Ainda aquela pedra
Por Jan Cenek*
No meio da década de 1930, Drummond se tornou chefe de gabinete do Ministério da Educação, foi quando apanharam a pedra do poema para atirar no poeta. Como podia ocupar cargo tão importante o maluco que escreveu o poema da pedra?
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
É intrigante imaginar a impressão que o poema causaria num russo das terras brancas. O sujeito jamais se esqueceria daquele acontecimento na vida de suas retinas tão fatigadas, ou, talvez, congeladas. Por outro lado, se nas terras brancas da Rússia o poema soaria como sagrado, nas terras tropicais do Brasil o poema causou escândalo: era uma profanação das sagradas tradições da poesia, da língua de Camões e da inteligência nacional. “Erro crasso de português”:[3] trocou havia por tinha… Elogio da feiura… Retorno à idade da pedra…
Nas terras brancas da Rússia quase não há pedras no meio do caminho, pelo menos no sentido topográfico, por lá o poema ganharia ares de revelação. No Brasil há infinitas pedras no meio do caminho, em todos os sentidos, e o poema expressa cansaço e tédio.
Numa entrevista concedida em 1954, Drummond afirma e pergunta: “É chateação o que estava sentindo. Queria dar a sensação de monotonia, não sentiu essa sensação?”[4] É uma vereda que permite percorrer o poema, mas certamente não é a única, porque, como notou Camus,[5] as grandes obras e os sentimentos profundos sempre expressam mais do que têm consciência. É por isso que os grandes escritores não só refletem, mas expandem o real. Depois de Drummond, “chateação” e “monotonia” viraram pedras no meio do caminho.
No meio do caminho é uma pedra no meio do caminho da poesia brasileira. Provocou reações apaixonadas a favor e contra. Aquela pedra passou a compor o ecossistema da língua portuguesa. Drummond: “sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais.” [6]
Escrito no meio da década de 1920, No meio do caminho foi publicado pela primeira vez em 1928, na capa da Revista de Antropofagia,[7] mostrando que Alcântara Machado, Raul Bopp e outros modernistas perceberam imediatamente a força do poema. Em 1930, No meio do caminho foi republicado no primeiro livro de Drummond, Alguma Poesia, que um crítico[8] definiu como um título inexato, já que não havia ali nenhuma poesia.
No meio da década de 1930, Drummond se tornou chefe de gabinete do Ministério da Educação. Foi quando apanharam a pedra do poema para atirar no poeta. Como podia ocupar cargo tão importante o maluco que escreveu o Poema da pedra? Era como se Drummond fosse uma pedra no meio do caminho. E não pararam nem na pedra nem no meio do caminho. Como podia ocupar cargo tão importante um sujeito que escreveu “Oh! Sejamos pornográficos (docemente pornográficos)”?[9] Constatação: o moralismo não é novidade.
Drummond recolheu, guardou e organizou comentários e críticas ao Poema da pedra. Em 1967, publicou Uma pedra no meio do caminho — biografia de um poema. Os títulos de algumas seções do livro dão ideia da celeuma causada pelo poema: “Reação pelo ridículo”, “Muita gente irritada”, “Crítica pessoal”, “Das incompreensões”, “Popularidade, mesmo negativa”. Vingança sublime: o tempo. Drummond reuniu e publicou todo material que recolheu, inclusive trocas de autoria (houve quem dissesse que o No meio do caminho era de Manuel Bandeira). Uma pedra no meio do caminho — biografia de um poema é um golpe de aikido, usa a força dos críticos contra os próprios. Leitura saborosa. Alguns trechos:
– Mário de Andrade (1925): “O ‘No meio do caminho’ é formidável. É o mais forte exemplo que conheço, mais bem frisado, mais psicológico de cansaço intelectual.”
– Mário de Andrade (1926): “Acho isto formidável. Me irrita e me ilumina. É símbolo.”
– Alcântara Machado: (1928): “Mas estupenda mesmo é a pedra que está no meio do caminho. Vamos sentar nela?”
– Murilo Mendes (1930): “No meio do caminho é o tipo de poema no meio da cabeça da gente. Nunca me esquecerei. Não sai.”
– Moacir Andrade (1934): “O Sr. Carlos Drummond de Andrade não tem necessidade de ingerir uma droga violenta para sutilizar-se. O esforço dele é no sentido de inventar outra droga que o torne visível. Ainda não conseguiu.”
– Goudin da Fonseca (1938): “O Sr. Carlos Drummond é difícil. Por mais que esprema o cérebro, não sai nada. Vê uma pedra no meio do caminho e fica repetindo a coisa feito papagaio […] E não houve uma alma caridosa que pegasse nessa pedra e lhe esborrachasse o crânio com ela!”
– Oswaldo Orico (1939): “em matéria de poesia, longe de avançarmos, voltamos à idade da pedra.”
– Pedro Vergara (1943): “Aquele ‘tinha uma pedra’ é a coisa mais desesperadamente humana e angustiada que se possa imaginar; deve-se dizer mesmo que poucos poetas, em nosso país, terão conseguido fisgar, como ele, a simplicidade, por uma forma tão direta e tão à flor da pele.”
– Agripino Grieco (1944): “Em poesia, não faz Drummond outra coisa senão atrapalhar as autoridades, como quando nos aconselha a sermos pornográficos, ele que trabalha numa repartição frequentadíssima por mestres e estudantes, ou quando se insurge contra a pedra no caminho, sugerindo que as estradas de Itabira ou do Rio são mal calçadas, para desgosto de duas prefeituras.”
– Oscar Queiroz (1948): “pretende desmoralizar e anular as nossas sagradas tradições artísticas, o que me parece caso de cadeia, porque não é justo nem admissível a impunidade de tão monstruosos crimes!”
– José Condé (1952): “Por causa daquela ‘pedra no meio do caminho’ recebeu ele telefonemas, desaforos e até ameaças… Houve quem lhe sugerisse prender a tal pedra no pescoço e atirar-se ao mar.”
No meio do caminho é composto por dez versos circulares, que giram em volta das retinas fatigadas do poeta, como se uma pedra orbitasse por ali. Se repetem os versos 1, 4 e 10; 2 e 9; 3 e 8. Como o antepenúltimo repete o terceiro, e o penúltimo é igual ao segundo, e o último repete o primeiro: o poema gira em círculos, aumentando a sensação de cansaço. São sessenta e uma palavras: “tinha”, “uma”, “pedra” aparecem sete vezes; “no”, “meio”, “do”, “caminho” aprecem seis vezes; “nunca”, “me”, “esquecerei” aparecem duas vezes; apenas dez palavras não se repetem. A repetição dos versos e das palavras reforça a sensação de cansaço.
Dizem que os amigos riam quando Kafka lia seus textos. Desconfio que os modernistas riram enquanto liam No meio do caminho. É, talvez, o que explica o comentário de Alcântara Machado,[10] que queria sentar na pedra e era editor da Revista de Antropofagia, que publicou o poema na primeira página. Já os adoradores das sagradas tradições da poesia não riram, mas fizeram rir. É o que dá levar absolutamente a sério o que não é sério.
Antes de conhecer a entrevista citada acima, parecia-me que Drummond escreveu No meio do caminho para irritar os leitores, como se quisesse transferir a irritação que sentia para se divertir com a irritação dos outros. Sabendo que o poeta escreveu por chateação e para passar a sensação de monotonia, minha interpretação inicial cai parcialmente: não era uma brincadeira, mas provocou, irritou e divertiu.
Curiosamente, o comentário que mais me espantou não está em Uma pedra no meio do caminho — biografia de um poema. Na primeira vez que estive no museu Casa de Drummond, em Itabira, o vigia me contou que entre aquele sobrado e o grupo escolar frequentado pelo poeta havia uma pedra: “no meio da rua tinha uma pedra.”
Uma pedra no meio de uma rua de uma “cidadezinha qualquer”[11] teria provocado tamanha celeuma? Fato é que, se a tal pedra realmente existiu, as análises mirabolantes se tornam ainda mais engraçadas. Seria só uma pedra qualquer no meio de uma rua qualquer de uma “cidadezinha qualquer”…
Considerando que Drummond não era um aluno dos mais aplicados, uma pedra no meio da rua poderia ser uma boa desculpa para matar aula. A hipótese do vigia era tão atraente que passei a ver a tal pedra entre a casa do poeta e o grupo escolar, no meio da Rua Major Laje, em Itabira, Minas Gerais, na altura do número 300.
Era como se a pedra estivesse lá desde tempos imemoriais. Infelizmente, quando voltei a Itabira não reencontrei o vigia, e constatei que não havia nenhuma pedra no meio da rua, o que não significa que ela não tenha estado ali nas primeiras décadas do século XX. Afinal, se havia “noventa por cento de ferro nas calçadas”, por que não haveria nas ruas? Seja como for, lembro de ter perguntado se o vigia tinha noção da transcendentalidade da hipótese da “pedra no meio da rua”. Ele sorriu. E eu desconfio que levei absolutamente a sério o que não era sério…
A tal pedra entre a casa do poeta e o grupo escolar provavelmente foi uma criação do vigia para suportar a chateação e a monotonia do trabalho. Drummond publicou Uma pedra no meio do caminho — biografia de um poema para se divertir com a ingenuidade dos críticos. O vigia provavelmente inventou aquela pedra para se divertir com a ingenuidade dos que visitam o museu.
Mas, por outro lado, ainda que a pedra do vigia seja só um gracejo, é verdade que havia muitas pedras no meio dos caminhos itabiranos. Itabira, por sinal e na versão mais aceita, é uma palavra de origem tupi que significa pedra que brilha. Ou, como completa Drummond na lateral esquerda de Pedra natal: “pedra luzente/ pedra empinada/ pedra pontuada/ pedra falante/ pedra pesante por toda vida”.
Da sacada do sobrado em que vivia o menino Carlos Drummond de Andrade, no começo do século XX, e de diversos pontos de Itabira, se via o pico do Cauê: a pedra “luzente, empinada e pontuda” que se destacava no horizonte; a pedra que, “toda de ferro”, fascinava o menino. O sobrado da família Andrade virou o museu Casa de Drummond, onde trabalhava o vigia da pedra, cento e dez anos depois do nascimento do poeta. O pico do Cauê já tinha virado pó.
A primeira referência de Drummond ao pico aparece no poema Itabira, presente em Alguma poesia (1930):
Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê
Na cidade toda de ferro
as ferraduras batem como sinos.
Os meninos seguem para a escola.
Os homens olham para o chão.
Os ingleses compram a mina.
Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável.
Tutu Caramujo[12] na porta da venda me faz pensar no vigia na porta do museu Casa de Drummond. O primeiro anunciando a “derrota incomparável”. O segundo se divertindo com a ingenuidade dos visitantes. No tempo de Tutu Caramujo, estrangeiros compravam terras a preço de banana, itabiranos vendiam lebre por gato. Desenhava-se a “derrota incomparável”. Havia minério de ferro no meio das pedras. No tempo do vigia, turistas visitavam a Casa de Drummond, de onde já não se via o pico do Cauê, que havia sido britado “em bilhões de lascas”. Como a “derrota incomparável” era fato consumado, só restava rir. O vigia zombeteiro é o Tutu Caramujo do século XXI.
Drummond se define como um “eu todo retorcido”. Itabira virou uma cidade toda retorcida. A mineração recortou serras e aplainou morros. José Miguel Wisnik esteve na cidade para um festival de inverno, foi quando notou a presença marcante da mineração na obra drummondiana, e escreveu Maquinação do mundo — Drummond e a mineração.
Wisnik: “o impacto do lugar faz ler e reler a poesia de Drummond de uma perspectiva diferente daquela a que estamos acostumados. Fui à cidade portando o universo itabirano que encontro nos poemas, e me deparei com a conformação trágica desse lugar corroído, cifra esquisita da negatividade da própria obra, realimentando o fermento interno ao texto, que o leva a crescer sempre mais” […] “há no ar a sensação de que um crime não nomeado, ligado à fatalidade de um ‘destino mineral’, foi cometido a céu aberto.”
Exemplos para dar materialidade à “sensação de que um crime não nomeado foi cometido a céu aberto”: a) “Este câncer que atingiu a nossa cidade vai deixar três enormes crateras na superfície de suas terras, as águas podres e ácidas, o clima aleatório e fétido, e alguns milhares de indivíduos tentando reviver o que poderíamos chamar de Prostituta do Capitalismo Selvagem.”[13] b) Itabira é uma cidade cercada por depósitos de rejeitos com volumes que, somados, são 33 vezes maiores do que a barragem da Vale que se rompeu em Brumadinho.[14] c) A fazenda do Pontal — que pertenceu à família Andrade — foi transformada em depósito de rejeitos da Companhia Vale do Rio do Doce; a sede da propriedade foi desmontada e remontada pela Companhia, e virou museu.
Se, como quer Milan Kundera, o kitsch é “a negação absoluta da merda”, o museu Fazenda do Pontal é absolutamente kitsch. Há uma personagem de Kundera que combate o kitsch, mas como o ideal estético na Tchecoslováquia era o realismo socialista e, por tabela, o kitsch, Sabina precisava driblar a censura, não podia pintar exatamente como queria. Ela explica o significado de seus quadros da seguinte forma: “na frente, a mentira inteligível; por trás, a verdade incompreensível” [15]. Como os olhares focam a frente, a verdade se insinua por trás, driblando a censura.
A sede da fazenda do Pontal remontada — pela Vale — é exatamente a mesma em que cresceu o menino Carlos Drummond de Andrade, mas quem espia pelas janelas vê o depósito de rejeitos que cobriu a propriedade original: na frente, a mentira necessária; por trás, a verdade inconfessável [16] [17].
No poema América, uma rua começa em Itabira e vai dar em qualquer lugar da Terra. Na primeira metade do século XX, ruas de muitas partes da Terra deram em Itabira. Tudo em nome do minério de ferro, matéria-prima fundamental para a indústria capitalista.
Foi quando Tutu Caramujo previu a “derrota incomparável”. Alguns, os ingênuos, pensaram que faziam ótimos negócios vendendo terras, não perceberam que trocavam lebre por gato.
As primeiras mineradoras eram estrangeiras e houve intensa disputa para garantir o controle nacional sobre o recurso estratégico. Quando veio a Segunda Guerra Mundial, Getúlio Vargas negociou a criação da Companhia Vale do Rio Doce, que seria nacional, mas se comprometia a alimentar a indústria bélica dos aliados (principalmente EUA e Inglaterra).
Wisnik: “o ‘sono rancoroso dos minérios’ será acordado para ir à guerra em 1942”. A transformação foi tamanha que a cidade de Itabira chegou a se chamar Getúlio Vargas. Rubem Braga sugeriu que Drummond alterasse os últimos versos de Confidência do itabirano para: “Getúlio Vargas é só uma foto na parede.”[18]
Com a criação da Companhia Vale do Rio Doce cresceu a exploração e a destruição de Itabira. Drummond combateu a Vale com “palavras, intuições, símbolos e outras armas”. Em 1970, a empresa respondeu com uma campanha publicitária em que afirmava “Há uma pedra no caminho do desenvolvimento brasileiro”, embaixo da frase havia uma pedra.
A referência ao poeta é inequívoca, a peça publicitária registra: “Nosso caminho sempre esteve cheio de pedras. Mas essa tem um significado todo particular. Com ela, alcançamos esta semana a marca de 20 milhões de toneladas de minério de ferro exportadas. Mais 2,5 milhões que todo o ano passado” […] “Somos especialistas em transformar pedras em lucros para a nação. É de mais pedras como essa que o Brasil precisa.” A página de jornal com o anúncio foi guardada por Drummond.
Em 1983, no jornal O cometa itabirano, Drummond publicou Lira itabirana, poema que fala de sua cidade natal, mas parece antecipar crimes que seriam cometidos posteriormente (a destruição do Distrito de Bento Rodrigues e do Rio Doce pela Samarco, empresa controlada pela BHP Billiton e pela Vale S.A.;[19] e a destruição de Brumadinho e do Rio Paraopeba pela mesma Vale S.A.):
I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
III
A dívida interna.
A dívida externa.
A dívida eterna.
IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
Em 1948, o poeta retornou a Itabira para visitar a mãe, que estava gravemente doente. Foi a penúltima vez que esteve na cidade. A profanação dos morros e rios crescia, e certamente não passou despercebida. Itabira era e não era apenas uma foto na parede.
O poeta não retornou fisicamente à cidade, mas Drummond jamais se distanciou de Itabira, como se a cidade fosse uma foto viva, dentro dele. O melhor exemplo são os poemas que remetem à infância e foram escritos, em geral, quando o poeta já havia passado dos sessenta anos.
Tais poemas estão agrupados nas séries Boitempo, alguns foram expostos em placas de ferro nos locais de Itabira a que se referem, formando o Museu de Território Caminhos Drummondianos.[20]
Enquanto lembranças brotavam, a mineradora destruía a cidade: a Vale perfurava o pico do Cauê como um dentista perfura um dente cariado. Drummond sabia que suas lembranças eram apenas fotografias na parede da memória. Em A montanha pulverizada, o poeta se imagina voltando à casa em que morou, subindo as escadas e espiando o horizonte:
Chego à sacada e vejo minha serra,
a serra de meu pai e meu avô,
de todos os Andrades que passaram
e passarão, a serra que não passa.
Era coisa dos índios e a tomamos
para enfeitar e presidir a vida
neste vale soturno onde a riqueza
maior é sua vista e contemplá-la.
De longe nos revela o perfil grave.
A cada volta de caminho aponta
uma forma de ser, em ferro, eterna,
e sopra eternidade na infância.
Esta manhã acordo e
não a encontro.
Britada em bilhões de lascas
deslizando em correia transportadora
entupindo 150 vagões
no trem-monstro de 5 locomotivas
— o trem maior do mundo, tomem nota —
foge minha serra, vai
deixando no meu corpo e na paisagem
mísero pó de ferro, e este não passa.
A partir do poema acima e parafraseando Mário Quintana, é possível dizer que não importa que a tenham demolido, a gente continua morando na cidade em que nasceu. A montanha pulverizada prova que Drummond nunca saiu de Itabira, assim como a cidade nunca saiu dele.
Por uma ironia do destino, A montanha pulverizada não pode compor o Museu de Território Caminhos Drummondianos, porque a montanha virou pó e a placa de ferro precisaria levitar no horizonte, como um quadro sem moldura, fixado no ar, sobre um imenso buraco. Parênteses inevitáveis: a serra era dos índios, os Andrades a tomaram… Drummond sendo Drummond: tocar fogo em tudo, inclusive em si próprio e na própria família.
O tema mineração foi retomado em O maior trem do mundo, publicado em 1984, no jornal O cometa itabirano. Drummond resiste. Era como se cada pedra arrancada da cidade fosse um osso arrancado do poeta, que lutou como um javali.
O maior trem do mundo
leva minha terra
para a Alemanha
leva minha terra
para o Canadá
leva minha terra
para o Japão.
O maior trem do mundo
puxado por cinco locomotivas a óleo diesel
engatadas geminadas desembestadas
leva meu tempo, minha infância, minha vida
triturada em 163 vagões de minério e destruição.
O maior trem do mundo
transporta a coisa mínima do mundo,
meu coração itabirano.
Lá vai o trem maior do mundo
vai serpenteando vai sumindo
e um dia, eu sei, não voltará
pois nem terra nem coração existem mais.
Água escorre das pedras cortadas e arrancadas do meio do caminho para a passagem do “maior trem do mundo”, que leva o “coração itabirano”. Os eucaliptos nos morros denunciam a presença de interesses mercantis. As explosões das mineradoras calaram os sinos das igrejas. Drummond era vizinho da Igreja do Rosário, e como notou Wisnik, é, talvez, o que explica a presença marcante dos sinos na obra do poeta.
A Igreja do Rosário desmoronou em 1970, provavelmente devido às explosões da Vale. Virou esgoto o riacho onde o menino Carlos tomava banho e sonhava apalpar “irreveladas” formas femininas (desconfio que a Água Santa só não foi totalmente canalizada porque o poeta dedicou-lhe o poema O banho, e o local passou a compor o Museu de Território Caminhos Drummondianos, seria terrível colocar uma placa de ferro com os versos sobre um riacho enterrado). Enfim, realizou-se a profecia de Tutu Caramujo: confirmou-se a “derrota incomparável”.
O grande símbolo da “derrota incomparável” é certamente o pico do Cauê, que o menino Carlos avistava da sacada, e desapareceu como o “Coqueiro de Batistinha”:
“De manhã cedo, pois cedo/ começa o rodar mineiro,/ passando por lá não vejo/ nem retrato de coqueiro./ A Prefeitura cortou?/ Ou o raio o siderou,/ o caterpilar levou?”.
O pico do Cauê — pedra brilhante que atingia 1300 metros de altitude, “britada em bilhões de lascas”, “a TNT aplainado” — virou um imenso buraco.[21] Wisnik: “o fim do pico é o fim da picada”. O assassinato do pico do Cauê é um crime comparável aos assassinatos dos rios Doce e Paraopeba.
Por fim aquela pedra. Voltemos àquela pedra. Ainda aquela pedra. Se reescrevesse No meio do caminho depois da destruição do pico do Cauê, o poeta talvez registrasse: no meio do caminho tinha um buraco/ tinha um buraco no meio do caminho/ tinha um buraco… Lido nas terras brancas da Rússia, onde é preciso percorrer centenas de quilômetros para se avistar uma pedra no meio da neve, No meio do caminho ganharia ares de revelação.
Lido depois do assassinato do pico do Cauê, o poema também ganha ares de revelação. Tinha uma pedra no meio do caminho, não tem mais. É uma pergunta possível, não é a solução retrospectiva, mas e se a pedra do poema fosse o pico do Cauê? E se aquela pedra conjugada no passado fosse uma denúncia para o futuro? Aquele “tinha”. Aquele “acontecimento” gravado em “retinas tão fatigadas”. Aquela pedra no horizonte. A pedra extraída. A pedra transformada em um imenso buraco. Drummond anunciando a “derrota incomparável”, como Tutu Caramujo. E se aquela pedra fosse o pico do Cauê? E se o pico do Cauê fosse aquela pedra?
As obras que compõem a ilustração deste texto são do artista brasileiro Matheus Rocha Pitta.
Notas
[1] Sugestão: para não prejudicar a fluência, as notas podem ser lidas depois do texto.
[2] A reflexão sobre Trotsky, a neve e os povos que cultuam pedras está no romance O homem que amava os cachorros, de Leonardo Padura.
[3] “Erro crasso” de avaliação: para a Folha da Manhã No meio do caminho não passava de um “erro crasso” de português. Citado em Uma pedra no meio do caminho — biografia de um poema.
[4] O poeta revela que o Poema da pedra tem a ver com “chateação” e “monotonia” em entrevista a Amélia Carmen Machado: Conversa com Carlos Drummond de Andrade, Diário de Minas, 1954. Entrevista citada na apresentação de Uma pedra no meio do caminho — biografia de um poema.
[5] Albert Camus (O mito de Sísifo): “Como as grandes obras, os sentimentos profundos sempre significam mais do que têm consciência de dizer”.
[6] Ao definir No meio do caminho como um poema insignificante em si, mas que apesar disso dividiu o país em duas categorias mentais, Drummond sugere que se levou demasiadamente a sério o que não era sério. Emendo: daí a graça de ler as críticas ao poema anos depois. O poeta provavelmente previa o efeito cômico. Foi sua vingança sublime. A citação sobre as “duas categorias mentais” está em Uma pedra no meio do caminho — biografia de um poema.
[7] Capa da Revista de Antropofagia, julho de 1928, primeira publicação do Poema da pedra.
Fonte: https://ims.com.br/por-dentro-acervos/ha-90-anos-no-caminho-poeta/
[8] O crítico que sugeriu não haver nenhuma poesia em Alguma poesia é Medeiros de Albuquerque, que escreveu no Jornal do Comércio em junho de 1930. Moral da história: sacadas e jogos de palavras aparentemente inteligentes podem virar pedras na vidraça dos autores. Albuquerque é citado em Uma pedra no meio do caminho — biografia de um poema. Golpe de aikido drummondiano.
[9] Os versos “Oh! Sejamos pornográficos/ (docemente pornográficos)” abrem o poema Em face dos últimos acontecimentos, publicado em Brejo das Almas (1934). Foi Agripino Grieco quem sugeriu que não poderia ser chefe de gabinete alguém que escreve “Oh! Sejamos pornográficos/ (docemente pornográficos)”. O Jornal, 1944. A crítica é parecida com a dos que, décadas depois, atacam exposições de arte: em uns e outros a moral cristã a ensinar que a carne não vale. Moralismo é, em geral, pregar uma moral que não é seguida por seus defensores. Grieco é citado em Uma pedra no meio do caminho — biografia de um poema.
[10] É, provavelmente, de Alcântara Machado a sacada de publicar No meio do caminho na capa da Revista de Antropofagia. O escritor é citado em Uma pedra no meio do caminho — biografia de um poema.
[11] Cidadezinha qualquer é o poema em que tudo vai devagar e a vida é besta, é, em boa medida, Itabira das primeiras décadas do século XX: com alguns poucos milhares de habitantes que iam devagar, como os cães, os burros e o tempo. Itabira era só mais uma cidadezinha do interior do Brasil. Tudo se alterou com a descoberta de riquezas minerais. Homens, mulheres e empresas multinacionais correram para a cidade, que acelerou. Vale lembrar e completar: aceleração e crescimento dominados pelas mineradoras, que destruíram serras e picos. O poeta preferiu evitar a visão dos morros e rios profanados, Itabira tornou-se “apenas uma foto na parede”, mas como doía. No meio do caminho causou um rebuliço nacional. Confidência do Itabirano causou um rebuliço na cidade natal do poeta, por lá ainda há os que desconfiam de Drummond devido a tal “fotografia na parede”: “Tive ouro, tive gado, tive fazendas./ Hoje sou funcionário público./ Itabira é apenas uma fotografia na parede./ Mas como dói”. Curiosamente — aos 30 anos, pouco tempo depois de ter deixado a cidade e antes de ser um poeta reconhecido —, Drummond, na crônica Vila de Utopia, explicita seu amor pela cidade natal: “Todos cantam sua terra, mas eu não quis cantar a minha. Preferi dizer palavras que não são de louvor mas que traem a silenciosa estima do indivíduo, no fundo, eternamente municipal e infenso à grande comunhão urbana. Ainda assim fui itabirano, gente que quase não fala bem de sua terra, embora proíba expressamente aos outros falarem mal dela. Maneira indireta e disfarçada de querer bem, legítima como todas as maneiras.” Desconfio que Drummond evitou visitar Itabira porque amava a cidade que conheceu antes de ser retorcida pelas mineradoras.
[12] Além de comerciante, Tutu Caramujo foi prefeito de Itabira. Politicamente era adversário dos Andrades. Tutu Caramujo era monarquista. Os Andrades eram republicanos.
[13] Texto escrito em 1980 por Fernando Duarte Gonçalves para o jornal O cometa itabirano: Itabira, a prostituta do capitalismo selvagem. Disponível em: https://viladeutopia.com.br/itabira-a-prostituta-do-capitalismo-selvagem/
[14] A matéria sobre os depósitos de rejeito que cercam Itabira foi escrita para a BBC Brasil por Rafael Barifouse. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47220855
[15] A citação sobre o kitsch e a personagem Sabina estão no romance A insustentável leveza do ser. Kundera dá dimensão existencial ao kitsch, e por este atalho curto, chega na frente. Reflexões sobre o kitsch podem ser encontradas em outros romances e ensaios de Milan Kundera, por exemplo: O livro do riso e do esquecimento e A arte do romance.
[16] A fazenda do Pontal é, provavelmente, o cenário do poema Infância, que é o segundo de Alguma Poesia (1930). Drummond conclui assim: “E eu não sabia que minha história/ era mais bonita que a de Robinson Crusoé.” Acrescento: e não sabia que o “mato sem-fim da fazenda” seria coberto por rejeitos da mineração.
[17] Primeira foto: depósito de rejeitos visto pela janela do museu Fazenda do Pontal (2019). Segunda foto: na frente o palco, atrás os morros recortados de Itabira (2018).
[18] Quando Itabira passou a se chamar Getúlio Vargas, Rubem Braga sugeriu que Drummond alterasse o nome da cidade nos últimos versos de Confidência do itabirano. Ficaria: “Getúlio Vargas é só uma foto na parede.” Anedota relatada em Maquinação do mundo — Drummond e a mineração, de José Miguel Wisnik.
[19] Sacada de José Miguel Wisnik: com a privatização, a Vale primeiro retirou o Rio Doce do nome, depois o matou.
[20] Exemplo de placa do Museu de Território Caminhos Drummondianos. Poema O criador, publicado em Boitempo I (1968). A referência é a José, irmão de Drummond que teria inspirado também o famoso poema de mesmo nome. No hotel central de Itabira é possível ver uma foto do início do século XX, o “subversivo” José aparece sem camisa (ser fotografado sem camisa era um ato subversivo no começo do século passado). Placa de ferro localizada ao lado do museu Casa de Drummond, a referência é ao jardim da propriedade:
[21] Pico do Cauê antes e depois da chegada da Vale do Rio Doce. Na primeira foto a vista da rua em que morou o menino Carlos, a tal rua em que havia uma pedra, segundo o vigia do museu Casa de Drummond. Na segunda foto o pico transformado um imenso buraco.
*Jan Cenek é editor do https://antiode.blogspot.com
Do autor, leia também aqui https://viladeutopia.com.br/carta-para-carlos-drummond-de-andrade/
Maravilhoso texto. Perfeito.
O texto eh muito enriquecedor, pois mostra as referências às críticas e aos elogios diante do escândalo do poema.
Também apresenta o contexto histórico e o contexto atual, tão doloroso e tão destruidor.
A terra vira buraco, o rio vira barro, a morte se faz presente.
Resta a palavra.
Simplesmente assim: real e sensata sua opinião Ângela Sampaio.
Nossa ITABIRA está no CTI, precisa de cuidados urgentemente.
Já foi dado o sinal!
Há mudança de estação.
é o melhor ensaio que já li sobre o poema da pedra ou aquela pedra. no mês passado li muito o poeta drummond pra mode passar pra frente a coleção itabiranas de meu arquivo não implacáveis, então estou com a pedra na cabeça e o Jan Cenek escreveu muitíssimo bem, em nenhum jornal de Itabira nos foi apresentado texto tão bão sobre a obra do poeta, ninguém tinha/havia levado essa pedra preciosa até a sibéria, colocado ela nos caminhos de ferro por ande evadia o valoroso camarada Trotsky. Belíssimo, gamei! Por isso ouso pedir ao Jan um artigo sobre a obra do poeta que não sou capaz de escrever, farei esta solicitação pelo Carlos e espero ser atendida.
Lei também aqui http://viladeutopia.com.br/carta-para-carlos-drummond-de-andrade/