Cinco décadas depois, o mundo pede outra Primavera de 68
Veladimir Romano*
O começo do conflito nos territórios africanos onde Portugal, entrando a década de 1960, detinha suas “províncias ultramarinas”, retirava sono aos jovens, perturbava famílias, levando essa juventude a uma das maiores fugas do país. Se o Estado Novo já limitava pensamento através das instituições policiais, religião e da Censura, vivia então ingrata liberdade na maior escuridão na qual a população portuguesa se foi acomodando.
Anos passaram, novos adolescentes crescendo, virando militares – e assim falavam na época: «Estamos a mandar para Angola, Moçambique e à Guiné, carne pra canhão».

Pessoalmente, depois de uma feliz viagem a Cabo Verde em 1966, passados quatro meses, de volta a Lisboa, logo a preparação do passaporte seria escape certo em fuga ao ambiente cinzento-escuro onde alegrias apenas se resumiam rapidamente nos dias das festas tradicionais ou populares.
Ou ainda, amizades bem solidárias, famílias muito unidas por entre festejos dos golos primeiramente do Peyroteo e Matateu, embora depois chegasse Eusébio que seria o abono familiar de todos os portugueses… «Aquém e além mar..». Quando o Benfica jogava cartada internacional, o país parava e rezava; era a vitória nacional em risco evidente.

Muito viveu e marcou na memória do povo português, a presença da seleção nacional (Magriços) na Copa Mundial de 66 disputada na Inglaterra; ora, liderado pelo grande estrategista Otto Glória, paulista da mais pura gema, treinador de futebol apaixonado pelo país dos bolinhos de bacalhau, trazendo sucesso aos três maiores clubes desde Porto, Sporting, Benfica.
E, também, muita felicidade nas torcidas, finalmente, preparando os “Magriços”, marcando sua primeira presença positiva com orgulho e elevada moralmente pelas exibições dos jogadores, assim, pequenos nadas que podem mudar o sentido dos limites fazia subir sentimentos nacionalistas de tanto agrado do regime; a humildade do povo, perdoava a intromissão do Estado Novo.

Porém, o tempo sem parar, rápido chegou 1967. Sem ansiedade mas cuidando a nova geração de futuros militares carne para canhão, novamente famílias, corriam ao Governo Civil na expectativa de conseguir passaporte, fugindo depois a setenta pés a outras paragens bem longe do conflito colonial. Desse modo, muitos jovens com dezesseis anos colocaram pés a caminho de Paris, Londres, Roma, Hamburgo, Berna, Amesterdam ou Estocolmo, nem olhando para trás.
Paris era uma festa revolucionária
Paris, mais perto (vinte duas horas de trem ou duas horas e meia por avião desde Lisboa), era o oásis na miragem dessa fronteira salvadora. Cidade maravilhosa, repleta de charme por todos os cantos, cosmopolita, carregada culturalmente pelo cruzamento de vários mundos, cativante, sem complexos, respirando liberdade em todos os poros e bons salários onde cada novo candidato a parisiense, se realizava.

A quem chegava, tudo parecia viver no lugar certo. Paris fascinava. Pela primeira vez se viam povos de múltiplas origens sorrirem quer em dias saudados com sol dourado ou em momentos marcados pela chuva intensa ou mesmo no frio do inverno onde as ruas, praças e jardins se vestiam de branco entre dezembro a fevereiro.
A vida recria hábitos e estes atributos constantes normalizando a nossa existência mesmo numa localidade inicialmente considerada “estrangeiro”. Não, em Paris se entranha no corpo e em pouco tempo, passamos igualmente ao instante emocional de sentir a cidade, seus instantes, palpitações infinitas, tanto que depois do verão de 1967, ninguém estranhou alguns estudantes se manifestarem com pequenas palavras de ordem porque quando se vive em liberdade natural, tudo pode acontecer, nada será interpretado como aquele desafio ao sistema e seu respetivo poder.
Mais ainda a quem é jovem chegado de outro país marcado por ditadura fascista agoniando em guerra colonizadora, repetidamente, analisa essa postura exigente dos estudantes apreciando como a liberdade pode ser um longuíssimo corredor sem brechas, mas frágil caso a sociedade não tenha essa primazia como arma pacífica dedicada na moralização e alimentação das reivindicações sociais.
O livre arbítrio se afirma com pormenores semânticos, monopolizando linguagens acostumadas pela leitura aberta, cristalina quando jornais, revistas, livros, teatros, cinemas e canais de televisão; não sofrem qualquer impacto negativo do regime e suas forças controladoras da verdade, da informação e notícias levadas a bom porto são prioridade reivindicada nas leis sócio-comunicativas. Por isso, logo com a virada obrigatória do novo ano de 1968, ninguém, nem mesmo incitadores estudantes, podiam saber o que estava nascendo com a entrada do mês de março. Uma complicada versão revolucionária de outros tempos entre proletariado e burguesia, combatendo velhos do pensamento conservador, oportunistas contra progresso e reformas sociais.
Pois é, para espanto de muitos, março nasceu perturbado no centro universitário mais burguês de França; seja, na universidade de Nanterre na zona mais ocidental da Paris. A reivindicação, por incrível, se baseou na “liberdade sexual”!
Afinal, havia uma censura contra adolescentes poderem praticar sexo livremente, enquanto o poder nem governo se preocupavam com outros afazeres, nem corpo policial mandou, eram filhos da burguesia, meninos mimalhos vivendo ainda numa sociedade totalmente moralista, conservadora, ainda traumatizada pelas guerras da Indochina até ao último reduto do Magrebe, a querida Argélia, sedutora do seu bom e abundante petróleo com alta qualidade do gás natural.
Alguns dias embora poucos, trouxeram calmaria. Logo, seguidamente mais estudantes saltaram às ruas e assim se compreendeu que começava uma revolução inicialmente de ordem cultural, mas rapidamente também tomaria contornos políticos quando movimentos esquerdistas aprenderam o caminho.
Manifestações de terno e gravata onde meninos sem harmonia gritavam palavras com meninas prendadas de cabelinho curto, saias e sapatos de boa marca, faziam número para encher o panorama das marchas repetidas nos dias seguintes, até que já no final de março, maoistas, anarquistas, socialistas e comunistas deram outras reivindicações claras, frontais e mexidas, pedindo reformas sociais: tinha chegado o momento político.

Com perturbações no centro urbano de Paris, o histórico presidente Charles De Gaulle não espantou, recomendando corpo policial vigiando excêntricas mas brutais escaramuças entre estudantes de direita e esquerda. Maio aparecia e tudo se enrolava com a enorme manifestação do dia 3, aumentando agora movimentos progressistas a parada.
Semanas depois, no dia 12, sindicatos decidirem apoiar novas reivindicações dos estudantes pedindo trabalho para jovens diplomados mas precários, revisão na Previdência Social, liberdade para os sindicatos até então limitados pelas forças patronais, aumento salarial, maior acesso ao ensino superior das camadas ganhando parcos recursos financeiros, subsídios, entre outras mais importantes reestruturações sociais.
Sem respostas concretas dos governantes nem dos meninos da Nanterre para uma fusão única, a esquerda radical saiu na rua queimando veículos, jogando mercadorias nas rodovias logo pela manhã, enquanto grupos anarquistas se dividiam pelos bairros juntando matérias inflamáveis, ateando fogueiras no meio das ruas, também procurando incendiar edifícios públicos. Pensando em quantos acontecimentos, julgando a vida em França, país onde no passado muita coisa aconteceu desde o Absolutismo, passando pela Monarquia, Anarquismo, Republicanismo, Nazismo; faltando mesmo poucos casos, somente reflexos, efeitos dos anos napoleônicos evitaram franceses chegarem ao Socialismo-Comunista, escutava notícias de um Portugal fantasiando uma “Primavera Marcelista” de baixo combustível reformista… outras realidades ainda tingidas pela tinta cinzento-escuro das agonias lusas.
Por Paris, um dos maiores responsáveis na chefia administrativa: George Pompidou apela à autoridade e à repressão policial, decisão errada de gente ultrapassada pelo tempo. Só trouxe mais violência aumentando perturbações, intensos dias de uma revolução que já se adivinhava nas palavras, discursos, análises e observações de grupos agora imparáveis, respeitados intelectuais como Roger Garaudy, Jean Paul Sartre, Frantz Fanon ou Aimé Césaire [estes últimos dois, rebentos crioulos da colonização francesa]; lutando contra ideias conservadoras, a estagnação e teimosia política de um certo tempo amarrado a traumas aprendidos no período do longo conflito contra imposições da ocupação nazi.
Graças a uma retenção policial ou intervenções menos musculadas, milagrosamente, apenas de lamentar precisamente a morte de um policial, feridos civis de quantidade apreciável por causa da tomada repentina do centro universitário da Sorbone e a instalação ali numa das mais antigas, prestigiadas escolas superiores francesas, bem organizada comuna estudantil…
O rastilho que faltou a outros universitários tomou novas faculdades, ocupação de fábricas, laboratórios públicos, escolas, paralisação dos transportes urbanos e nacionais… Paris e a França, até final de maio, seguindo alguns dias de junho, por entre transtornos, ansiedades, incertezas, intensas batalhas urbanas deslocando jovens das periferias para dentro de Paris [a capital francesa foi sempre, desde o primeiro dia o palco principal das reivindicações].
o poder imaginativo dos estudantes durante a noite e madrugada adentro atiçando enormes fogueiras, quando consequentes ocupações dominavam movimentos. Isso até que no dia 30 de maio, surpreendente foi escutar a voz do presidente Charles de Gaulle pela rádio avisando que renunciava da Presidência, prepararia eleições rápidas, sem antes atender pedido reivindicativo dos movimentos. Pedia aos sindicatos para terminar greves e aos estudantes para libertarem escolas. Bom de assinalar que nunca jamais Charles De Gaulle, sendo chefe das forças militares, algum dia ameaçou ou mandou chantagem contra revolucionários ou sindicatos.
Maio de 1968, uma nova consciência social acrescida que, afinal na luta, era muito maior do que uma simples reivindicação relacionada com a necessidade sexual de adolescentes… Enquanto nos EUA, em São Francisco da Califórnia, anos antes, fazia tempo o movimento “pop” havia lançado o famoso “Flower Power “; célebre “Força das Flores”, ideologia não-violenta dos “hippies” com seu slogan: “Igualdade, Liberdade, Sexualidade”, regras de uma nova geração que franceses jovens burgueses ainda procuravam.
Na época, o “Liberation”, conceituado jornal parisiense, editou estatística curiosa mas oportuna, dando a conhecer dados até então desconhecidos. Em 1940, mais de 60 mil estudantes frequentavam cursos universitários em toda a França; mas em 1963, este número chegava em mais de 63 mil; entre 1967/8, subiu para pouco mais de 600 mil, número em larga escala acima de países como Itália, Alemanha ou Reino Unido.
Por outro lado, em retrocesso, os agricultores, durante 1945, em França, seriam 7 milhões trabalhando no campo, em 1968, apenas 3 milhões ainda resistiam [acrescentando nós em outros estudos analisados que depois da formação da União Europeia, a França tem hoje não mais que 500 mil agricultores produzindo diretamente ao mercado].
Da pequena compreensão mas crescente e revolucionária colocação das emendas sociais, ninguém precisou juntar que algum daqueles ditosos movimentos populares pudessem criar crise governativa, nivelando a queda deste porque reivindicações estudantis nessa época já haviam sucedido pelo mundo sem consequências tão radicais; no entanto, Maio de 68, a primavera consciente, alguns meses seguintes deram em arrastar debates e analogias destinadas ao futuro social francês que iriam sinalizar igualmente tempos novos de outras sociedades. Reflexo tendencialmente universalista desse reboque revolucionário.

Fazendo agora um balanço meio século depois, em Paris a Primavera 68 marcou geração procriando mudanças capitais na vida dos povos, particularmente na sociedade europeia. Porém, países como Portugal, Espanha e Grécia nada de novo avançariam, seriam exceções na regra pela dominação fascista impondo estas pela continuidade tenebrosa repressivas ditaduras atrasando processos sociais, criando vícios que ainda no presente, colateralmente, afligem mecanismos ao desenvolvimento.
Foi grande a crise de 1950 com efeitos do sangrento conflito pela independência da Argélia, mantendo outras instabilidades nos anos de 1960 e 1970 até nascerem movimentos revolucionários ou paramilitares no seio dos países como a França [Frente de Libertação Nacional Frontu Paesanu Corsu di Liberazione], povo rebelde lutando pela libertação da Córsega, Itália [Brigada Vermelha – Brigate Rosse], Alemanha [ Fração Exército Vermelho -Baader Meinhof], Inglaterra [Irlanda do Norte -IRA], Espanha [País Basco – ETA] e a Grécia [Organização Revolucionária 17Novembro – Epanastatiki Organosi dekaefta Noemvn], a maioria procurando combater pensamentos fascistas, heranças da velha teoria desenvolvida pelo sistema imperialista dos césares romanos, ficando retida no mais profundo subconsciente voltando em força com outro sistema possessivo aplicado pelos nazis, causando como se conhece a Segunda Guerra Mundial.
Depois de 1946, muitas reformas políticas determinaram a social-democracia como dominante na reforma política e melhoramento social dos povos a Ocidente, contrariando quaisquer influências mais evidentes vindas do Leste europeu. Assim se compreendeu da necessidade altruísta pela criação de uma Europa sem fronteiras, feita pelos e para os povos.
O mundo assumindo os anos de 1970, vivendo com núcleos revolucionários, sofreu nessa imposição revolucionária como efeito colateral dos acontecimentos das reformas conseguidas pelos Franceses no Maio68 onde e por causalidade uma direita chauvinista, mimada e caprichosa, se sentia particularmente discriminada pelos seus mandantes moralistas conservando meninas virgens para santificados casamentos, logo despertando consciências numa onda esquerdista, mudando rumos acontecidos a outro patamar reivindicativo numa sociedade que afinal para jovens chegados a Paris, fresquinhos mas de olhar triste e abatido, pensando encontrar na cidade das luzes liberdade nunca conhecida nas terras lusas sofridas, submissas ao Estado Novo fanaticamente colonial, aprendiam como a liberdade por vezes ilude mesmo nos locais julgados supremos.
Seria bom não deixar cair a ideia e a sedução tentadora revolucionária, porque o mundo que não deseja mudança para progressos sociais numa subida em flecha dos últimos anos plenamente arrasada pela mediocridade política, montantes industriais por onde a corrupção se fez nota dominante, responsáveis ou líderes acossando, destruindo princípios democráticos, sujando instituições essenciais ao bem e bom serviço social, pede esse grito adormecido dentro de cada um, levantar a voz, juntar as mãos, demandar novamente espaço urbano, regiões rurais, expulsar o crime organizado que ocupou o poder.
No fundo silencioso das angústias, o mundo anda pedindo possivelmente outra Primavera igual a de 1968 quando jovens fugindo da escuridão, renegando servir pátrias fascistas, podiam encontrar, aprender lições ainda que violentas, mas naturalmente humanas, hoje, na memória, momentos belos que enriquecem a verdadeira fragilidade da alma, mas fortalecendo essa arma temporal da chama ardente que suporta cada revolução: a coragem, resistência e determinação de um mundo teimosamente melhor para todos.
*Veladimir Romano é jornalista e escritor luso-caboverdiano, colaborador deste site Vila de Utopia
Bacana, Vla, a contextualização daquela época em vários locais e situações.
Interessante notar que o sentido da busca da liberdade pela democracia correu mundo, apesar de alguns lugares tipo Portugal e Brasil terem se mantidos renitentes em suas esdrúxulas ditaduras.