Jornalismo e arte

Imagem: Reprodução/FSP

Por Marina Amaral, da Agência Pública*

Belíssima a foto do presidente Lula ajeitando a gravata em frente a uma vidraça do Palácio do Planalto atingida por um tiro, que na imagem parece estar à altura do seu peito.

Publicada na Folha no dia seguinte à entrevista concedida por ele à repórter Natuza Nery, na quarta-feira (17), quando ele fala dos ataques de 8 de janeiro, torna-se ainda mais forte:

Lula na capa da Folha, em foto com múltipla exposição da fotógrafa Gabriela Biló (Reprodução)

“Eu fiquei com a impressão de que era o começo de um golpe de estado. Eu fiquei com a impressão inclusive de que o pessoal estava acatando ordem e orientação que o Bolsonaro deu durante muito tempo (…). Obviamente, o que vai provar são as investigações, mas a impressão que me deixava era isso; possivelmente esse Bolsonaro estava esperando pra voltar pro Brasil na glória de um golpe”, afirmou Lula na Globonews.

A foto, obtida através de múltipla exposição, como sinaliza corretamente a legenda, traduz com perfeição este momento em que a democracia se impõe, depois de alvejada pela “prática nazista, fascista, raivosa, a que não estamos acostumados no Brasil”, como descreveu Lula, referindo-se à invasão e ao quebra-quebra das sedes dos três poderes da República.

Mas há uma questão, prontamente levantada por jornalistas no Twitter e nas redações, como a da Agência Pública: é legítimo o uso de uma montagem, no caso a sobreposição de duas ou mais imagens, em fotos jornalísticas?

A resposta poderia ser afirmativa, se levarmos em conta que a fotógrafa Gabriela Biló imprimiu sua visão sobre o momento político através de um recurso técnico da câmera, que não se confunde com edição, nem com toscos photoshops usados por criadores de fake news.

A imagem, resultado da sobreposição de diferentes disparos no mesmo ambiente, foi criada entre seu olhar e a câmera, assim como um artista gráfico pode trazer uma imagem da realidade concebida em sua mente, ou um colunista escrever um texto que transmite uma leitura pessoal e impactante da conjuntura. Por isso, mereceria cuidado especial na publicação – uma montagem, por mais sofisticada que seja, não pode ilustrar notícias.

Fato: Lula não estava junto da janela com a marca de tiro na altura do peito quando a fotógrafa mirou a câmera para retratá-lo. Como explicou o nosso repórter e fotógrafo, José Cícero, um dos profissionais que consultei antes de escrever esse texto, “em uma perspectiva mais artística, acredito que esse tipo de técnica é mais adequada e dialoga bem com este contexto, no entanto, para fotojornalismo é mais arriscado – pode gerar muitas interpretações. No meu humilde ponto de vista, o fotojornalismo também deve ser fiel ao fato. Nesta foto, pelo que entendi, este fato não aconteceu”.

Ao ser utilizada na capa de um jornal, onde se espera que títulos e informações se refiram a fatos relevantes e reais, a foto, icônica sem dúvida, traz confusão (meu filho, de 20 anos, reagiu aflito: “o Lula tomou um tiro?”).

Menos desavisados, outros a viram como uma proposital e falsa imagem de vulnerabilidade do presidente, interpretação induzida pela manchete sem conexão com a foto, que parece ter sido construída para se aproveitar da foto:

“No foco de Lula, presença militar no Planalto é recorde”. No texto, o jornal esclarece que os dados são do governo Bolsonaro (novembro de 2022) e que 13 militares do Gabinete de Segurança Nacional (GSI) foram exonerados, além dos 40 que trabalhavam no Palácio do Alvorada, residência do presidente da República.

Acredito que a foto de Gabriela Biló é potente, capaz de despertar reflexão e emoções sobre o momento de conflito e superação que vive o país. Também provoca o público e permite várias interpretações – eu mesma vi no meio sorriso de Lula, enquanto ajeita a gravata, uma mensagem de resistência. Mas essa talvez seja mais uma função da arte do que o jornalismo, como notou José Cícero.

Em tempos de obscuridade e confusão, o jornalismo tem que ser fonte límpida de informações. Polêmicas podem trazer audiência mas arriscam atingir o que o jornalismo tem de mais precioso: a credibilidade baseada na fidelidade aos fatos. E, como disse o presidente Lula na mesma entrevista, “com a democracia não se pode brincar”.

Uma boa semana para nós e um obrigada especial aos 2 mil aliados da Agência Pública que acreditam no nosso jornalismo investigativo como ferramenta para qualificar e ampliar o debate democrático. E vamos juntos abrir a caixa-preta do governo Bolsonaro!

*Marina Amaral é diretora executiva da Agência Pública

 

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