Madame Azaléia

Arte: Georgy Kurasov (1958-), da União Soviética

Carlos Drummond de Andrade

De repente, não mais que de repente, como dizia o poeta Vinícius de Morais em um de seus melhores sonetos, Madame Azaléia, que viajou toda a Europa e, de norte a sul, o nosso belo país (está no seu prospecto), surge como a própria Esperança, oferecendo a chave de nossos problemas.

Quereis descobrir alguma coisa que vos preocupa? Quereis fazer voltar para vossa companhia alguém que de vós se tenha afastado? Querei alcançar um bom emprego e prosperidade? Quereis promover um casamento dificultoso? Ou quereis curar alguém – vosso pai ou vossa irmã – do vício da embriaguez? Pois Madame Azaléia resolve tudo isso, “Trabalhos rápidos, sinceros e garantidos”.

É a mensagem que recebo por debaixo da porta de casa, e que me torna agradavelmente disposto para enfrentar mais um dia de trabalho e aflição. Por 50 cruzeiros apenas, das 9 da manhã às 9 da noite, numa rua qualquer, alguém está a meu dispor, para ler o meu passado, interpretar o meu presente e esclarecer o meu futuro.

Arte: Georgy Kurasov (1958-), da União Soviética

O passado não me interessa muito, salvo como teste para comprovação dos dotes de Madame Azaléia, e é mesmo preferível que ela não bula demasiado nele. As dores do presente me são conhecidas; só me falta o conhecimento dos bálsamos, e estes, cerrados no futuro, é que a distinta cartomante-quiromante se propõe a ministrar-me, graças as suas claras e agudas visões.

O negócio das cartomantes é ainda aquele que menores decepções nos causa, e reparem como a industrialização do mundo não o abalou em seus fundamentos e em seu “decor” clássico. Um baralho, as linhas da mão, a sala humilde com a mesinha recoberta pela toalha estampada (hoje de matéria plástica), e esse anúncio ao mesmo tempo mirabolante e ingênuo, que o rapaz biscateiro ou velho aleijado vai distribuindo de porta em porta, porque cada porta é uma dor escondida, ou pelo menos uma ambição insatisfeita.

Quem será insensível a essa pergunta que penetra sorrateira na casa e não se confunde com nenhum outro reclame comercial; essa pergunta indiscreta, generosa, tentadora, fáustica: “Quereis destruir algum mal que vos perturba?” A começar por esse “vós”, solene…

Não importa que Madame Azaléia fracasse. Ela manipula forças demasiadamente poderosas para se vergarem à sua boa intenção.

Damballah La Flambeau, Hector Hyppolite (1894-1948), do Haiti

A consulta não resolverá talvez nenhum de nossos problemas. Entretanto, o fato de haver no meio de tantos consultórios de vísceras e complexos um consultório do destino, que tenta organizar nossa felicidade pessoal (e de dependesse das cartomantes, não tenho a menor dúvida que todas alcançariam , salvo uma escassa minoria destinada a provar, pelo contraste, a magnitude de nosso privilégio e a intercessão dos videntes), este simples fato exerce influência favorável sobre os acontecimentos, ou no mínimo sobre a visão que temos dele.

Raríssimas pessoas deixarão de conceder às cartomantes um crédito, insignificante que seja, de confiança e simpatia, a que se mescla, mesmo em espíritos cultivados, certa dose de temor. Ela pode ser a caricatura de uma sibila, mas resta no coração do homem o sentimento de um mistério específico, privativo, que é o da trama de nossa vida individual, e pode coexistir com a concepção racionalista ou mística do universo.

A uma cartomante não perguntaremos os grandes segredos do sobrenatural, mas gostamos de contar com essa chance de apurar pequenos pontos obscuros de nossa órbita: se alguém nos trai ou nos corresponde sinceramente, se devemos arriscar dinheiro numa incorporação, se estamos ameaçados ou não de úlcera no duodeno.

Wazzan Sa, da Arábia Saudita

Observem que o anúncio, por sua vez, joga apenas com o concreto pessoal: não promete cura para males gerais, nem se embrenha pela política; tudo são interesses do corpo e da alma de cada um, em particular.

Daí talvez a atenção que provoca sempre. E se nem todos procuram Madame Azaléia é porque muitos – como eu – se contentam em saber que ela existe. Em alguma parte da cidade, com suas cartas e sua ciência das quatro linhas fundamentais:

Vida

Cabeça

Coração

Sorte

E ainda com sua imaginosa ignorância, ela pressente ou advinha talvez alguma coisa de nós, triste ou misericordiosa, que está caminhando lentamente em nossa direção.

[Revista da Semana (RJ), 14/6/1958. Hemeroteca da BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

 

 

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