Estória alegre

Procissão, aquarela e nanquim sobre papel, de Marcos Amorim (1947-), do Recife

Acervo e pesquisa:
Cristina Silveira

Cornélio Penna

Cornélio Penna nasceu em Petrópolis em 1896 e morreu no Rio de Janeiro em 1958. Passou sua infância em Itabira do Mato Dentro, estado de Minas Gerais, fonte de seus romances. É autor de Fronteira, Dois Romances de Nico Horta, Repouso, A Menina Morta e Alma Branca.

Eu não sei se esta estória se passou assim; tudo que me contaram de Itabira do Mato Dentro me ficou na memória como velhas gravuras, e, às vezes, já não me lembro de suas legendas. Confundo então as alegres com as tristes, mas todas elas guardam tamanho interesse para mim que, mesmo sem a verdade, me parecem vivas e inquietantes, e não tenho medo de contar uma estória diferente, porque ficarão sendo três, a que ouvi a que sei e a que faço entender.

Última Ceia, de Henrique do Vale (1959-), africano de Angola

Mas o moço estava muito longe. Ah! Como veio de longe, e como chegou cansado, quando o chamaram para assistir à morte da velha, que já não via há muito tempo… Durante toda a viagem tentara enternecer-se, relembrando as coisas passadas, mas não pode nem sequer umedecer os olhos ardentes com a areia negra das estradas que sobem e descem pelas montanhas de ferro.

Quando chegou, o padre já saíra com o Santíssimo e a rua estreita e sonora reboava com seus passos pesados e com a reza rezada tão molemente pelas velhas de xale na cabeça e pelos negros de pé no chão que até parecia o zumbido de um bando de vespas ao sol.

Que calor! As velas de cera derretiam e tomavam posição de esquisito equilíbrio naquelas mãos carcomidas e desenhadas pela longínqua escravidão. A parede, violentamente branca, reflete as suas sombras gigantescas e dançantes, dando um aspecto de sonho àquela procissão humilde.

Parece que estou ouvindo aquele latim de nagô, aquele jongo antigo, reboando pela rua estreita e sonora…

As luzes dos círios tornam-se irreais, muito azuis, e são como espíritos misteriosos, que não temem o sol abrasador. E quando chegam à sombra da casa onde agoniza a velha, lá em cima, no sobrado, as vozes se reanimam, os passos se apressam, mas, de repente, todos param, e deixam passar o moço, que chega de tão longe.

O padre levanta então o Santíssimo, bem alto, e faz um gesto de benção.

Procissão de Flagelantes (1812 e 1819), de Francisco de Goya, de Espanha

O moço passa à frente, devagar, como se o cavalo não quisesse chegar nunca, e como se não soubesse que a velha, lá no sobrado, não o estivesse esperando, aguçando ansiosa o ouvido também agonizante. E passa adiante de todos, entrando no escuro corredor, subindo a escada de largos degraus. Mas para no primeiro patamar, e segurando o corrimão, com força, vê passar pelos olhos uma revoada de moscas de ouro.

Ele tinha sido o único sentimento bom no coração da senhora, que envenenara e caluniara, com estranho ódio, a vida de todos os seus. Guardara durante a sua longa existência um segredo que a queimara corroera como um cancro, e a fazia ter crises de raiva sombria e silenciosa, incompreensíveis para os que a cercavam, e só ele conseguia fazê-la sorrir nesses momentos servindo-os de seu riso claro como David de sua harpa.

O padre sobe as escadas, e deixando-se apoiar ao corrimão do patamar, entra no quarto, acompanhado pelos que seguem o Santíssimo, e todo o corredor se ilumina com a luz das velas e das tochas.

No quarto ainda é forte o perfume do incenso, cujo fumo se prende às teias de aranha do teto.

Estendida no catre, com as mãos cruzadas no peito, e um lenço amarrado ao queixo, prendendo os cabelos brancos, a velha parece morta, mas está à espera. Já se confessou, já comungou, já ouviu a última missa e está pronta para morrer.

Ela deve morrer. Todos esperam a sua morte. E a sua boca tem um corte amargo, as suas mãos parecem monstruosamente velhas e apagadas. Mas seus olhos baços espreitam, e vêm confusamente o moço abrir enfim a porta, cautelosamente, parando intimidado por aquele quadro.

São Cornélio de Cesárea, centurião temente a Deus

– Ah, é você? – exclama, e a sua voz parece vir de longe e ao aproximar rapidamente, e repuxa as cobertas, muito agitada, muito agitada. – Quero contar a você uma coisa engraçada!

Mas, as parentas e as comadres, como sombras silenciosas e espavoridas, achegando-se uma às outras, fazem entre o moço e a velha um muro de tristeza e de espanto, impenetrável.

Depois todas ajoelham e entoam com voz rouca o responso dos mortos.

E ela não pode contar a estória engraçada que, ainda me lembro bem, era muito alegre, terrivelmente alegre.

Mas creio que era a legenda de outra gravura…

[Tribuna da Imprensa (RJ), 27/11/1976. Hemeroteca da BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

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