CDA: A forma redonda ou quadrada do mundo me era indiferente
No destaque, tabuleiro de doces, escultura de Manoel T. Bersan. Foto: Tiago Nascimento.
O conto, Um Escritor Nasce e Morre, foi publicado na edição de Confissões de Minas (1934) e novamente aparece em Contos de Aprendiz (1951).
A versão transcrita para a Vila de Utopia é do Correio da Manhã, também de 1951. É um conto mesclado de ficção e autobiografia. (MCS)
Antologia de contos
Um escritor nasce e morre
Carlos Drummond de Andrade
(seleção de Marina Amaral Brandão)
Não houve resgate, e a cidade esqueceu-me. Nunca mais voltei lá. De lá, ninguém me escreveu mais pedindo para fazer uma página sobre o Pico do Amor ou a Fonte das Sempre-vivas…
Nasci numa tarde de julho, na pequena cidade onde havia uma cadeia, uma igreja e uma escola bem próximas umas das outras, e que se chamava, digamos, Turmalinas.
A cadeia era velha, descascada na parede dos fundos, Deus sabe como os presos lá dentro viviam e comiam, mas exercia sobre nós uma fascinação inexplicável (era o lugar onde se fabricavam gaiolas, vassouras, flores de papel e bonecas de pau).
A igreja também era velha, porém não tinha o mesmo prestígio. E a escola, nova de quatro ou cinco anos, era o lugar menos estimado de todos. Foi aí que nasci. Nasci na sala do 3⁰ ano, sendo professora D. Emerenciana Barbosa, que Deus a tenha.
Até então era analfabeto e despretensioso. Lembro-me que nesse dia de julho o sol que descia da serra era bravo e parado. A aula era de geografia, e a professora escrevia no quadro-negro os nomes dos países distantes.
As cidades vinham surgindo na ponte dos nomes, e Paris era uma torre ao lado de uma ponte e de um rio, a Inglaterra não se enxergava bem no nevoeiro, um esquimó, um condor surgiam misteriosamente trazendo consigo países inteiros.
Então eu nasci. De repente nasci, isto é, senti necessidade de escrever. Nunca havia pensado no que podia sair de um papel e de um lápis, a não ser bonecos sem pescoço e com cinco riscos representando as mãos.
Neste momento, porém, minha mão avançou para a carteira procurando um objeto, achou-o, apertou-o irresistivelmente e escreveu alguma coisa parecida com a narração de uma viagem de Turmalinas ao Polo Norte.
É talvez a mais curta narração no gênero. Dez linhas, incluindo um naufrágio e a visita a um vulcão. Eu escrevia com o rosto ardendo e a mão veloz tropeçando sobre as complicações ortográficas, mas passando adiante, isso durou talvez um quarto de hora e valeu-me uma interpelação de D. Emerenciana:
– Juquita, que você está fazendo?
O rosto ficou mais quente e eu não respondi. Ela insistiu:
– Me dá esse papel aí… Me dá aqui.
Eu relutava, mas seus óculos eram imperiosos. Sucumbido, levantei-me, o braço duro segurando a ponta do papel, a classe toda olhando para mim, gozando já o espetáculo da humilhação. Mas D. Emerenciana passou os óculos pelo papel e, com assombro para mim, declarou à classe:
– Vocês estão rindo de Juquita. Não façam isso. Ele fez uma descrição muito chique e mostrou que está aproveitando bem as aulas.
Fez uma pausa e rematou:
– Continua, Juquita. Você ainda será um grande escritor.
A maioria na sala não avaliava o que fosse um grande escritor. Eu próprio não avaliava. Mas sabia que no Rio de Janeiro havia um homem pequenininho, de cabeça enorme, que fazia discursos muito compridos e era inteligentíssimo. Devia ser, com certeza, um grande escritor, e nos meus nove anos eu achava que a professora estava me comparando a Rui Barbosa.
A viagem ao polo foi cuidadosamente destacada do caderno onde se esboçara e conduzida em triunfo para casa. Minha mãe, naturalmente inclinada à sobrestimação de meus talentos, julgou-me um predestinado.
Meu pai, homem simples e de um bom senso integral, abriu uma exceção para escutar os vagidos do escritorzinho. Ganhei uma assinatura do Tico-Tico, presente régio naqueles tempos e naquelas brenhas, e uma história da guerra do Paraguai, abandonada no primeiro capitulo para alívio do marechal Lopez.
II
Escrevi. Escrevi. Deixei Turmalinas. No internato, fui redator da Aurora Ginasial, onde um padre introduziu criminosamente na minha descrição da primavera a expressão “tímidas cecens”, que me indignou.
Cá fora, as revistas literárias passaram a abrigar-me com assiduidade. Em uma delas o meu retrato apareceu, com adjetivos. Não me pagaram nada, nem eu podia admitir que literatura se vendesse ou se comprasse.
Quantas vezes o meu coração bateu quando os dedos folheavam, trêmulos, o número de sábado ainda cheirando a tinta de impressão! Publicou… Não publicou…
E sempre a descoberta do meu trabalho, ainda em plena rua, despertava-me a sensação incomoda do homem que foi encontrado nú e não teve tempo de cobrir as chamadas partes pudendas. Eu escondia o meu crime, orgulhoso de tê-lo cometido, fazendo da literatura um segredo e uma masturbação.
Havia semanas em que o Fon-Fon, o Para-Todos, a Careta e a Revista da Semana publicavam simultaneamente trabalhos da minha humilde lavra, todos ou quase todos poemas em prova, em que me havia especializado.
Nem sempre havia numerário suficiente para adquirir todas as revistas, e então o copo de leite quente, com pão e manteiga, à noite, antes de ir para a pensão, sacrificava-se com galanteria em favor das belas-artes.
Escrevi muito, não me pejo de confessá-lo. Em Turmalinas, gozei de evidente notoriedade, a que faltou, entretanto, para duração, um certo trabalho de jardinagem.
É verdade que Turmalinas me compreendia pouco e eu a compreendia menos ainda. Meus requintes espasmódicos eram um pouco estranhos a uma terra em que o minério de ferro calçava as ruas e dava às almas uma rigidez triste.
Entretanto, o meu nome em letra de forma comovia a pequena cidade e dava-lhe esperanças de que o meu talento viesse a resgatar o melancólico abandono em que, anos a fio, ela se arrastava, com o progresso a 50 quilômetros de distância e galinhas ciscando nas ruas.
Não houve resgate, e a cidade esqueceu-me. Nunca mais voltei lá. De lá ninguém me escreveu mais pedindo para fazer uma página sobre o Pico do Amor ou a Fonte das Sempre-vivas. Meus parentes espalharam-se ou morreram. O escritor tornou-se urbano.
III
Publiquei três livros, que foram extremamente louvados pelos meus companheiros de geração e de pensão, e que os críticos acadêmicos olharam com desprezo. Dois volumes de contos e um de poemas. Distribui esses livros entre os jornais, os amigos, as pessoas que me pediram e as mulheres a quem eu desejava impressionar.
Sobretudo entre essas últimas. Minha tática, de resto bem simples, consistia em jamais pronunciar ou sugerir a palavra literatura. Eu não era um literato que se anunciava, mas um homem que no fundo, sofria de saber-se literato.
Minha literatura assumia assim perante espíritos menos prevenidos numa feição estranha, como alguma coisa de nativo e contrariado na origem, mas vegetando não obstante.
– O sr. Escreve coisas belíssimas, eu sei…
– Calúnia de meus inimigos. Infelizmente, é impossível viver sem fazer inimigos. Eles é que espalharam isso. Não acredite…
O meu sorriso gôche, de dentes não suficientemente íntegros (ganhei fama de irônico por causa desse sorriso envergonhado), sublinhava a discreta intenção da negativa. O sujeito afastava-se, impressionado. Muitas reputações nacionais não se estabeleceram de outo modo. Eu escrevia.
IV
Escrevia realmente para quê, escrevia por que? Autor, tipógrafo e público não saberiam responder. Eu não tinha projetos. Não tinha esperanças. A forma redonda ou quadrada do mundo me era indiferente.
A maior ou menor gordura dos homens, a sua maior ou menor fome não me preocupavam. Sabia que os homens existem, que viver não é fácil, que para mim próprio viver não era fácil, mas nada disso contamina os meus escritos.
E dessa incontaminação brotara, mesmo, uma certa vaidade. “Artista puro”, murmurava dentro de mim uma vozinha orgulhosa. “Não traia o espírito”, acrescentava outra voz inferior (um borborigmo, talvez).
Como o espírito não protestasse, eu me atribuía essa dignidade de exemplar, feita de gratuidade absoluta. E escrevia. Rente ao meu ombro, outros rapazes faziam o mesmo. E não queríamos nada, não esperávamos nada. Éramos muito felizes, embora não soubéssemos, como geralmente acontece.
O meu, o nosso individualismo fundamental proibia-nos o aconchego das igrejinhas. Éramos ferozmente solitários. Em cada Estado do Brasil, uma academia de letras reunia os gregários e distribuía louros inofensivos.
Esses louros repugnavam-me, e os acadêmicos, geralmente pessoas sem complexidade, apareciam a meus olhos como monstros de intolerância, inveja, malícia e incompreensão, intensamente misturada.
O fato de terem, quase todos, mais de 45 anos, apenas adoçava esse sentimento de repulsa, mas para introduzir nele um grão de piedade triste. Em verdade, ter mais de 45 anos era não somente absurdo como prova de extrema infelicidade.
Até certo ponto, os acadêmicos mereciam simpatia. Como, por exemplo, os dromedários, animais estranhos que não podem ser responsabilizados pelo gênero de vida que lhes impõe o vício de nascença.
Fugindo aos mais velhos, seria natural que nos ligássemos uns aos outros, os de 20 a 25 anos. Cultivávamos mais ou menos os mesmos preconceitos. As mesmas fobias em cada um de nós.
Desgraçadamente, essas fobias nos impunham um cauteloso afastamento recíproco, e nossas conversas de bar, noite a dentro, tinham alguma coisa de ferocidade e de autoflagelação… Entretanto…
Licurgo, que compusera comigo o Poema de Cubo de Éter, descobriu certa noite o tomismo, e eu o expulsei da minha convivência. Mas sua voz continuou pregando os novos tempos e perturbando almas sedentas de verdade e metafísica.
Aleixanor, tendo comprado num sebo as Cartas aos Operários Americanos, de Lenine, e começando a colaborar no Grito Proletário, sofreu da minha parte uma campanha de descrédito intelectual.
Voltou-se para a ação política, fundou sindicatos, escreveu e distribuiu manifestos e desfrutou de certa notoriedade até o golpe esquerdista de 1935, quando emudeceu.
A poetiza Laura Brioche fundou um Clube de Psicanálise, que procurei desmoralizar na primeira reunião, introduzindo sub-repticiamente entre os sócios, antes da votação dos estatutos, volumosa quantidade de whisky, genebra e gin.
A sessão dissolveu-se em álcool, mas restaram aqui e alí grupos de bem-aventurados que se entretinham na interpretação onírica e confrontavam gravemente os seus respectivos complexos, recalques e ambivalências.
Fundaram-se, sucessivamente, a Associação dos Amigos do Livros de História, a Academia dos Gramáticos de Ouro Preto, um Curso de Alimentação Racional, a Sociedade de Aculturação Ario-africana, o Grupo Deus, Pátria, Justiça, Ensino Profissional, o Clube Esperantista Limitado, o Instituto de Genética.
Todos, em redor de mim, se iam afirmando, iam-se fixando.
Todos optavam. Nos jornais, passavam do suplemento dos domingos para a página editorial. Alguns recebiam manifestações de apreço, outros eram chamados para trabalhar nos gabinetes de secretários de Estado.
Vários compraram lotes e começaram a edificar. Um deles, extraordinário, conquistou um cartório. Uma floração de filhos, vitoriosos nos concursos de puericultura, afirmava o rumo seguro da minha geração.
Eu perseguia o mito literário, implacavelmente, mas sem fé. Nunca meus poemas foram mais belos, meus contos e crônicas mais fascinantes do que nesse tempo de crescente solidão. Solidão, solidão… Era só o que havia em torno a mim, dentro de mim. Era como se morasse numa cidade, que, pouco a pouco, fosse ficando deserta.
Algum tempo mais, e não haveria ninguém para dirigir os sinais luminosos nas esquinas, para dar corda aos relógios, velocidade aos bondes, carne, pão e frutas às casas. E, de resto, para que bondes, relógios?…
Já não havia ninguém, todos se haviam mudado para as cidades em frente, ao norte, ao sul, e eu passava lugubremente a minha solidão nas ruas que ressoavam com o meu passo, ruas que outrora me eram familiares, e que agora pareciam escurecer, mudar de forma, de cheiro: de tal modo elas estavam ligadas a uma época, a uma geração, a um estado de espirito que se descompunham… Tudo ia escurecendo… escurecendo… Mas eu andava, eu continuava, eu não queria acreditar…
Risquei um fósforo, já sob a escuridão absoluta, e na lâmpada que as minhas mãos em concha formavam, percebi que tinha feito 30 anos. Então morri. Dou a minha palavra de honra que morri, estou morto, bem morto.
[Correio da Manhã, 01/12/1951. Hemeroteca da BN-Rio]