O aniversário do poeta – Entrevista com Plínio Doyle e Cyro dos Anjos, por Arp Procópio e Cristina Silveira
Cristina Silveira
Em todo o outubro, O Cometa Itabirano era o único jornal do mundo a declamar Carlos Drummond de Andrade em páginas desenhadas pelo artista Genin. O sítio da Vila de Utopia também faz lembrar a data do menino Carlito que tinha a Cidadezinha no coração e a dor da Cidade Destruída e sua Montanha Pulverizada.
Era setembro de 1987, de volta de Canoa Quebrada do Ceará, dei uma passadinha no Rio, com a tarefa, a pedido do dr. Antônio Lage Martins da Costa, de fazer 10 perguntas ao devorador e colecionador de livros – bibliófilo Plínio Doyle.
Na incapacidade de fazê-las, mas comprometida com o velho erudito, acanhada, convidei o professor Arp Procópio pra dirigir o papo com Doyle. Convite aceito na contrapartida de entrevistarmos o romancista Cyro dos Anjos, “duas vezes compadre do Carlos”, gabava o Garrucheiro.
Para mais um dia de vivas ao poeta Drummond aqui estão recortes das duas entrevistas, uma atrevida e gentil, a outra, um monte claro de segredos revelados em off, que só agora tornamos públicos.
O Garrucheiro x o Bibliófilo

No dia 9 de setembro de 1987, às 15 horas, Plínio Doyle nos recebeu em seu gabinete na Casa de Rui/FCRB, de onde dirigia o Arquivo-Museu de Literatura Brasileira.
O AMLB foi uma “velha fantasia” de CDA realizada por Doyle que teve a capacidade monumental de explorar, selecionar e conservar 25 mil volumes de livros e preciosos arquivos de 71 escritores e coleções fantásticas de periódicos antigos.
Fez a coisa certa em garantir o precioso acervo aos cuidados da Casa de Rui para o povo brasileiro. Em 1998, aos 92 anos Plínio Doyle encerra as atividades do ponto de reunião, o Sabadoyle (1964-98) deixando um legado de 1.708 reuniões realizadas ‘entre amigos’.
Procopada
A chapa ficou quente no primeiro olhar entre os advogados diplomados antes de 1964. Doyle e Arp se estranharam, talvez, ciúme cultivado de dois viciados em Drummond.
No bate-papo eles pouco pronunciam o nome do poeta, com sentimento profundo diziam Ele, Dele… No decorrer da conversa o Doyle passa a ignorar o Arp que, tomado pelo espírito de botocudo de Sete Cachoeiras, saiu do roteiro e iniciou perguntas embaraçosas ao devorador de livros, verdadeira procopada.
O ponto final na Zuzunação veio na atitude elegante do colecionador precioso nos chamando à contemplação do quadro na parede, O Retrato da Menina Morte, óleo sobre tela do escritor e desenhista Cornélio Penna, autor do romance A Menina Morta.
No final de tudo, passando pelos jardins da Casa conduzidos pelo Doyle, que ouvia divertido as ufanias itabiranas contadas por nós, os garrucheiros. E ficou tudo bem.
O Sabadoyle

Doyle – O Drummond ia todos os sábados à minha casa consultar livros e revistas para notas de suas crônicas. Chegava à casa às 3 horas ia consultar o determinado livro ou revista. Depois conversamos um pouco, eu, ele e minha mulher, às 5 horas saímos, ele ia para casa e eu ia a pé com ele, isso em 1964.
Num determinado dia um amigo nosso, Américo Jacobina Lacombe, perguntou se poderia ir lá no sábado falar com Drummond. Eu disse: claro que pode, você é meu amigo, é amigo do Drummond, vai lá! E foi um, e no outro sábado foi outro, outro… e hoje, as reuniões do Sabadoyle têm média de 20 amigos.
Foram iniciadas as reuniões do Sabadoyle por Drummond de Andrade. E era um frequentador assíduo, só deixou de ir ao Sabadoyle quando fez a primeira operação, em novembro do ano passado.
Esse nome foi bolado pelo Raul Bopp, da Cobra Norato. Ele inventou esse nome que foi tão feliz. Porque sábado do quê? O Sábado do Doyle. Sabadoyle!! de maneira que pegou e hoje é conhecido no Brasil todo como ponto de reunião entre amigos.
O Arquivista
Eu tenho em minha biblioteca uma lembrança muito especial do Drummond. Ele gostava de ler revistas antigas e livros de literatura. Ele levava para a casa as minhas revistas antigas, no sábado seguinte ele devolvia com índice. Ele fazia um índice perfeito, batido a máquina, direitinho, uma letrinha vermelha, uma verde para destacar as letras do alfabeto. Ele fez índice para O Malho, Careta, Fon-Fon, Dom Quixote e outras boas revistas, todas com índice feito pelo Drummond.
O Discurso
Drummond era uma figura excepcional pelo seu valor literário, cultural e pela sua pessoa humana, que é de um valor excepcional. A minha convivência com ele foi muito bonita, sempre em boa harmonia, conversávamos muito.
Nós fizemos boa amizade porque em 1955 fiz um volume – eu lia as trancas dele no Correio da Manhã –, um volume grande que deixei na livraria do José Olympio, de onde eu era o advogado, para que ele lesse e escrevesse qualquer coisa.
Ele fez um poema que é uma beleza A Saudação, já publicado nos livros dele. Quando fui agradecer o poema começamos a conversar e fizemos a maior amizade. Encontrávamos sempre na livraria José Olympio onde ele era assíduo.
Num determinado dia ele precisou de meus serviços de advogado, num problema da venda de sua casa na rua Joaquim Nabuco. Houve um tripocó com o vizinho dele que também vendia a casa. Tenho em ata do Sabadoyle o relato dele sobre o caso, ouça este trecho:
‘Não posso me esquecer que, em certa ocasião, sendo meu advogado gratuito e diligente, ele teve de enfrentar nada menos que um general terrível, como aquele que figura na novela Roda de Fogo. O bravo militar foi ao seu escritório levando uma pistola à cinta, para conversar sobre uma pacífica venda de imóvel. Plínio, sozinho na sala, não se intimidou e advertiu: General, eu não considero arma de fogo um argumento jurídico’. Você pode publicar, se achar certo, que talvez este seja o último texto mais longo que ele escreveu, porque é um discurso, você tá vendo aí que são duas páginas.
Dedicatória selecionada
Eu tenho todos os livros dele, com dedicatória. A mais bonita de todas que ele fez está no livro Uma Pedra no Meio do Caminho, biografia de um poema (Editora do Autor, 1967). Esse exemplar ele dedicou para minha filha Sônia Doyle com o seguinte poema:
Uma pedrinha de nada,
Nem sequer classificada,
Causa de tanta topada no caminho!
E, no entanto, coitada,
De uma a outra madrugada,
Ela era a mais pisada,
Sem carinho.
Agora, porém, passado
Esse tempo atribulado,
E sendo tão bem tratado
Já na estante de Sônia,
O seixo rolado
Sente-se mais prestigiado
Que um diamante,
C.D.A. Rio, XII, 1967
A Rua

Arp – Ele ficava muito encabulado de ser popular. Ele ficava todo tímido.
Doyle – Muito, muito, muito. Tenho uma passagem curiosa com Drummond. Saindo lá de casa, num sábado, logo no começo que nós éramos, nós dois, sozinhos, passamos numa livraria que havia na antiga Rua Monte Negro, hoje Vinícius de Morais. Havia ali uma livraria e nós dois entramos.
Num balcão estava cheio de livros dele, Drummond, ficamos olhando, comentando… Veio o dono da casa e pergunta: O senhor é que é o poeta Drummond?
Ele foi e respondeu: Não senhor, ele é muito parecido comigo. Segurou o meu braço e disse ‘vamos Plínio, vamos, vamos embora Plínio’. Sair na rua com Drummond era um negócio desagradável porque todo mundo queria cumprimentar e a gente tinha de parar de dois em dois minutos porque vinha um: ‘ó poeta como vai? dá um abraço’ e vinha o abraço da moça que queria dar um beijo nele, não se podia andar tranquilamente.
Era muito desagradável, nesse sentindo, de a todo o momento estar parando porque todo mundo quer cumprimentá-lo. O Drummond é muito tímido, é uma pessoa muito fechada.
Academia Brasileira de Letras
Doyle – Drummond foi a ABL assistir posses de três acadêmicos, ele foi comigo, porque ele não usava nem casaca, nem smoking e eu também não usava nem casaca nem smoking. Apesar de o convite dizer traje a rigor, nós íamos de roupa escura (preta ou azul) e gravata. Fomos à posse do Cyro dos Anjos e Abgar Renault, dois mineiros, e fomos a do Antonio Houaiss, que ele foi para abraçar o Antonio Houaiss, que tinha escrito o prefácio para o novo livro dele, Reunião [José Olympio Editora/1971].
Arp – Ele tinha essa questão tremendamente coerente, desde o primeiro passo dele na vida até o fim. Essa questão da Academia tem uma entrevista que ele deu ao jornal O País em junho de 1926, em que ele (naquele tempo ele era jovem) agride a Academia.
Mas ele manteve essa coerência o que não aconteceu com José Lins do Rego, Manuel Bandeira, Marques Rabelo e outros que evoluíram rapidamente para aceitar a Academia.
Na crônica da filha Maria Julieta, ela diz que na Academia de Letras da Argentina o escritor não se candidata, é a academia que elege – aliás, é o que deve ser certo. Então ele diz que não moraria naquele país porque a pessoa não tem condições de aceitar uma indicação dessas.
Homenagens ao poeta
Doyle – Eu sou contra qualquer homenagem pública a Carlos Drummond de Andrade, porque ele não gostava disso. No Sabadoyle houve uma proposta de homenagem pública ao Drummond, eu disse não, não faço! Se quiserem fazer façam eu não posso proibir. Eu não faço nada, nada, nada.
Se puder dizer não eu digo por que ele não gostava disso. Portanto eu vou respeitar o ponto de vista dele. Agora, fiz a homenagem dentro do Sabadoyle com uma ata que foi lavrada por Alphonsus de Guimaraens Filho, um poema sobre a morte de Drummond.
A Desdrumoondização da avenida
Arp – A propósito da humildade de Drummond em relação a homenagens temos um fato muito curioso, nós fizemos uma campanha no jornal O Cometa. Criaram lá (Itabira) uma avenida nova e puseram o nome dele, mas ele tinha implicância, não queria saber nada disso.
Como eu fui aluno dele, e uma espécie de confidente, ele me escreveu uma carta pedindo se eu não podia dar um jeito de anular aquilo porque ele não queria aquela homenagem; nesta ocasião eu estava cassado, estava em São Paulo, não pude fazer nada nesse sentido.
Mas depois quando ele ia fazer oitent’anos nós combinamos com ele, mas combinado mesmo, que iríamos fazer uma campanha para tirar o nome da avenida, uma homenagem às avessas.
Então foi uma coisa muito pitoresca porque o jornal da terra propondo que o nome de Drummond fosse tirado da Avenida e fosse dado então, o nome do pai dele Carlos de Paula Andrade – ele tinha uma veneração tremenda pela família, uma dedicação muito grande.
Numa das cartas que ele me escreveu dizia isso, que ele devia ter popularidade, mas não glória e citava como exemplo Umberto de Campos. Ele dizia que só depois de 30 anos que a pessoa morre é que deve receber essa homenagem. Então fizemos aquela campanha esquisita que o povo de Itabira não entendeu.
O Amanuense
No dia 12 de setembro caminhamos de Ipanema até Copacabana para a casa do romancista e professor Cyro dos Anjos. Fomos recebidos pelo amigo do Poeta e sua mulher d. Lilita. Achei o Cyro assemelhado ao Carlos, aquele tipo fininho aspecto modernista e voz de 22.
amanuense contou de sua vida como escrevinhador de gabinete. Teve um papo divertido sobre a pílula que não deixa o filho nascer. Falou do gênio erudito de Eduardo Frieiro.
Arp Procópio, conhecedor profundo de obra completa do romancista esmiúça a construção de O Amanuense Belmiro, o professor Cyro humildemente e com simplicidade nos ofereceu uma bela aula de crítica literária.
Revelou segredo de prova de amor de Carlos por Dólares, naturalmente machista, digo eu. Anfitriões de delicadezas mineiras Cyro e Lilita nos ofereceram encontro agradável finalizado com saboroso licor.
Arp, que impressionou o Cyro por saber de coisas ‘do arco-da-velha’ passou a condição de entrevistado, respondendo ao Cyro sobre Itabira e histórias das histórias passadas em Minas. Nunca mais vi o professor Arp tão tranquilo e feliz.
A Amizade
Em 1928, fui convidado para entrar no Diário de Minas e o Carlos era o redator chefe, assim nos tornamos muito amigos. O Carlos era aquele temperamento dele, um pouco arredio… Comigo ele se tornou muito íntimo, nos tornamos muito amigos.
Quatro anos depois, em 1932, eu o convidei para padrinho de casamento. Ele foi e fez essa coisa que me comove até hoje. Foi uma coisa excepcional porque ele tem horror a viagens, não é do temperamento dele.
Naquele tempo a viagem de trem de Belo Horizonte a Montes Claros levava 20 horas num trenzinho fumarento, desagradável, uma viagem muito pesada. Ele foi, hospedou-se em casa de meu pai e ficou lá três dias.
Devo ter um retrato do grupo que formou em torno dele; ofereceram lá um almoço a ele numa chácara. Ele já tinha um nome de projeção, já era poeta muito conhecido em Minas, já tinha publicado Alguma Poesia.
Ele ficou gostando muito de Montes Claros, de vez em quando ele fazia umas crônicas e referia-se a Montes Claros, aos doces que ganhava de lá. Anos mais tarde tornou-se meu compadre, é padrinho de meu último filho.
Pelo Telefone
Nossa amizade durou 59 anos, de 1928 a 1987. Não nos encontrávamos frequentemente, as nossas relações eram mais telefônicas ou nos encontrávamos nos cafés. A casa dele eu fui uma ou duas vezes. Quando a Maria Julieta fez um ano eu fui lá com minha mulher, eu até escrevi um pequeno artigozinho, O Primeiro Aniversário.
Eu ia raramente a casa dele, uma vez ou outra ele esteve aqui em casa. Eu o convidei para jantar, mas ele não gostava de ser convidado para jantar, não fazia parte do costume dele. De modo que a gente evitava esses convites para não forçá-lo à recusa.
Mas pelo telefone nós conversávamos diariamente. O Drummond nunca deu intimidade a ninguém. Ele era muito afetuoso, mas intimidade propriamente não. Ele se defendia muito.
Sabe como ele dava a mão à gente? Ao cumprimentar a gente, a mão dele se escorregava. Era defesa. A grande atividade dele era pelo telefone, por causa da timidez. Mas ele gostava muito de conversar com uma porção de pessoas, porque ele ria muito com as anedotas que a gente contava a ele.
Era dos homens mais bem informados do Rio porque era muito telefonado. Ele achava muita graça nessas coisas todas. Ele se ria muito. Mesmo ele e o Bandeira, o amigo mais antigo do Carlos, não se frequentavam.
O Carlos gostava imensamente dele e não ia um a casa do outro, se falavam por telefone ou encontros de rua, de cafés. Antigamente havia cafés literários aqui no Rio, tinha o Amarelinho, o Vermelhinho.
Então era onde a gente se reunia, porque o Carlos preservava muito a intimidade dele, guardava cerimônia. Ele não manifestava curiosidade sobre a vida dos outros e nem admitia que se investigasse a vida dele. Ele se preservava muito.
A última Carta
Quando eu fiz 80 anos o Carlos me escreveu esta carta, aliás, a última carta que ele me escreveu. Ele foi muito generoso. Ele já estava doente, já tinha tido enfarto, estava emocionado. A morte de Drummond causou uma comoção nacional, foi impressionante.
Aqui é a carta: Querido Cyro, uso de uma geração (vamos botar de lado os 4 aninhos de diferença) que são hoje alegres de uma alegria sã por vê-lo integrado na casa nobre dos oitenta. E não só eles você tem muitos amigos e todos regojizam pela ilustre companhia que reforça espiritualmente em particular o nosso time reduzido, mas seleto. Foi bom ter contado ao longo de todo esse tempo com sua presença delicada e leal que nunca me faltou nos mais diversos momentos. Chegou a hora de agradecer-lhe por tudo que recebi de seu coração fraterno. As palavras exprimem pouco do sentimento. Em todo caso é através delas que devo exprimir quanto me agrada ter sido companheiro de alguém como você que serviu às letras e ao país com exemplar dignidade numa vida que foi útil e discreta. Receba o meu carinhoso abraço que é também da Dolores, da Maria Julieta e se estende a Lilita, aos filhos e aos netos do casal. Seu velho Carlos Drummond, 1986.
Dolores Drummond
Arp – Como está a d. Dolores? Foi um golpe duplo terrível.
Cyro – Eu tenho me comunicado com ela e Pedro Augusto. Ela está bem, naturalmente que é… Mas ela está resistindo bem. Está com o neto Pedro Augusto. Está com o neto com ela, viu! (Ele louvou com admiração a dedicação do neto Pedro).
E José?
Arp – Ele nunca falou com você sobre o irmão dele, José, que ele admirava muito? Fez vários poemas para ele.
Cyro – Não, sei que ele gostava muito do Altivo.
Arp – O Altivo foi quem inventou o Carlos praticamente. Mas a grande paixão do Carlos foi o José. Quando Carlos saiu de Itabira, recém-casado e com dificuldades, José deu a ele dinheiro para se manter em Belo Horizonte, até que ele se ajeitasse. O José era um sujeito boêmio, romântico. Sei dessas coisas por eu ser itabirano e o Carlos me confidenciava muitas histórias de família. O pai era muito severo e então quando eles faziam um mal feito, a mãe os escondia porque o pai castigava mesmo.
Itabira
Cyro – Ele dizia que tinha medo de ir a Itabira e se emocionar muito. Porque a Itabira dele desapareceu, isso é o que ele sempre dizia que a Itabira dele desapareceu. Como ele era muito emotivo, a própria morte dele foi emotiva. Não ir a Itabira era para se poupar, é por excesso de amor a Itabira. Aliás, o poema Confidencia do Itabirano é extraordinário… “Vivi em Itabira, principalmente nasci em Itabira”. Você vê o que é um grande poeta, com palavras simples ele compõe versos de gênio: “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do Mundo”. A ressonância que isso deixa no espírito da gente…, estes dois versos são de ressonância profunda.
A Festa
Cyro – Tenho uma história engraçada. No lançamento de Alguma Poesia os amigos do Carlos foram para o restaurante do Automóvel Clube para uma comemoração entre amigos. E já no meio da reunião o Pedro Nava abriu a braguilha e sentado mijou debaixo da mesa e aí a turma toda fez o mesmo. Olha nunca mais o Automóvel Clube aceitou esse tipo de reunião de intelectuais.
O Poeta Maior
Cyro – Acho que o Carlos era muito bom nesse negócio de dizer que fulano é maior que sicrano. Ele até deu uma entrevista nesse sentido, de que os poetas são diferentes um dos outros, mas nenhum é maior que o outro.
A mim, por exemplo, a poesia que mais me tocou na vida foi a de Drummond. Eu sempre disse o seguinte: que não aderi ao movimento modernista, quando eu entrei na corrente modernista entrei tardiamente, já foi em 1928, o modernismo estava se dissolvendo, mas eu não aderi ao movimento modernista, eu aderi ao Carlos Drummond. Eu gostava muito dele.
A minha formação também era um pouco diferente. Você vê o meu primeiro livro O Amanuense Belmiro, não tem nada de modernismo. Aquilo é linha tradicional, um romance tradicional com certa influência machadiana.
Certa ocasião exageraram um pouco isso dizendo que a influência de Machado em O Amanuense era excessiva. Relendo agora há pouco tempo Machado não vejo isso.
Eu acho que há famílias espirituais de escritores. O Machado de Assis, ele próprio diz que foi influenciado por Laurence Sterne (1713-1768) e Xavier de Maistre (1763-1852). Eu reli há pouco tempo os dois, e não encontrei. Acho que Machado superou Sterne e Xavier. Eu pertenço à família do Machado de Assis, me considero um primo pobre dele.
Arp – Já o Drummond não tem família espiritual, ele criou a família dele.
Cyro – É, o Carlos é original. Aí é que está a importância do Drummond, ele é um poeta profundamente original. Ele não acusa influências. Há naturalmente confluências francesas, um pouco do modernismo francês. Todos eles receberam essa influência, o modernismo veio da França. Mas o Carlos Drummond é realmente original.
Arp – Interessante é que ele é camoniano, ele sabia o Conto IX, aquelas estrofes fortes, ele sabia de cor o conto da Ilha dos Amores.
Cyro – Sim, A Máquina do Mundo é o ritmo camoniano.
Arp – (com volúpia camoniana). Ele gostava muito dessas coisas escritas num sentido elevado. Uma vez eu pedi a ele que dissesse o que é erótico e o que é sensual. Porque ele odiava sensual e adorava o erótico.
Cyro – As coisas se mesclam muito, o erótico é mais natural, mais delicado, o outro é mais grosseiro é o amor físico.
Arp – É, mas não existe uma linha de demarcação. Por exemplo, o Drummond recitava sempre o erótico. Ele sabia de cor o Conto IX, A Ilha dos Amores. Aquelas fadas com os portugueses e os heróis, a verdadeira sacanagem que Camões escreve.
Academia Brasileira de Letras
Arp – Quando o Drummond era professor em Itabira ele foi ouvido pelo jornalista Jayme de Barros (O País) e meteu o pau na Academia.
Cyro – Houve um fato posterior com um grupo de escritores que assinaram um documento dizendo nunca pleiteariam a Academia, isso há uns trinta ou quarenta anos atrás. Todos eles se candidataram, exceto Carlos.
Mas o Carlos, para você ver, ele tinha até apreço pela Academia, ele dizia que tinhas muitos amigos, apenas não queria entrar porque é do temperamento dele. Ele me dizia que ficava profundamente perturbado quando tinha que atravessar uma sala cheia de pessoas.
O Sabadoyle por Cyro
Em torno de Drummond fundou-se no Rio o Sabadoyle. Vou contar para vocês como surgiu isso. Um dia, eu morava em Brasília e passando daqui para Brasília com o Juscelino Kubitschek, fomos a livraria do José Olympio e o Plínio Doyle me fez o convite para ir a casa dele no sábado: ‘porque você não vai lá em casa um sábado, o Carlos está indo lá’.
O Carlos ia a casa do Plínio para consultar revistas para a redação de suas crônicas. O Plínio tem uma coleção de revistas fantásticas. Ele ia com esse fim, de colher material. O Plínio criou em torno do Drummond uma pequena academia e que no fundo, no fundo aquilo é que sitiava o Carlos, cá entre nós [rindo].
Criou-se o Sabadoyle em torno do Drummond, hoje subsiste, tornou-se uma instituição. O Plínio é muito querido, muito estimado. Mas começou o Sabadoyle assim: ele convidando os amigos para irem bater um papo com o Drummond na casa dele aos sábados. E o Carlos aprecia sempre, mas rigorosamente às 5 horas ele saía e os outros ficavam.
Homenagens ao poeta morto
Cyro – O Carlos não gostava disso, mas devemos contrariar o poeta, porque Drummond não mais se pertence. O Drummond era contrário a essas homenagens, principalmente quando feita a ele, mas no caso devemos contrariar o poeta. Ele é patrimônio do Brasil e merece homenagens do público dele. Devemos prestar homenagens contra a vontade dele.
Arp – Você disse muito bem. Eu vou mandar esta mensagem pro Carlito Maia. Porque o neto é contrário e vem a público dizer que o avô não gostava. É isso, ele é de nós todos e cada um de nós tem direito nenhum sobre ele. Ele é da nacionalidade realmente.
Excelente! Ilustrações belíssimas!