No meio do caminho tinha o Aurora Collegial

Por Cristina Silveira

[Para Leda Maria Lage Carvalho]

No meio do caminho tinha uma pedra. Não era uma pedra qualquer. Talvez, fosse lembrança da serra lendária de ouro e ferro.

Em 1919, o aluno Carlos Drummond de Andrade é expulso do Colégio Anchieta por “insubordinação mental”. Mas, nove anos depois da sentença injusta, a Revista de Antropofagia de 1928, publica pela primeira vez No Meio do Caminho, o “poema-escândalo”.

Se o, “poeminha da pedra” foi pão de queijo no cafezinho da crítica modernista, causou exaspera irritação na velha crítica dos PIGs (Partido da Golpista). Insubordinada mental, a Pedra tanto reluziu que em seu aniversário de 40 anos,em 1967, mereceu de seu criador um livro pra chamar de seu: Uma pedra no meio do caminho, biografia de um poema, de Carlos Drummond de Andrade. Seleção e montagem, “sobre como uma obra de arte sai de seu universo e ganha dimensão social e cultural”.

Álbum de família: Drummond é o primeiro à esquerda, com os pais Carlos de Paula Andrade e Julieta Augusta Drummond e irmãos (Foto: Brás Martins da Costa)

Mais um feliz aniversário para o poeta Drummond, para a poesia e a crônica. Durante décadas o Cometa Itabirano foi o único jornal do mundo a comemorar a data. Agora, o compromisso afetuoso e necessário ocupa as páginas “líquidas” da Vila de Utopia.

No Aurora Collegial, publicação do Colégio Anchieta, Nova Friburgo (RJ), o poeta publica crônicas e poemas

Cortina de retalhos ao vento do tempo. Este texto foi costurado com partes que se tocam –, da história do jornal Aurora Collegial e o que revela de um cronista iniciante, de “erudição precoce”. Quis o destino, que o anjo torto, a partir de 1920 fosse o cronista essencial na leitura diária de jornais, essencial na formação do pensamento brasileiro. Destes retalhos, os mais preciosos são transcritos da extraordinária Bibliografia Comentada de CDA (1918-1934), de Fernando Py.

Além de literatura, estes retalhos evidenciam a histórica e cruel diferença de classe social a que foi costurada a unidade nacional feita a partir da exploração das pedras no meio dos Gerais caminhos de Minas. Estratificação social avivada neste momento,pelo ódio e retrocesso promovido por golpistas, pela imbecilidade triunfante.

Retalhos de Flores e Morangos

Nova Friburgo, RJ, foi a primeira cidade a ser erguida por decreto real de d. João VI, em 1818. Não havia habitantes e dela se ocupou colonos vindos do Canton Fribourg, na Suíça.Hoje, flores e morangos movimentam a economia de Friburgo. Em 1818 Itabira do Mato Dentro comemorava 30 anos de municipalidade, deixou de ser vila para ser a Cidadezinha.Esmeraldas, ferro, ouro…Itabira minera.

Retalhos de Pedra e de Nomes.

Dezesseis anos antes do nascimento do menino Carlito, em 1886, a Companhia de Jesus funda em Nova Friburgo o Colégio Anchieta, um pilar para o aprendizado e cultura. Em 1901 o padre, Luiz Yabor, peruano de Cusco, inicia a construção do novo prédio, de estilo neoclássico. Por dentro, as paredes do salão nobre estampam afrescos do pintor e muralista italiano Arnaldo Mecozzi também restaurador de casas de papas na Itália. Nesta arquitetura, o menino gauche tinha a sua disposição, sala de cinema, de música, de teatro, e sobretudo tinha uma formidável biblioteca.

Talvez o menino Carlito fora aluno de história do padre Raphael Maria Galanti, um intelectual, viajado pelo mundo e pelo Brasil profundo. Mas é certo, bebeu na fonte Galanti, escritor de livros didáticos de história, e, “neste período atuando na educação brasileira por meio dos colégios da Companhia de Jesus, voltados para elite masculina da época. ” (LBM)

“A circulação dos livros didáticos de padre Galanti exerce uma função de defesa da Ordem, de convencimento de ideias sobre o Brasil e um chamamento para importância da educação como lócus de formação do homem, bem como produz outra ordem de pensamento que precisa ser apropriada pelos leitores, ordem vinda das concepções forjadas por Inácio há tantos anos. É relevante ainda, que sua motivação é a Lei 10639/03, que determinou o ensino da história e cultura africanas nas escolas brasileiras. ” (LBM)

Retalhos do crème de lá crème.

“Num período que abarca o ano de sua fundação, até o momento em que perde os privilégios de Ginásio Nacional (1886-1915), o Colégio Anchieta teve um total de 2.315 alunos. Desses, 1.301 eram naturais do Rio de Janeiro, mas havia estudantes de pelo menos 20 estados e de diversas capitais do Brasil; e ainda 46 alunos de nove países diferentes, sendo a maioria portugueses. Foi significativo o número crescente de alunos, inclusive durante a construção do edifício definitivo do Colégio. ” (LBM)

A lista de alunos internos no Colégio passa pelos filhos de Rui Barbosa, do maestro Alberto Nepomuceno; o grande jurista Sobral Pinto, Vilhena de Morais, Amaral Peixoto; os senadores Mozar Lago, Artur Bernardes Filho, Bandeira Vaughan. Em tempos modernos, sob o regime de externato, também passaram pelo Colégio, o músico Egberto Gismonti, a artista plástica Denise Berbert, entre outros.

Retalhos da Insubordinação Mental.

— Ele era censurado ideológica e estilisticamente — diz o professor emérito da Universidade do Porto, o português Arnaldo Saraiva. “…Mais tarde, Drummond se queixaria de uma emenda: “Um padre introduziu criminosamente, em minha descrição da primavera, a expressão ‘tímidas cecéns’, que me indignou.” A passagem pela escola foi citada na “Revista Acadêmica”: “Perdi a fé. Perdi tempo. E sobretudo perdi a confiança na justiça dos que me julgavam. Mas ganhei vida e fiz alguns amigos inesquecíveis.” (MV)

O poeta Carlos Drummond de Andrade na Livraria Leonardo da Vinci, no Rio (Foto: Eurico Dantas)

“Se nas crônicas não há referências à passagem pelo educandário dos jesuítas, nos 40 poemas de “Fria Friburgo” Drummond abre o verbo para se queixar. Ele relata o que chama de “dois anos jogados fora”, traduzidos em trechos ora amargos, ora irônicos, ora sarcásticos. Do triste período escolar, ele teria guardado até o modo de andar com os braços colados às pernas e a cabeça baixa. Foram anos de inadequação e sofrimento. A certa altura, ele pergunta: “Quando termina, se é que termina, o meu exílio?” (MV)

“Desde o começo, o aluno “74”, apelidado de “O anarquista”, manifesta seu desassossego. Em “Terceiro dia”, já não suporta mais a saudade, o frio, o dormitório que lembra um hospital, o travesseiro que ele ensopou de “lágrimas ardentes”, o banho de madrugada no chuveiro gelado. “Mamãe, quero voltar/ Imediatamente/ Diz a Papai que venha me buscar.” (MV)

— As notas eram lidas em voz alta. Drummond me contou que o professor de português, após a leitura, disse: “Essa nota foi dada por comiseração.” Ele respondeu: “Eu não quero nota por comiseração, eu quero uma nota justa.” (MV)

Segundo Pedro Drummond, neto do poeta, os jesuítas mandaram que se retratasse, senão seria expulso. Ele se retratou — e foi expulso. Drummond se sentiu traído. (MV)

— Meu avô disse que foi um ato tipicamente jesuíta. Nos anos 1980, no aniversário do colégio, ele foi convidado, mas recusou: “Não vou voltar a um lugar do qual fui expulso.” (MV)

 

 

 

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