Vai sobrar água em Itabira com o fim das minas, prometeu a mineradora Vale, que já não quer tratar desse legado
Carlos Cruz
Por ocasião da audiência pública, realizada no Centro Cultural no dia 12 de outubro de 2018, entre dois feriados, a servidora Dayane Lage Gomes, do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (Saae), perguntou se é mesmo necessário fazer a parceria público-privada (PPP) para fazer a transposição de água do rio Tanque para abastecer a população de Itabira.
O investimento, que será do público, está avaliado em R$ 55 milhões. Será amortizado durante a vigência da concessão de 30 anos à empresa vencedora da licitação da PPP, pago pela população itabirana, com reajuste entre 25% a 30% na conta da água.
A servidora da autarquia municipal quis saber se o investimento é mesmo necessário, pois, conforme frisou, a Vale deve encerrar a exploração de suas minas a partir de 2028, quando haveria sobra de água dos poços profundos, que foram rebaixados pela mineração.
“Se a Vale vai encerrar as suas atividades na cidade, essa parceria é mesmo necessária? Não vai sobrar água das minas”, ela quis saber.
Leonardo Lopes, diretor-presidente do Saae, alega que não dá mais para ficar esperando por essa compensação ambiental da Vale, que diz ter cumprido a condicionante que trata dessa obrigação.
“A Prefeitura tem uma comissão que está negociando as pendências da Vale com Itabira. Se não houver acordo, com a empresa assumindo essa responsabilidade, a procuradoria jurídica da Prefeitura deve judicializar a cobrança.” Leia também aqui.
Sustentabilidade
A questão da água está entre as principais composições da dívida histórica da mineradora com Itabira, onde iniciou as suas atividades, tendo durante todo esse tempo usufruído de isenções de todos os impostos.
Só a partir de 1966, quando foi instituído o Imposto Único sobre Minerais (IUM), a empresa começou a pagar um tributo pelo minério que extrai de Itabira. Esse imposto foi extinto com a Constituição de 1988, para em seu lugar ser cobrado o ICMS também sobre minerais.
Só que, com a Lei Kandir, em vigor desde novembro de 1996, a exportação de minério de ferro, e de outras commodities, ficou isenta de pagar impostos. Como mais de 80% da produção da Vale é exportada, a mineradora continua não pagando imposto sobre o grosso de sua produção de minério de ferro.
Em Itabira, a mineração detonou ou monopolizou as nascentes que existiam na encosta da Serra do Esmeril (Borrachudo, Camarinha, Três Fontes), assim como rebaixou os aquíferos existentes abaixo das minas, para prosseguir com a extração nas Minas do Meio.
Esse monopólio das águas ocorre desde que teve início a extração em larga escala, a partir de 1942, dos mais de “1 bilhão e 500 milhões de toneladas de minério com um teor superior a 65% de ferro, que darão para ‘abastecer quinhentos mundos durante quinhentos séculos”, conforme garantia o visconde do Serro, incrustrados na encosta “da montanha venerável”, escreveu Drummond na crônica Vila de Utopia.
Aquíferos comportam 338,8 milhões de metros cúbicos de água
O Código das Águas estabelece como prioridade o consumo humano. Porém, em Itabira, historicamente a prioridade tem sido a mineração. Enquanto falta água para abastecer a população de Itabira, o precioso líquido, de classe especial, sobra nos complexos mineradores da Vale.
“Em conjunto, as minas do Distrito Ferrífero de Itabira requerem a extração de aproximadamente 1.100 l/s do Aquífero Cauê para que haja o rebaixamento permanente e progressivo das águas subterrâneas, o que permite a viabilização das lavras”, informa o estudo do Saae para justificar a PPP da transposição das águas do rio Tanque.
Isso enquanto a população de Itabira, notadamente dos bairros Pará, Chacrinha e Moinho Velho, assim como parte dos bairros Amazonas, usufrui de apenas 140 l/s dessa água de classe especial. Na Vale, essa água é empregada no tratamento de minério e para irrigar vias de acesso às minas, diminuindo a poeira.
Conforme informou o ex-hidrogeólogo da Vale Agostinho Sobreiro, na edição de março de 2002 do jornal Vale Notícias, órgão informativo da mineradora, antes de o rebaixamento ser iniciado, em 2002, os aquíferos Cauê e Piracicaba, que não se comunicam, dispunham de 338,8 milhões de metros cúbicos de água.
E que até 2016, data prevista naquela ocasião para a exaustão das Minas do Meio, “seriam bombeados 37,2 milhões de metros cúbicos, correspondentes a 11% das reservas iniciais existentes nos reservatórios subterrâneos do distrito ferrífero.” Por ser um recurso natural renovável, o nível de água do aquífero é rapidamente recuperado após ser paralisado o bombeamento nas cavas.
Ainda segundo o hidrogeólogo, a partir de 2016, com a exaustão das Minas do Meio, as águas dos aquíferos ficariam inteiramente disponíveis para abastecer a cidade e atrair novas indústrias.
Seriam, portanto, os grandes legados que a mineração deixaria para a cidade após a exaustão, conforme teria ocorrido em muitas cidades mineradas da Espanha, citadas pelo hidrogeólogo como exemplos de aproveitamento para a diversificação econômica após a exaustão mineral.
Só que agora a Vale planeja despejar rejeitos de minério sobre os aquíferos, o que pode comprometer esse legado. Leia aqui e aqui. E, pelo visto, os políticos itabiranos, pelo menos até agora, desistiram de reivindicar e lutar por esse legado. Preferem fazer a transposição da água já escassa, e barrenta na maior parte do ano, do rio Tanque.
E nós vamos nos envolvendo nas loucuras do capital. Não sabemos ler as entrelinhas nem os jogos de interesses econômicos, estamos apáticos, alienados. Sofremos, sofremos e sofreremos.