Trovadores de casaca e cravo na lapela 

Veladimir Romano*

Comemorar e lembrar, quatro dezenas e meia de madrugadas depois, a revolucionária alba dos cravos inspiradores, uma atitude muito simples de uma florista de rua, humilde mas de elevado caráter humano, e que virou símbolo ao entregar nas mãos do soldado uma singela flor quando este pedia um cigarro, é reavivar na memória um momento histórico de Portugal.

Ficou marcante tal gesto agora símbolo histórico do mês de abril, o mais importante de Portugal, que marcou no calendário de 1974, o dia 25. E assim Portugal se tornou um país democrático dentro dos padrões do sistema capitalista, neoliberal e cada vez mais ultraliberal, descontrolado, submisso aos esquemas da força imposta pela organização da Banca internacional.

E assim segue vivendo suas agonias de um certo tipo de economias em permanente choque, alimentando corrupção, desvios fiscais, lavagens financeiras, peculato apoiadas em jogos de bastidores, financiamentos descontrolados, ruínas, inclusive de bancos nacionais, dívidas crônicas que recaem sobre o tesouro público. Tudo isso enquanto se escutam palavras de ordem bonitas, sedutoras mas ineficazes.

Quando dirigentes, autoridades e comentaristas falam em “transparência”, “combate”, “reformas urgentes”, “progresso”, entre outras mensagens propagandistas, trata-se de uma cultura que Portugal tem vivido depois do golpe militar contra a ditadura.

Comentaristas políticos sabem de tudo, menos solução para os verdadeiros problemas dessa democracia e que atrasam o país na sua relação com nações mais evoluídas da União Europeia.

Passados todos esses anos, ainda persistem em Portugal problemas herdados do antigo regime como o seu sistema burocrático, assim como o falso aproveitamento das novas tecnologias.

Segue andando no escuro, ainda com resquício do fascismo, esse modelo que já deveria ter sido extinto, mas que continua fazendo das suas. Com isso impede o desenvolvimento com verdadeira proteção e justiça social.

Trovadores lusitanos

Manifestação popular na cidade do Porto. No destaque, o trovador Zeca Afonso (Fotos: Mauro Moura e Sergio Valente)

A velha relíquia aproveitada pela polícia política [PIDE] do presídio Aljube, hoje elevado a museu histórico da capital por onde passaram grandes figuras da luta contra a ditadura, representa fonte inspiradora dos velhos dias quando a Censura perseguia quem escrevia musicalmente anúncios da Liberdade. Trovadores portugueses passaram e sofreram pelas suas velhas masmorras, vindos desde a criminosa Inquisição.

Trovadores foram artistas que nunca faltaram em Portugal, sempre suficientemente inspirados para dissipar a energia negativa dentro dos poderes da União Nacional, partido febrilmente católico criado por António de Oliveira Salazar.

Ideologia fascista que continua estranhamente alimentando alguns esperançados ainda hoje contra o fogo das palavras do cantar rebelde, contrário ao regime fechado, cinzento e antipopular.

Para falar de trovadores lusitanos, teríamos que recuar séculos. Contudo, a instalação do Estado Novo, que ganhou força logo em meados de 1930, e mais ainda no decurso da Grande Guerra de 1940-45, marca um período em que se viu surgir uma das mais combativas vozes que se elevam nessa escuridão histórica.

Zeca Afonso, trovador lusitano libertário

Nomes como os de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco, Pedro Barroso, Luís Cília, Francisco Fanhais… seguindo em fuga para Paris e correndo dos três conflitos coloniais [Guiné, Angola e Moçambique], trouxeram um marco hoje de grande riqueza musical.

Da criação contestatária abrangendo um dos momentos mais ricos na tipologia musical onde o atendimento revolucionário assustou o regime, que, mantendo-se atento, mandou seus agentes disfarçados de emigrantes, membros consulares, até fazendo papel do pobre desgraçado morando nas ruas da Europa, infiltrando-se.

Assim ganhavam apoio das associações onde moravam criadores da trova portuguesa… assim eram denunciados pelos telegramas desde a França, Bélgica, Holanda, Suíça e Alemanha.

Quando descobertos, estes farsantes do regime policial eram pendurados nas árvores das avenidas de cabeça para baixo, em cuecas como aconteceu em diferentes ocasiões na cidade de Ambéres/Antuérpia. quando anarquistas espanhóis [refugiados e velhos camaradas do capitão Henrique Galvão do assalto ao navio “Santa Maria”] descobriram intentos desses emigrantes falsários colecionando nomes de trovadores, relações familiares e tantas outras ligações políticas.

Engajamento

Cravos de Portugal

Entendidamente, a música, sendo ela uma arma, perturbou o regime fascista. E, mais ainda ao ditador, engrossando cada trovador mais inquietação, sendo eles nobres no seu trabalho ao defender o princípio fundamental da Liberdade.

Promovem amizade, provocam mudanças para o mundo, e ficam eternos para a sociedade, em cada composição que deixa uma mensagem verdadeiramente progressista, reformadora, de protesto.

Eles conseguem o que líderes políticos, em tempo algum, conseguiram.

E não podia ser diferente. Afinal esses líderes políticos, em tempo algum, conseguiram essa integração, que se esforçam em obter em cada eleição, mas que só lançam suas flechas influindo linhas perigosas duma abstenção acentuada, uma democracia em franco descrédito.

Fado, Fátima e Futebol

Mas o que ainda se vê com o propósito oferecido pela Liberdade, tantas vezes cantada pelos trovadores, são os privilégios de uma classe privilegiada, ostensiva em seus aposentos de luxo, gozando de “imunidades”, “propinas”, “regalias”, “subvenções”, “privilégios”. Persiste uma sociedade podre que o sistema judicial não encontra armas pelo justo dessa luta, para que fosse evidenciada alguma dignidade.

Não deixa assim como vislumbrar a crença de que alguma força alternativa da sociedade portuguesa não viva do mesmo fado velho vergado ao caruncho de uma democracia vencida pelo egoísmo, oportunismo, sujeira poluindo o pensamento democrático, aquele mesmo pelo qual trovadores lusitanos cantam desde muito antes da chegada desta classe de dirigentes políticos.

Muito barafustou Mário Soares, uma das referências da política, contra a propaganda do Estado Novo, que se nutria vivendo e consumindo os famosos três “Fs”: Fado, Fátima e Futebol.

Alimentado pela ignorância e letargia, o povo seguia dando menos trabalho ao regime. Pois com a implantação da nova República, depois do 25 de Abril, hoje, nunca houve tanto futebol, tanto fado e até uma nova igreja de custo milionário na famosa localidade religiosa de Fátima.

No entanto, Portugal segue sem hospital capaz de atender a qualquer problema caso ocasião se manifeste. Alienação popular continua no Portugal contemporâneo, com a vaidade ocupando as coisas boas do país, enquanto a classe dirigente e autarcas mantem seu cavalo de batalha por uma nova onda de fanatismos à “Portugalidade”.

Cultura massificada e alienada

Portugal se alimenta de loucos festivais totalmente vazios de qualquer valor cultural, onde o álcool domina tanto quanto drogas de vários conteúdos [o mercado europeu é um dos maiores consumidores de drogas sintéticas fabricadas no próprio território].

Lucros e lavagem financeira se misturam numa orgia única sem que autoridade fiscalizadora das Finanças [autoridade tributária] seja vertical nas suas técnicas, eficaz no controle, esclarecida no combate.

De Portugal, anualmente colaborando a mesma Banca criadora de problemas financeiros ao país, mais de trezentos bilhões de reais são levados ilegalmente aos oásis fiscais.

Mas para quem trabalhou anos e anos seguidos acreditando no sistema social, recebe em sua a maioria aposentadorias miseráveis. Muitos passam fome num Portugal dito democrático, europeu e moderno.

Processos de habitação são absolutamente vergonhosos. Manifestam uma incompreensível incompetência dos governos e municípios. Um país com interior completamente incapaz de ser sedutor, que pudesse atrair novos moradores apostando no desenvolvimento.

Resistência cultural

Francisco Fanhais e Afonso Dias, ao violão, cantam Zeca Afonso, na Associação José Afonso

Mas há entre os trovadores aqueles que resistem a tudo isso, como José Mário Branco, que, aos 20 anos, já morava num presídio político. Membro do Partido Comunista Português, na primeira oportunidade fugiu para França.

Posteriormente, percorreu diversos países europeus dando espetáculos, esclarecendo musicalmente a situação do fascismo português. Denunciava a guerra nas colônias, o que acabou por abrir portas para que chegassem outros trovadores resistentes e libertários como Pedro Barroso, José Afonso. Mais tarde se juntaram trovadores mais jovens como Sérgio Godinho, Jorge Palma, Fausto, entre mais outros vindos já na beira da madrugada abrilista.

E assim promoveram muitas noites de gala onde vestindo casaca, um belo dia descobriram que na lapela ficou morando uma flor considerada bem portuguesa: o Cravo vermelho, que passou a acompanhar músicas de fino recorte intemporal, político, expondo poesia de tão realista como emotiva e revolucionária.

Caricatura de Zeca Afonso, por Daniel Dias

Talvez por isso produções como as de José Afonso, “Canção do Protesto” ou a de José Mário Branco com “A Cantiga é Uma Arma” permanecem mais tempo na gaveta das rádios, somente aparecendo hipocritamente nos dias próximos das comemorações do 25 de Abril.

A lei portuguesa das rádios para edição musical é a mais negativa da Europa. Enquanto em França e outros países a percentagem de música estrangeira não pode ultrapassar a média dos 30%, em Portugal é exatamente ao contrário. Dessa forma, a música de origem nacional passa na margem dos 30% e a estrangeira ocupa o maior espaço. Dá para entender?

Dos momentos históricos fica a disponibilidade ao sonho destes trovadores: generosidade, humildade e a responsabilidade assumida, desprendimento, idealismo e causa na sua expressão mais dramática. Eles não tiveram medo do fascismo.

Então, seria bom que o povo novamente soubesse cantar escutando o Zeca quando ele diz: “O que falta é avisar a malta… o que faz falta é agitar a malta, é o que faz falta…”. Ou ainda enquanto José Mário Branco avisou a todos que… “Resistir é Vencer”.

Conservadores, liberais, fascistas e quantos mais falando em”Democracia” não querem dizer exatamente isso. São discursos antagônicos, que não se misturam pois querem exatamente o contrário do ideal progressista. Já os trovadores de casaca e cravo na lapela deixam saudades e o seu canto pela genuína liberdade e por justiça social.

*Veladimir Romano é jornalista e escritor luso-caboverdiano

 

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