Quatro casos de “justiçamentos” de ex-companheiros pela esquerda brasileira são revelados em livro-reportagem de Lucas Ferraz
Carlos Cruz
Jornalista itabirano, Lucas Ferraz conta em Injustiçados, livro-reportagem, quatro casos de execução pela esquerda brasileira de supostos agentes infiltrados nos anos de chumbo da ditadura militar
Passado tanto tempo, muito ainda se tem por revelar sobre os assassinatos de desafetos políticos que se opunham à ditadura militar (1964/85), pela censura da época e pelos sigilos que impendem um aprofundamento histórico, como se fosse necessário esquecer de lembrar, como está posto na anistia concedida ainda pelo regime militar no seu crepúsculo.
Mas sabe-se, por esforços jornalísticos e de historiadores, de muitos casos de crimes políticos praticados por agentes do regime militar, notadamente após 1968, sob o pretexto de combater o comunismo, ainda que muitos casos não foram desvendados e os corpos das vítimas continuam desaparecidos.
Entretanto, sobre os “justiçamentos” praticados pelas organizações de esquerdas na guerra contra o regime militar, o tema ainda permanece envolto em uma cortina de fumaça, um tabu que começa a ser revelado pelo repórter investigativo Lucas Ferraz.
No caso dos assassinatos e torturas praticados pelo regime militar, um dos braços repressivos foi a Operação Bandeirante (Oban), um mega aparato paramilitar a serviço do Estado, integrado por vários órgãos de repressão para agirem subsidiariamente às ações dos DOI-Codis estaduais.
“A Oban consolidou o método ‘sequestro-tortura-execução’ como princípio de combate à ‘subversão’, atingindo os combatentes da luta armada e a rede de apoio direto e indireto às organizações clandestinas. Inicialmente, entre 1969 e 1973, o modelo Oban-DOI-Codi focou suas ações contra a guerrilha urbana e rural, mas depois se voltou contra partidos e grupos de esquerda que não tinham aderido à luta armada”, descreve o portal Memórias da Ditadura.
A Oban foi financiada por empresários paulistas, liderados por Henning Boilesen, executivo do grupo Ultra. Boilesen organizou “caixinhas” em dinheiro para bancar a operação com a missão de dar combate ao comunismo, utilizando-se de métodos cruéis de tortura, além de contumazes práticas de execução e desaparecimento.
Portanto, o que se sabe sobre a repressão da ditadura militar ainda é fragmentariamente, ainda há muito a ser revelado sobre como funcionou esses aparatos repressivos a serviço do Estado militarizado, que prenderam, arrebentaram e mataram muitos dos que se opunham à ordem social e política ditada nos cânones mais repressivos das ditaduras militares latino-americanas.
Operação mata-estudantes
A mais célebre dessas ações, que por sorte fracassou, seria o caso Para-Sar, um abortado plano de atentado terrorista que paraquedistas da Força Área Brasileira (FAB) iriam executar para matar e prender opositores, estudantes e políticos.
Para a sua execução, em abril de 1968 agentes seriam infiltrados nas manifestações estudantis do Rio de Janeiro, com a missão de provocar mortes com explosões na loja de departamento Sears, no Citibank e na embaixada dos Estados Unidos, entre outros atentados terroristas.
A abortada operação teria o seu ápice com o sequestro e assassinato de estudantes e opositores como Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek – e que seriam lançados ao mar, a exemplo do que ocorreu na Argentina.
O objetivo era jogar a culpa nos grupos radicais da esquerda, na época ainda não organizados em guerrilhas urbanas e rurais que “promoviam o comunismo” – e assim endurecer ainda mais o regime militar.
Esse objetivo foi alcançado mesmo com a fracassada missão Para-Sar, com a edição do Ato Institucional Nº5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968. O ato institucional, considerado o golpe dentro do golpe, ocorreu após a denúncia pelo deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, de práticas de tortura por parte do Exército . Com o AI-5, o Congresso Nacional foi fechado e Moreira Alves cassado pela ditadura.
Antes, a operação Para-Sar teve de ser abortada após ser denunciada por parlamentares do MDB e em artigo do jornalista Pery Cotta (A operação mata-estudante), no Correio da Manhã.
Foi quando se tornou público o relatório do capitão Sérgio Carvalho, encaminhado ao Ministro da Aeronáutica, apontando a ilegalidade e a brutalidade da missão. O jornalista Pery Cotta foi preso e o jornal teve que encerrar as suas atividades no início da década seguinte. Leia mais aqui.
Fake-News
Pois se de um lado esses crimes do regime militar, praticados sob a égide do Estado, ainda não foram revelados em sua totalidade, crueldade e clandestinidade nos porões da ditadura, por outro permanecem também ainda obscuras as execuções sumárias de militantes acusados de serem agentes infiltrados pelas organizações clandestinas de enfrentamento à ditadura.
Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro apresentou a versão de que o pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, havia sido “morto pela esquerda”. Escreveu na rede social que iria contar como o então estudante Fernando Augusto de Santa Cruz havia desaparecido.
“O que eu sei é que o pai de Santa Cruz integrava a AP (Ação Popular), um grupo mais sanguinário que tinha”, disse ele, sem apresentar provas de execução de Santa Cruz pela organização de esquerda.
Ao ser cobrado para que apresentasse as provas, Bolsonaro mais uma vez desdenhou da história ao dizer que apenas ficou sabendo de “pessoas que eu conversei na época, ora bolas”.
Era mais uma fake-news bolsonarista. O pai do presidente da OAB foi preso pelas forças de segurança do Estado durante a ditadura militar – e o seu corpo até hoje não foi localizado.
Tribunais de esquerda
Pois bem, deixando de lado as fake-news do presidente, já se encontra no prelo, com pré-venda pela editora Companhia das Letras, o livro-reportagem Injustiçados, do jornalista Lucas Ferraz.
Com base em documentos, cartas e depoimentos de guerrilheiros, familiares das vítimas e militares, Ferraz reporta quatro casos de justiçamentos, por grupos de esquerda, dos militantes Márcio Toledo, Carlos Alberto Cardoso, Francisco Alvarenga e Salatiel Rolim.
Condenados à morte por tribunais de exceção da esquerda, eles foram julgados à revelia por seus próprios companheiros da luta armada que se travou no país nos anos de chumbo contra a repressão patrocinada pelo Estado brasileiro.
A acusação foi de que eles seriam agentes infiltrados pelos serviços secretos do regime militar. Lucas Ferraz resgata as histórias desses personagens ao narrar, jornalisticamente, cada um desses casos
Pelo que foi apurado pelo autor, os quatro militantes teriam sido injustamente considerados traidores do movimento revolucionário, uma história ainda silenciada, que Lucas Ferraz reporta a partir de pesquisa jornalística e documental, que vem realizando já há algum tempo.
Injustiçados é livro polêmico, que terá lançamento oficial em 22 de outubro deste ano. Espera-se que tenha lançamento também em sua cidade natal, durante o Festival Literário de Itabira (FlItabira).
Ficha Técnica
Capa: Kiko Farkas
Páginas: 256
Formato: 14.00 X 21.00 cm
Peso: 0.317 kg
Acabamento: Livro brochura
Lançamento: 22/10/2021
Selo: Companhia das Letras
Excelente matéria e livro. Vivemos um momento conturbado no Brasil e é preciso contextualizar “os menos informados” do que que foi a ditadura militar no Brasil e os horrores causados por ela. #ditaduranuncamais