.

A mineração deve ficar com cerca de 400 l/s de um volume total de 600 l/s que serão captados, cuja transposição do rio Tanque só deve ser concluída em 2026, segundo cronograma, para enfim resolver o crônico problema da falta de água na cidade.

Córrego Pureza: recurso escasso e poluído por indústrias do DI e ocupações desordenadas a montante (Fotos: Carlos Cruz)

Fontes escassas e poluídas

Atualmente Itabira conta com apenas as águas do córrego Pai João para abastecer a Estação de Tratamento de Água (ETA) dos Gatos, já minguando e poluído, exigindo tratamento mais oneroso – e com córrego Pureza, também com recurso escasso para abastecer a ETA homônima.

O córrego se encontra poluído pelas “indústrias” sem controle e sem fiscalização do Distrito Industrial. E poluído também pela ocupação urbana desordenada a montante do manancial, aprovada ao arrepio da lei – e do bom senso – pelas autoridades municipais do passado, como é o caso do condomínio com centenas de apartamentos construído ao lado do parque de exposições.

Só agora, os vereadores oposicionistas, por meio da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Água, instalada para “investigar a má qualidade desse recurso distribuído em Itabira”, somente agora descobriram que esse condomínio despeja todo o esgoto sem tratamento no mesmo córrego Pureza.

Mas boquifecharam-se sobre essa grave situação. Afinal, a responsabilidade pela licença para instalação desse condomínio não foi do atual governo, mas de administrações anteriores. Foge assim do escopo da CPI, com o seu viés partidário-eleitoreiro para imputar ao prefeito Marco Antônio Lage (PSB) a responsabilidade pela escassez e má qualidade da água servida à população itabirana.

É fato que o prefeito tem parcela de culpa pela ainda eterna má gestão do Saae,  que não tem feito com eficiência o dever de casa, ao ponto de deixar chegar às residências a água contaminada pelo transbordamento de 400 litros de óleo e graxa no córrego Candidópolis, afluente do Pureza, cuja ETA abastece cerca de 60% da população itabirana.

Nesse episódio faltou, no mínimo, controle de qualidade por parte do Saae ao deixar que essa água poluída chegasse às residências. Isso é fato e não ficção que precisa ser melhor investigado e punido.

Como também a atual administração tem parcela de responsabilidade ao não investir na melhoria e modernização da ETA Pureza, assim como nada fizeram as administrações anteriores.

ETA Pureza há anos está sucateada, exigindo reformas paliativas enquanto a cidade não dispõe da futura ETA do rio Tanque

Responsabilidades

Além disso, saliente-se que a administração passada pretendia captar e fazer a transposição da água do rio Tanque por meio de uma parceria público-privada, cujo investimento seria pago pela população itabirana, por meio de aumento da conta cobrada pelo Saae, que continuaria existindo apenas para tratar e distribuir o recurso hídrico à população.

O entendimento da gestão passada era de que a Vale já teria cumprido a condicionante da água por meio de “puxadinhos”, com a substituição de algumas redes de distribuição de amianto e com vazamentos, construção de reservatórios, além dos poços artesianos das Três Fontes, que abastecem com água de melhor qualidade os bairros centrais da cidade.

Mas não foi o que entendeu a promotora Giuliana Talamoni Fonoff, curadora do Meio Ambiente na Comarca de Itabira, para quem a condicionante da água, constante da Licença de Operação Corretiva (LOC) de 2000, não foi cumprida, diferentemente do que considerava a administração passada do Saae e da Prefeitura.

Isso pela simples razão de que o eterno problema da falta e da má qualidade da água distribuída na cidade permanece. Situação que vem se agravando com o passar do tempo, enquanto a água de boa qualidade fica com a mineração, invertendo o que dispõe o Código das Águas ao mandar priorizar o consumo humano e a dessedentação de animais para só depois servir à indústria e às demais atividades econômicas.

Tanques de tratamento de água da ETA Pureza: construção é da década de 1960

No procedimento instaurado, a promotora e curadora do Meio Ambiente se serviu também de reportagens publicadas por este site, reproduzindo informações do house-organ Vale Notícias, que, em recorrentes reportagens, induziu a cidade a adiar a captação de água do rio Tanque.

O argumento apresentado era que, após a exaustão das Minas do Meio, as águas dos aquíferos, ainda utilizadas pelo processo minerador local, ficariam disponíveis para abastecer a população itabirana, com sobras mais que suficientes para atrair novas indústrias.

Atualmente, as cavas das minas exauridas estão sendo utilizadas para disposição de rejeitos, inviabilizando o acesso às águas de classe de especial dos aquíferos para abastecer a cidade.

Ou seja, é mais uma perda incomparável que Itabira sofre, enquanto os vereadores oposicionistas não veem o óbvio ululante, que é a responsabilidade da mineradora Vale pela escassez e, em boa parte, pela má qualidade da água servida à população itabirana.

A “compensação” até aqui tem sido com o reforço hídrico de 160 l/s ao sistema de abastecimento, por força do mesmo TAC do Rio Tanque, extraídos dos aquíferos. E de barragens, como ocorreu até recentemente. Esse reforço, não raro, chega às torneiras do itabirano com turbidez, como tem denunciado moradores, principalmente dos bairros abastecidos pela ETA Pureza.

O TAC é um compromisso ministerial assinado pela Vale, obrigando-se a fornecer 160 litros por segundo (l/s), até que seja concluída a transposição de água do rio Tanque, o que só deve ocorrer a partir de 2026.

Com as chuvas, ainda que escassa, reservatório da Pureza está cheio, mas não deve assim permanecer por muito tempo

Brasil, assim como Itabira, tem recursos hídricos abundantes, mas falta água nas torneiras de boa parte da população

Segundo levantamento da organização não governamental Trata Brasil, divulgado em reportagem da Agência Brasil nesta sexta-feira (22), Dia Mundial da Água, e realizado por meio de pesquisa nos 100 municípios brasileiros mais populosos, desses, apenas 22 contam com 100% de abastecimento de água à sua população.

O levantamento foi elaborado a partir de indicadores do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) – e tem como ano-base 2022. Em média, 33 milhões de pessoas não têm acesso à água no país.

Ou seja, “apenas 84,9% da população é hoje abastecida com água potável”, destaca Luana Pretto, presidente do Trata Brasil. A situação é ainda mais acentuada na região Norte, onde “apenas 64,2% da população tem acesso à água”, mesmo com a abundância de recursos hídricos disponíveis.

Segundo a mesma reportagem da Agência Brasil, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) chama a atenção para um fato ainda mais grave: 2,1 milhões de crianças e adolescentes até 19 anos vivem sem acesso adequado à água potável no país.

São direitos e garantias primordiais para uma vida de qualidade, assim como é também o direito ao meio ambiente equilibrado. E que não estão sendo observados. Tanto é assim que uma proposta de emenda à Constituição (PEC), de autoria do senador Jorge Viana (PT-AC), se aprovada, o país passará a considerar, como já deveria ser, o acesso à água como garantia constitucional.

Direito fundamental já é, conforme está no Código das Águas, de 10 de julho de 1934 (Decreto nº 24.643), juntamente com a Lei das Águas (9.433/1997). Ambas legislações estabelecem diretrizes para o uso desse insumo imprescindível à vida, priorizando o consumo humano.

Resíduos do tratamento de água na ETA Pureza indica a má qualidade desse recurso hídrico

Esbulho hídrico

Pois é essa legislação que, historicamente, vem sendo subvertida em Itabira pela mineradora Vale. E esse esbulho, pelo menos até aqui, não tem sido discutido e cobrado pelos vereadores oposicionistas na CPI da Água instalada na Câmara Municipal de Itabira.

Afinal, em ano eleitoral, o que mais importa é angariar votos do incauto eleitor, que sofre com a falta do insumo em suas residências. Para isso, o que mais importa são os ataques sistemáticos ao governo municipal e ao Saae,  como se fosse a atual administração a responsável pelo caos instalado há décadas, na verdade quase um século, no abastecimento de água na cidade.

Situação que deve ser agravada ainda mais com a estiagem que, neste ano, provavelmente será mais severa pela escassez de chuvas, em decorrência do super aquecimento com as mudanças climáticas.

Manobras devem ser feitas com mais reforços vindos das áreas de mineração, com as águas dos aquíferos de “propriedade” da Vale, para amenizar a situação de escassez que já ronda muitas residências itabiranas.

É o deve ser cobrado com mais veemência pelo Ministério Público, guardião do meio ambiente no município, mas também pelo prefeito e vereadores à frente da CPI da Água. Ou  isso não interessa, importando simplesmente desgastar o prefeito com fins políticos-eleitorais? Que cada leitor (eleitor) tire a conclusão que lhe aprouver neste Dia Mundial da Água.

Para saber mais, acesse:

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