Entre o “baton” e o livro
Antônio Crispim*
Seria injusto afirmar do nosso elemento feminino que ele continua impermeável às sugestões de caráter intelectual e mesmo especificamente literário. Não digo que as minhas amáveis patrícias se transformaram, súbita e furiosamente, em inesgotáveis poetisas e em terríveis prosadoras. A mulher mineira, ou, no caso, a mulher belo-horizontina há de ser sempre a depositária discreta de algumas virtudes bem mediterrâneas – o tato, o bom gosto, a modéstia – que a impedirão de por qualquer modo identificar-se com as bas-bleu e outras calamidades que Nietzsche definiu como um qualificativo áspero e mordente. O que ela fez, e fez lindamente, foi adquirir preocupações e cultivar tendências esquecidas, talvez, no trama de sua vida doméstica, outrora tão simples e patriarcal, e hoje marcada pelo selo das novas exigências e circunstâncias sociais. Aprimorou a sua cultura, se já a possuía, ou cuidou de possuí-la, se antes vivia apenas entre agulhas e teclados. Numa palavra: intelectualizou-se. E não é preciso acrescentar que só não ficou tão adorável como era antes, porque ficou mais.
Eu alimento um horror sagrado pelo standard da mulher inteligente e culta, que a Inglaterra fabricou num momento de mau humor e espalhou depois pelas cinco partes do mundo com o seu “whisky” e as suas brochuras de Dickens. Esse ser desgracioso, álgido e medular, decorado com um par de óculos cintilantes e um par de botinas intermináveis, com um vestido horroroso no meio, produz em mim a sensação de qualquer coisa mal feita, com peças de mais ou de menos, qualquer coisa, enfim, que assusta os pássaros e entristece as paisagens.
Graças a Deus, as jovens de Belo Horizonte que se preocupam com os fácios do espírito não adaptaram esse modelo melancólico e sorriem para a vida e a vida sorri para elas sem constrangimento. E são já tão numerosas que sem lisonja a um sexo e ofensa a outro, podemos dizer que venceriam os rapazes num campeonato de idéias.
Confesso que fico um tanto comovido quando, ao pegar o meu bonde das 11 horas, vejo no banco da frente, a moça que lê André Maurois – “Les mondes imaginaires”, Grasset, 35iéne édition – e no banco de trás a moça que assina o “Litterary Digest” (notem que não é Ardel nem a “Revista da Semana”) ambas perfeitamente normais e integradas no quadro cotidiano. A princípio (Deus me perdoe) supus que elas fossem umas pedantes. Mas reconheço agora, com um pouco de observação, que são apenas duas criaturas intelectualmente bem orientadas, numa cidade em que há muitas já, e onde a novidade bibliográfica francesa, inglesa, espanhola etc, encontra leitoras bonitas e que envaidecem o autor.
Isso me torna profundamente feliz.
*Antônio Crispim é pseudônimo de Carlos Drummond de Andrade. Crônica originalmente publicada na década de 1930 no suplemento “Minas Gerais”, do qual o poeta itabirano foi redator. E foi republicada na coletânea Crônicas (1930-1934), editada pela Secretaria de Estado da Cultura, em 1987.