Poema de março de 45

Manifestação promovida no Rio de Janeiro pela Liga de Defesa Nacional, em 23 de março de 1945

Foo: Reprodução/
Correio da Manhã

Carlos Drummond de Andrade

Mal foi amanhecendo no subúrbio,

as paredes gritaram: anistia.

Rápidos trens chamando os operários

em suas portas cruéis também soavam

anistia, anistia.

Os bondes vinham cheios. Tabuletas

já não diziam Muda, Meyer, Barcas.

Uma palavra só, neles gravada:

anistia.

Os jornaleiros bradem um papel

de dez metros de alto por cinquenta.

Nesse cartaz imenso, em tinta rubra:

anistia.

Já as lojas pararam de vender.

Os vidros, os balcões se rebelando

beijam teu nome, roçam tua imagem,

anistia.

Se olho para as rosas: anistia.

Para os bueiros da city, para os céus,

para os montes em pé nas altas nuvens:

anistia.

Anistia nos becos, nos quarteis,

nas mesas burocráticas, nos fornos,

na luz, na solidão: só anistia.

E bate um sono. Um remo corta a onda.

Alguém corre na praia. Estes sinais

querem dizer apenas, sem disfarce,

anistia, anistia.

A sorte corre hoje. Último número.

Compro o bilhete. Para decifrá-lo

não preciso de códigos. Avisa-me:

anistia.

Anistia: teu nome se dispersa

no vento de Ipanema e do Leblon,

para se condensar, sopro terníssimo,

sobre todas as casas! Anistia.

Esta é a voz dos mortos sob o mármore,

é a voz dos vivos no batente. Ouço

mil bocas em silêncio murmurando:

anistia.

E ouço as pedras na rua, ouço os insetos,

ouço os andaimes, ouço os guarda-chuvas,

ouço tudo rangendo, reclamando

anistia.

Vem pois, ó liberdade, com teu fogo

e tua rosa rebelde nos cabelos.

Vem trazer os irmãos para o sol puro

e incendiar – de amor – os brasileiros.

(CDA. Correio da Manhã, 19-03-1845 – Pesquisa: Cristina Silveira)

 

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