Um varão, que acaba de nascer
“O filho que não fiz hoje seria homem. Ele corre na brisa, sem carne, sem nome” – CDA
Foto: Reprodução
Carlos Drummond de Andrade
Chegas, e um mundo vai-se
como animal ferido,
arqueja. Nem aponta
um forma sensível,
pois já sabemos todos
que custa a modelar-se
uma raiz, um broto.
E contudo vens tarde.
Todos vêm tarde. A terra
anda morrendo sempre,
e a vida, se persiste,
passa descompassada,
e nosso andar é lento,
curto nosso respiro,
e logo repousamos
e renascemos logo.
(Renascemos? talvez)
Crepita uma fogueira
que não aquece. Longe.
Todos vêm cedo, todos
chegam fora do tempo,
antes, depois. Durante,
quais os que aportam? Quem
respirou o momento,
vislumbrando a paisagem
de coração presente?
Quem amou e viveu?
Quem sofreu de verdade?
Como saber que foi
nossa aventura, e não
outra, que nos legaram?
No escuro prosseguimos.
Num vale de onde a luz
se exilou, e no entanto
basta cerrar os olhos
para que nele trema,
remoto e matinal,
o crepúsculo. Sombra!
Sombra e riso, que importa?
Estendem os mais sábios?
a mão, e no ar ignoto
decifram o roteiro
que é às vezes um eco,
outras, a caça esquiva,
que desafia, e salva-se.
E a corrente, atravessa-a,
mais que o veleiro impróprio,
certa cumplicidade
entre nosso corpo e água. /nossa com o que é água.
Os metais, as madeiras
deixam-se malear,
de pena, dóceis. Nada
é tão rude bastante
que nunca se apiede
e se furte a viver
em nossa companhia.
Este é de resto o mal
superior a todos:
a todos como a tudo
estamos presos. E
se tentas arrancar
o espinho de teu flanco,
a dor em ti rebate
a do espinho arrancado.
Nosso amor se mutila
a cada instante. A cada
instante agonizamos
ou agoniza alguém
sob o carinho nosso
Ah, libertar-se, lá
onde a alma se espelhe
na mesma frigidez
de seu retrato, e baste-se!
É sonho, sonho. Ilhados,
pendentes, circunstantes,
na fome e na procura
de um eu imaginário
que, sendo outro, aplaque
todo este ser em-ser,
adoramos aquilo
que é nossa perda. E morte
e evasão e vigília
e negação do ser
com dissolver-se em outro
transmutam-se em moeda
e resgate do eterno.
Para amar sem motivo
e motivar o amor
na sua desrazão,
Pedro, chegaste ao mundo.
Chamo-te meu irmão.
(10/7/1949)
[Almanak do Correio da Manhã (RJ), 1950. Hemeroteca BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]