“Não há que se falar em reconciliação de Drummond com Itabira na Flitabira. Ele nunca brigou com a cidade”, contesta Graça Lima
Carlos Cruz
Diferentemente do que foi divulgado pela Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade (FCCDA), não é apenas “há vinte anos” que Itabira celebra em eventos literários, inclusive com convidados de fora, o nascimento de seu filho mais ilustre.
Como também não é verdade que o Festival Literário de Itabira (Flitabira), sem deixar de lado a sua importância, tenha representado a “reconciliação” do poeta maior com a sua terra natal, como foi equivocadamente propagandeado na Semana Drummondiana, com grande repercussão na mídia itabirana.
Os jornais de fora não apareceram para cobrir o festival, nem mesmo a Globo, que invariavelmente aparece por aqui no aniversário de Drummond.
Quem contestou essas duas versões foi a professora de literatura Graça Lima, em bate-papo literário no Flitabira, no sábado (30), véspera do aniversário do poeta, e que há mais de 50 anos trabalha com as obras do poeta em salas de aula, em artigos e ensaios.
Graça Lima é também uma das idealizadoras, desde a década de 1970, das feiras literárias realizadas pela Fundação Itabirana Difusora de Ensino (Fide). Assim como foi também uma das organizadoras, em 1980, juntamente com as professoras Ângela Sampaio e Ana Lima, da primeira Feira do Livro Infanto-Juvenil de Itabira, quando veio à cidade o escritor Orígenes Lessa.
Reflexões
“A propósito desse evento, vamos refletir sobre uma palavra que tenho ouvido nas conversas e palestras aqui no festival. Fala-se muito em reconciliação de Itabira com Drummond, quando a bem da verdade, devo dizer que não há porque empregar esse termo”, contestou Graça Lima, mas não sem antes reconhecer a importância do Flitabira como parte da Semana Drummondiana.
Para contestar essa versão, a professora discorreu sobre o significado do termo reconciliação. “Conciliar é reunir partes geralmente contrárias, daí que vem reconciliação. Se é assim, acredito que essa palavra vem sendo usada no sentido de aproximar divergências”, prosseguiu a professora em sua explanação.
E didaticamente explicou: “De uma forma mais simplificada, se é reconciliação, imagino que seria tentar unir duas vezes interesses opostos. O nosso questionamento é o seguinte: a propósito de que essa palavra é usada?”
“Se acreditarmos que conciliar é unir o que está sem paz, então devemos achar que este evento está sendo capaz de produzir milagres de mudar completamente a visão que se tem de Drummond e de sua terra”, ironizou. “Drummond nunca brigou com Itabira, portanto não há o que conciliar e nem reconciliar”, enfatizou.
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Caminhos
A professora prosseguiu: “Não estou com isso menosprezando a iniciativa (do Flitabira), que é da mais alta importância, haja vista a presença de interesse público, mas devemos lembrar do passado”, propôs Graça Lima como importante elemento para se avaliar a nova conjuntura cultural que Itabira passa a viver daqui para frente.
“Não se chega até aqui sem percorrer outros caminhos”, disse ela, sustentando que é importante conhecer esses caminhos até para se dar mais sentido ao festival, que deve ser reeditado nos próximos anos.
E que passe, como é propósito geral, como parte da agenda cultural anual de Itabira, a chegar também aos bairros, a exemplo do que aconteceu, ainda timidamente, com a Semana Drummondiana, como também nos distritos de Carmo e Ipoema.
Conforme Graça Lima lembrou, o que historicamente aconteceu foi uma reaproximação do poeta com a sua cidade natal.
E isso, segundo ele, teve início já em 1968, com a fundação da Faculdade de Ciências Humanas de Itabira, criada para formar professores nas áreas de Letras, Estudos Sociais e Ciências.
“Essa faculdade chega a Itbira para abrir mentalidades”, recordou. “E o que aprendemos na faculdade, levamos para as salas de aula.”
Mas é verdade, relembrou a professora, que Drummond antes disso não era considerado um autor importante para ser estudado nas escolas itabiranas.
“Só eram considerados importantes Olavo Bilac, Castro Alves, Casimiro de Abreu. Drummond pertencia ao movimento literário chamado Modernista, um estilo literário que rompeu com a tradição, com os modelos estabelecidos e essa foi uma das razões para ele não ser aceito.”
Da faculdade para as escolas municipais, Drummond passou daí em diante a figurar com escritor importante. “Foi assim que nos sentimos na obrigação de levar a obra do poeta às escolas, envolvendo todos os níveis dos cursos da Fide”, e também nas outras instituições municipais de ensino.
Desconstrução
Mas não foi só por preconceito e ignorância que se criou a imagem de que Drummond não gostava de Itabira. Ocorreu também uma orquestração mais sutil na cidade para desconstruir a imagem do poeta durante esse período mais repressivo da história brasileira com a ditadura militar.
“Diziam que Drummond não se interessava pela cidade”, assinalou Graça Lima, acentuando também que ele fazia duras críticas à devastação ambiental e ao baixo retorno da atividade mineradora para a sua terra natal.
Foi nessa conjuntura repressiva e de mitificações com notícias falsas (fake-news existem desde sempre) que se criou a imagem negativa do poeta em sua cidade natal. “Foi pelo lado emocional”, disse Graça Lima, citando a forma como descontextualizavam os poemas de Drummond.
Ponto final
Portanto, além de todo o esforço das professoras da Fide em construir uma imagem positiva e realista do poeta e de sua obra, houve ainda outros episódios históricos de grande importância para a reaproximação de Drummond com a sua terra natal.
Um deles é resgatado pela jornalista e arquivista Cristina Silveira, editora drummondiana deste site Vila de Utopia.
“É necessário pesquisar sobre a literatura e Drummond na cidade. Em 1972, quando o prefeito Joaquim Santana de Castro esteve com o poeta no Rio, com o propósito de convidá-lo para vir a Itabira para comemorar os seus 70 anos, ele mais uma vez recusou. E ficou estabelecido que Itabira não mais o incomodaria com esse convite”, foi o que ela resgatou.
“E o Cometa fechou o assunto. Daí pra frente a poesia entrou nas salas de aula e nas páginas do jornal, garantindo a presença do Drummond em nossas mentes. Eu sou fruta da Semana de Literatura, dos Festivais de Inverno, do Cometa. Isso posto, é preciso exaltar as iniciativas de mulheres professoras da Fide, que deixaram o bom exemplo a ser seguido.”
Portanto, não há que se falar em reconciliação do poeta com a terra natal após a realização do Flitabira, foi o que concluiu Graça Lima, lembrando que o festival dá continuidade a uma já longa história de estudos e divulgação de sua obra que não para. Destaque também para a ampla comemoração do centenário do poeta, em 2002, quando era prefeito o médico Jackson Tavares (PT), durante todo o segundo semestre e com maior ênfase na Semana Drummondiana.
Biscoito fino
Como se observa, a exaltação do poeta em Itabira é dinâmica e busca sempre novos atores que possam tornar o “biscoito fino” da poesia de Drummond consumido pela grande massa que não tem acesso à sua obra literária por força da alienação deliberadamente construída por parte daqueles que querem manter o mito de que ele não gostava de Itabira.
Ou daqueles que, quando muito, exaltam apenas o Menino Antigo que vivia na Cidadezinha Qualquer, com as suas “casas entre bananeiras, mulheres entre laranjeiras” – um personagem inofensivo bem diferente do anarquista que foi expulso do colégio por insubordinação mental, chegando-se filiar ao Partido Comunista Brasileiro.
E que publicou no Cometa Itabirano poemas inéditos como Lira Itabirana e O Maior Trem do Mundo, além de outros textos críticos ao modelo de mineração que predomina em sua terra natal.
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“A década de 80 foi marcada por promoções e eventos a respeito de Carlos Drummond de Andrade com a realização de várias Semanas da Literatura, com programação ampla, mas focada no poeta”, voltou a destacar Graça Lima. E que prosseguiu nos anos seguintes, com raras interrupções.
“Ainda não quebramos o preconceito que está no senso comum, mas há muito tempo Itabira se conciliou com Drummond, que por sua vez nunca deixou de gostar de sua terra natal”, reafirmou a professora, já no fim de sua palestra no Flitabira.
Carlos ótimo artigo. Correção’ não jornalista e arquivista não sou mais
Hoje tenho um compromisso no Coletivo Oco da Poesia’ vou utilizar o seu texto ela traz a posição da Graça Lima que é valiosíssima. Tenho opinião contraria’ também bem escrita pelo Altamir Barros. Levarei bons textos as mina da poesia. Beijoca
Creio que Graça tenha se referido a Casimiro de Abreu e não a Cassiano.
Sim, vamos corrigir. Obrigado.
Parabéns Graça Lima por destacar está crença limitante de reconciliação com Drummond!
Ótimas reflexões da Graça Lima! Faltou citar as sugestões que ela enumerou no final da brilhante fala
Parabéns pelos esclarecimentos a população Professora Graça. Estudei na EEMZA e sempre tive, pelas maravilhosas professoras, acesso as obras de Drummond.