‘Biqueira’, de Rafael Vaz

O Bule – Na busca constante de se entender e procurar entender o mundo onde vive é que Rafael Vaz começou suas primeiras experimentações com as palavras. Paraense da cidade de Altamira, sua alfabetização começou autodidata andando com sua mãe pelo Centro da pequena cidade e perguntando o que eram as placas e fachadas das lojas com aquela diversidade de cores e fontes.

Daí pra frente, sua vida foi apenas leituras. Encontrou nas letras as explicações e significado para quase tudo que o provocava e assim veio a vontade de manter-se em curso com a formação e o conhecimento.

Ainda jovem mudou-se para Goiânia para cursar faculdade. Ainda sem muitos amigos, começou a registrar suas experiências em um caderno, como um diário. Entre chateações por estar distante de Altamira e as novas relações encontradas em Goiânia, surgiram os primeiros poemas deste poeta, que no início falava de suas saudades da terra natal, assim como de todo o deslocamento de ser estrangeiro à nova cidade que não era estranha só por ser capital. Tinha uma cultura totalmente longe daquilo que trazia consigo na bagagem.

O autor com a sua obra (Foto: Divulgação)

Para saber o que queria e escreveria, passou por muitas experiências e, como um novo mundo, desbravou e conheceu as ruas, becos e lugares da cidade, criou um relacionamento com as paredes e os pixos falavam com ele.

Como um retirante, sobreviveu na capital através de empregos formais de cargas e serviços gerais. Morou na rua onde encontrou sua verdadeira poesia e o que estava disposto a contar. Transformou-se então no poeta e passou a registrar nas paredes e folhas seus poemas e sua presença no campo vivo que é a cidade.

Foi ao submundo e conheceu os ilícitos e proibidos, drogas, moribundos, cracudos, prostitutas, na noite formava sua família de conhecidos, suas conexões de sobrevivência na noite da selva de pedra goiana.

Quando se cansou, partiu para outros estados e cidades. Acompanhado ou sozinho,  precisava ver para crer nas verdades que se diziam por aí e registrava toda sua experiência para compartilhar o que via com aqueles que lessem.

A arte passa a ser motivação, motor, alimento. Passa a se dedicar simplesmente à sua produção e muitas vezes é só o que lhe sobra. Permanece pelas casas de amigos que o recepcionam por um tempo para se limpar e acomodar-se.

Torna-se peça viva da cidade, transborda sua poesia em lambes e pixos pelas paredes. Biqueira é fruto dessa época. Diego El Khouri então resolve convidar Rafael Vaz para publicar um livro de poemas autorais pela editora que havia criado com outro louco, o Fabio da Silva Barbosa.

Dava-se a largada para a realização do que foi sonhado. As poesias haviam se transformado durante esse tempo e o livro então chega com uma ideia já bem pensada, surgindo Biqueira, o primeiro livro de poemas autorais de Rafael Vaz.

Biqueira, de Rafael Vaz, é um livro que pela capa já nos mostra por onde vamos passear, por onde esses poemas passam. A capa mostra uma pessoa que tem em suas mãos uma latinha onde está o título do livro. O corpo se prepara para dar seu primeiro trago, assim como nós que abriremos as páginas dessa viagem. Uma imagem muitas vezes censurada e negligenciada por nossos julgamentos.

A capa é do próprio autor, com a diagramação de Jackson Abacatu e a diagramação do miolo de Fabio da Silva Barbosa. Obra lançada no segundo semestre de 2021 pela Editora Merda na Mão, a apresentação foi feita também por Fabio da Silva Barbosa, que nos conta como conheceu Rafael Vaz e iniciou essa parceria que vai para além do livro. O poeta  também virou o apresentador do  programa de rádio “Aleluia Nunca Mais, A Trilha Sonora do Fim do Mundo” pela Rádio Rota 220.

Algumas imagens de entorpecentes iniciam nossa viagem. O título do livro sempre busca nos levar e falar desse lugar. De passagem e permanência, mas ao mesmo tempo de medos e mortes. Biqueira é uma gíria popular para “boca de fumo”, o lugar onde são vendidos os entorpecentes. Os poemas do livro são as drogas que o autor repassa e espera que o leitor chape durante sua leitura.

Começamos o livro com a frase “Acordo de manhã, meu despertador é o Sol…” e Rafael Vaz nos localiza na história. O início da sua viagem, este lugar onde todos participam: policiais, moradores de rua, traficantes, crianças, jovens, famílias, rappers… Todos tentando ser FREE. A realidade nua e crua é apresentada e o risco sempre estará nos esperando. O autor não esconde sua participação neste cenário de guerra.

Artista visual, aqui Rafael Vaz não tenta colorir ou pintar a realidade, tudo é muito cinza e banhado de sangue. Sempre nos revelando algo que é escondido ou maquiado. O poeta acredita que a obra não é só por ele, afinal, é o que sobra quando se tem apenas uma caneta e um caderno nas mãos. Para o autor é uma questão de sobrevivência, “todos os dias eles nos matam, todo dia nós nascemos”.

A vida não para e no dia seguinte continua a luta pela sobrevivência. Os poemas não descansam, a luta para comer e permanecer vivo é feita todos os dias entre as trincheiras criadas pelas relações humanas. Histórias das duas cidades (Altamira-PA/Goiânia-GO) se misturam para contarem os mundos e as relações pelas quais o poeta passou, sempre entregue a esta parte da sociedade que vive à beira e sem eira.

Algumas mortes foram necessárias para que o poeta nascesse. “Fazíamos piadas das desgraças”. Percebemos que a Biqueira estava sempre presente no cotidiano do poeta, a busca por entorpecer os sentimentos durante a realidade macabra, e ao mesmo tempo as amizades e amores criados nesses lugares, “causa, destino, coisas sem nexo, que façam sentido em mim”.

O autor é culpado e também culpa os outros, mas busca dentro de si sua própria delicadeza, pois ele sabe que também pode agredir. Cada poema parece uma ida à Biqueira, uma história retirada desse lugar, do momento desses encontros. Alguns passam muito depressa, outros permanecem para usarem ali mesmo e entre viagens e diálogos criam laços de amizade e sobrevivência.

O poema título do livro, “Biqueira”, é uma releitura do poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa. Nessa versão vemos a relação do autor com a Biqueira, este lugar perigoso para a comunidade, mas que muitas vezes é o único lugar para muitos jovens socializarem e criarem suas cadeias de relações.

Nas palafitas de Altamira ou no Centro de Goiânia, o autor mostra que algumas relações podem se repetir diante da realidade que se escancara à sua frente. É o maior poema do livro e nos situa no caminho em que a obra transita.

“Ser artista é sentir o mundo”. “A vida é um acaso”, o autor sempre nos avisa. Se perde e se aventura pelos relacionamentos e tudo mata. “Todos os poetas. Matam, matam, matam”, mas o gozo é complacente e ele também goza “é anunciação do poeta”. Acompanhamos o autor em seu último trago, ficando o principal aviso:

“Os poetas bons estão na boca do povo. Os melhores estão morrendo em suas casas”.

Título: Biqueira

Autor: Rafael Vaz

Formato: 14X21 cm

Ano: 2021

Páginas: 94

Capa: cartão 300 c/ laminação brilho

Arte da capa: Rafael Vaz

Diagramação da capa: Jackson Abacatu

Diagramação do miolo: Fabio da Silva Barbosa

Como adquirir a obra? 

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