Do livro Carvalhos – memórias de minha aldeia I

Morro da Sela, em São Domingos do Prata

Imagem: reprodução

Por José Teófilo de Carvalho*

Sô Carvalho[1]

Olavo Romano, escritor mineiro e contador de histórias, disse certa vez num programa de TV que, “A imortalidade é o contrário do esquecimento, enquanto as pessoas são lembradas, elas não morreram”. Concordo plenamente com ele. Ao resgatar da memória algumas pessoas que marcaram minha infância e juventude, elas permanecem ainda vivas em minha mente.

Portanto, elas não morreram, pelo menos, para mim e para muitos daqueles que as conheceram, as admiraram e as amaram. Para a nova geração é uma oportunidade de conhecer um pouco sua origem e, talvez, rever posição em relação ao passado, não tão distante. Compreender a história de nossos antepassados ajuda-nos a enfrentar melhor os desafios que a vida nos oferece diariamente e a valorizar a herança cultural que modela nosso presente e nos constitui.

Na origem dessas memórias, está o patriarca − Antônio Praxedes de Carvalho. Sô Carvalho, assim chamado, era meu avô paterno e, também, meu padrinho de batismo. Nasceu em Ribeirão São José, município de Itabira, em 07 de junho de 1877. Mudou-se ainda jovem para um lugarejo denominado Morro de Sela (grafado com s mesmo), no município de São Domingos do Prata, cidade encravada entre as montanhas, no centro do Estado de Minas Gerais, na região do Vele do Aço, distante 140 km a leste de Belo Horizonte.

Morro da Sela, na verdade, era a fazenda de João Alves e, posteriormente, pertencente a Waldemar Rolla. Era a única casa que possuía energia elétrica na redondeza e tinha até rádio, o meio de comunicação das décadas de 1950 e 1960.

Casou-se com Josefa Sérgia de Carvalho (+-1885-1954), de descendência indígena por uma das partes. Faleceu e foi sepultado em 4 de julho de 1965, três dias antes de completar 88 anos. Foi uma pessoa longeva, se considerarmos a expectativa de vida daquela época, que era de 52,5 anos. Guardadas as proporções, viveu aproximadamente o equivalente a 100 anos hoje.

Por isso, tinha muitas histórias para nos contar e o fazia com prazer. Tinha uma memória invejável. Porém, nunca nos contou nada de sua infância. Hoje, fico me perguntando por quê? Queria esquecer sua origem escrava ou dela tinha vergonha? Por ridículo que possa parecer, a cor da pele era ainda um definidor de status social no início do século XX, mesmo que fosse só nas aparências.

Antônio Carvalho era filho primogênito do mestiço, também filho de português com escrava, Manuel de Carvalho com uma negra Rita Tibúrcia, descendente de negro e índio, provavelmente, negra alforriada. Ele teve mais duas irmãs, Maria Alexandra e Rosa. Ele ficou órfão aos sete anos.

Sua mãe se casou pela segunda vez e teve mais um filho, José Luiz, e tornou-se viúva novamente. Ela casou-se uma terceira vez com um marido muito doente, tornando-se viúva pela terceira vez, sem filho com o último marido. De sua mãe não há registros nos cartórios da região, pois, com a abolição da escravidão, a história brasileira foi reescrita e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro cuidou de apagar a memória da escravidão.

O primeiro marido lhe deixou à viúva Rita boas glebas de terra em Ribeirão São José, em Itabira, e ela teve de vender algumas glebas para sustentar os quatro filhos órfãos de pais, sobrando-lhe ainda nove alqueires. Interessante, consta que alguns fazendeiros da região lhe proibiram de continuar a vender as terras; afinal, terra era um meio de produção.

Meu avô trabalhava por uma diária de 80 Réis para os fazendeiros da região e, mesmo que tivesse o pai vivo, se beneficiaria da lei do ventre livre [4] que só se aplicava ao filho de escravo após sua maioridade, aos 21 anos. Até essa idade, o filho de escravo era tutelado pelo seu pai, a quem deveria prestar serviço para cobrir as despesas de criação.

Era assim que funcionava a lei do ventre livre, ao contrário do que nos contaram. Disseram-nos que o escravo, nascido a partir daquela lei, já era livre, mas não foi bem assim. Mas, no caso de Vovô Carvalho, nada disso aconteceu. Ele teve de encontrar seu próprio caminho.

Nessa época, o Brasil era ainda um império naquela época e o imperador era D. Pedro II. O país só se tornaria república em 15 de novembro de 1889, vovô já estava com doze anos. Como filho de escrava e órfão, tinha tudo para dar errado na vida, mas não foi esse o destino dele porque, para o bem o para o mal, a abolição da escravatura se deu em 1888, antes de sua maioridade; ele tinha apenas 11 anos.

Contudo, o fato mais importante de sua vida é que ele foi alfabetizado e isso mudou toda sua perspectiva de vida; foi sua libertação. Naquela época, eram raros os que sabiam ler e escrever, menos ainda na zona rural. Vovô lia com desenvoltura e denominava as operações aritméticas. Tornou-se logo professor num lugarejo denominado Coelhos, perto de Ribeirão São José, em Itabira. Creio que fosse uma fazenda. 4 Lei 2040, de 28/09/1871[2].

Ele contava essa história a todos, com orgulho; não era para menos. Ser professor naquela época era para poucos e motivo de reconhecimento, dada o elevado grau de analfabetismo da população brasileira. Professor, mesmo de escola rural, era uma profissão de grande prestígio e de grande respeito na sociedade.

A escola pública não era para todos. Para quem desconhece, ainda por volta de 1960 o ensino fundamental não era integrado como é hoje, a gente fazia até exame de admissão para passar do grupo (1º ao 4º ano) para o ginásio (5º ao 8º ano), segundo ciclo do ensino fundamental; hoje, (6º ao 9º ano). O exame era uma espécie de ENEM naquela época.

Sô Carvalho casou-se com Josefa Sérgia de Carvalho (±1885-1954), mulher dinâmica e decidida, nascida em São Domingos do Prata. O casal teve sete filhos, seis sobreviveram, e dela também sei muito pouco, pois, ela faleceu quando eu tinha apenas dois anos de idade.

Sua pele morena e cabelos lisos revelam sua origem indígena, como contaram nossos pais e tios. Era irmã de João Batista (1880-1973), meu avô materno. Desse modo, meus pais, Antônio Lino (Nico) e Almira, e meus tios, João Carvalho e Maria Martins (Lica), eram primos em primeiro grau. Ou seja, os dois irmãos foram casados com duas irmãs e ainda eram primos. Os filhos deles e nós somos primos-irmãos. Difícil de entender?

Vovô Carvalho era uma figura rara e de uma humildade franciscana. Aliás, as pessoas sábias conseguem a façanha de serem simples e isso as tornam ainda mais admiradas. Imaginem se um homem desses tivesse tido a oportunidade de estudar mais…

Hoje, já estamos na quinta geração, tetranetos (ou tataranetos) dos Carvalhos, iniciados com Vovô Carvalho e Vovó Zefa, como eram carinhosamente chamados. Antes deles, nada sabemos. Atualmente, até boi é registrado e rastreado; será que escravos não tinham registros? Sabemos que eram marcados a ferro quente na pele, até mesmo no rosto, ao serem vendidos ao seu Senhor.

Os nomes dos capturados eram trocados por outro de batismo e registros são escassos, até mesmo nas cúrias das dioceses. Os nascidos na escravidão eram registrados. O registro civil tornou-se uma prática no século XX, apenas para exercer o direito de votar, desde que não fossem analfabetos, ou para ter registro em carteira de trabalho, cerca de meio século depois. Meu avô era eleitor, mas dele só encontrei sua certidão de óbito no cartório[3].

Portanto, não há como negar esse sangue africano correndo em nossas veias, herdado de nossos antepassados, entre os quais Vovô Carvalho. Somos um pouco portugueses, africanos e indígenas, não só pela cor da pele e outras características físicas, quer queiramos ou não.

Talvez, seja por isso que, em nossas famílias, temos uma mistura bonita de peles pretas, morenas e brancas de todos os tons e matizes; olhos pretos, castanhos e verdes, além de muita semelhança com os índios nas características físicas. Os cabelos vão do preto ao louro, do fino ao grosso, do liso ao encaracolado, pixaim mesmo, como diziam nossos avós. Somos a melhor representação do povo brasileiro; tudo isso mostra uma miscigenação que nos identifica, marca e explica nossa origem histórica, nosso jeito de ser e de estar no mundo.

Quantos talentos se perderam e se perdem ainda hoje por falta de oportunidade na vida? Hoje, estou convencido de que negar à criança oportunidades é uma das maiores formas de violência. Quase sempre, é na infância que a sociedade define quem será vencedor e quem será perdedor na fase adulta. A meu ver, após quarenta anos em sala de aula, estou convencido de que negar educação a quem quer aprender é a forma mais cruel de dominação.

É condená-lo a ser o que ele não é; impedi-lo de crescer, 5 O cartório eleitoral me respondeu que os registros de eleitor são apagados após 5 anos de não comparecimento do eleitor às eleições. Não se dão ao capricho de guardar a informação num banco de dados de imagens digitalizadas, procedimento tão comum e barato hoje em dia.  tirando-lhe o alimento da autonomia e do saber, um sabor que só quem aprendeu experimenta. É difícil virar um jogo no segundo tempo, embora alguns times o façam com um redobrado esforço.

Considero que havia no meu avô dois homens: aquele que, potencialmente, teria sido, se tivesse tido mais oportunidade; e aquele que realmente foi – avô carinhoso, trabalhador humilde, zeloso com os amigos e parentes, cristão fervoroso de uma fé inabalável. É desse último que estou tratando aqui, mas se você quiser pensar no outro, faça-o na sua imaginação. “Livre pensar é só pensar”, já dizia Millôr Fernandes há quase meio século.

Sô Antônio Carvalho e sua enxada. Quadro pintado por José Assunção, 1981. Fonte: acervo da família.

Professor[4]

“Sô” Antônio Carvalho, era assim que o chamavam, era um misto de agricultor e de professor numa escola rural. Para nós, era apenas Vovô Carvalho, um velho agricultor; estava sempre com uma enxadinha debaixo do braço e brigando as moitas de sapé pelo quintal.

Quando terminava de capinar uma, olhava para trás e já estava tudo brotando de novo. Mas, como bom Carvalho, ele não desistia… Sr. Maurilio Martins, amigo nosso de Itabira, dizia: “terra ruim exaure o homem”.

Na zona rural, era uma raridade para um homem do campo saber ler e escrever no início do século passado, a não ser algum fazendeiro.

Por volta dos anos de 1950, metade da população era analfabeta e quase outra metade mal assinava o nome, ou mal lia ou escrevia um bilhete ou realizava uma simples conta.

Aprendia-se a desenhar o nome para votar. E o voto era, quase sempre, de cabresto e os cabos eleitorais falsificavam idade dos jovens para se tornarem eleitores mais cedo, pois, quase sempre, o registro civil era feito por eles. É bom lembrar que as mulheres eram criadas para ser donas de casa e trabalhar na roça, raramente estudavam. Minhas tias, no entanto, estudaram o suficiente para ler e escrever o suficiente para a época, muito pouco para hoje.

Universidade, então, era para família rica que podia mandar um filho, homem, em geral, para a capital, como se dizia na época. As filhas, quando muito, iam para um colégio interno, em geral, de congregações religiosas. A cidade de São Domingos do Prata tinha apenas um ginásio que era frequentado pela elite local e o único curso era o Normal, em nível médio, para formação de professor alfabetizador. Poucos pensavam continuar a estudar nos anos de 1960.

O caminho de quem nascia no Morro de Sela era fazer dezoito anos e arranjar um serviço em João Monlevade, Itabira, Belo Horizonte ou Ipatinga. Ninguém ainda falava em bom emprego. O começo era um serviço de ajudante numa empreiteira dessas grandes companhias, ganhando um salário-mínimo. Mais tarde, com muito esforço e um pouco de sorte era admitido operadores de máquina nas empresas, com um salário um pouco melhor.

Escrever, então, era um martírio. Era mais fácil pedir a alguém para escrever uma carta solicitando emprego, casamento, noticiando um noivado, convidando para um casamento ou para batizado. As mortes eram comunicadas por telegrama; a geração atual nem sabe mais o que é esse tipo de comunicação.

Tia Maria Pedra escrevia carta para todos que não sabiam fazê-lo, tal qual Fernanda Montenegro no filme Central do Brasil. A carta era o e-mail da época e o telegrama é como se fosse um WhtasApp. Tudo demorava muito a chegar a seu destinatário; um telegrama, demorava cerca de vinte e quatro horas; uma carta podia levar dias ou semanas.

Também ninguém tinha pressa, a vida corria devagar. Receber uma carta era um acontecimento e o carteiro era o ‘Orozimbo’, assim o chamavam. Não sei se era nome ou apelido. Fazia o percurso de bicicleta, diariamente, do Prata para o distrito de Santana do Alfié, fizesse chuva ou fizesse sol. Sua passagem marcava o tempo: antes do Orizimbo passar e depois de Orizimbo; assim também, antes do galo, depois de o galo cantar.

Hoje, estou convencido do fato de meu avô ter sido professor influenciou alguns de seus descendentes e muitos se dedicaram e dedicam à carreira acadêmica na família. Para mim, foi uma inspiração, embora só hoje eu tenha consciência disso.

Vovô Carvalho sabia gramática e matemática. Sabia tabuada, que era cantada, conhecia medidas métricas, de peso e de volume; nas contas, tirava prova dos nove. Calculava juros e porcentagens. Surpreendia os visitantes e os deixava boquiabertos. Aquilo era uma façanha para um caipira, com seus oitenta e tanto anos, nascido e criado na roça, descendente de mãe escrava.

Citava regras gramaticais: distinguia sujeito, verbo, predicado; distinguia substantivo e adjetivo; conjugava verbos, regulares e irregulares, na voz ativa e passiva. Explicava a regra e dava exemplos, isto é, “matava a cobra e mostrava o pau”. Tinha consciência do que ensinava e seguia a didática de sua época. Não se compara aos métodos e técnicas atuais.

Tinha uma memória invejável: recitava poesia, narrava de cor cartas manuscritas que recebia dos amigos, Emílio da Silva e Sô Teófilo, do Toco. Guardava as cartas como troféu em sua cestinha de palha atrás da porta de seu quarto. Os livros e cartilhas eram raros, ainda assim tinha alguns bem surrados e ainda manuscritos em letras cursivas. À noite, lia os livros religiosos e de oração uma famosa cartilha de cor vermelha. Desse livro saíam as ladainhas, o banquete das almas e vários tipos de novena. Tudo isso o tornava um homem diferenciado e reverenciado por aqueles que o conheceram.

Era um agricultor e tirava seu sustento da terra; era também um dos poucos homens letrados na região. Vovô recitava poesia e quadras nos finais da tarde, depois da lida na roça. Um fogo no chão de terra batida e uma lamparina a querosene garantiam o calor e luminosidade para a leitura à noite. Muito religioso, lia o livro “A Missão Abreviada”, um livro grosso de capa preta, publicado em 1859 pelo padre português Manoel José Gonçalves Couto. O autor descrevia sua interpretação do começo do mundo, do inferno e do paraíso, com seus anjos e demônios. Eram leituras horripilantes.

Contudo, seu livro preferido de rezas era uma cartilha vermelha de orações, onde rezava o Banquete das Almas, Ofício de Nossa Senhora e Ladainha de Todos os Santos. O bom do Banquete das Almas. Após a reza, era servido um banquete: frango assado, tutu com linguiça e macarronada. Só não entendo o porquê Banquete das Almas, elas não comem. As rezas se estendiam noite adentro, pois, não existia ainda TV na roça; havia rádio somente na Fazenda do Morro da Sela, onde havia um gerador de energia elétrica. O rádio a pilha só chegaria anos depois, uma revolução lá pelos anos de 1960.

A alternativa, ou a falta de opções, era conversar ao redor do fogo no chão, sentar-se próximo ao fogão a lenha e trocar ideias até o sono chegar ou fazer uma visita aos vizinhos. Eram casos simples ou histórias que a gente já sabia de cor. Novidade eram os casos do Zé Lino, um andarilho e contador de histórias que aparecia sempre na época de plantio e capina das roças, depois desaparecia por um bom tempo.

Era um exímio contador de histórias. Acho que suas histórias me ensinaram a gostar de literatura; com meu avô, aprendi a gostar de ensinar e me tornar professor. Professor precisa de estudar e sempre; não para nunca. Ensinando, a gente aprende sempre… Nada surge do nada, como diz a expressão traduzida do latim: ”Ex nihilo nihil fit”.

Vovô Carvalho e Francisco Borges (2º neto). Fonte: acervo da família (10/10/1943)

Leitor[5]

Meu pai, Antônio Lino de Carvalho (Nico), era semialfabetizado para os dias de hoje, mas não para sua época. Estudou até o 3o ano primário em escola rural. Lia e fazia contas bem, sabia calcular até porcentagem e juros. Porém, a mão calejada enxada não o deixava escrever. Deixava essa tarefa para minha mãe que tinha letra de professora, como se dizia.

No seu tempo, terminar o 4º ano do Ensino Básico (5º ano hoje) de grupo era privilégio de poucos porque a necessidade de trabalhar falava mais alto e teria de ser na cidade.

Essas ferramentas não combinavam com a delicadeza de uma caneta. Na vida real, parece que quanto mais pesado é seu instrumento menor é o resultado financeiro do seu trabalho; quanto mais braço menos dinheiro no bolso.

Apesar disso, ele lia para nós – trechos de “A Missão Abreviada”, livro pertencente a meu avô, uma cartilha de orações, trechos da bíblia, de jornais velhos de embrulho e até almanaque de medicamentos. Era um leitor assíduo, hábito adquirido com seu velho pai e professor Antônio Carvalho.

Os almanaques eram uma forma usual de propaganda de medicamentos em meados do século passado. Ainda hoje, me lembro das histórias do Jeca Tatu que tomara ‘Biotônico’ e ficara forte e corajoso, a ponto de enfrentar onça a tapa. Movido pela propaganda, meu pai nos comprava esse fortificante, mas não nos tornamos fortes e nem corajosos como o personagem de Monteiro Lobato.

Como a propaganda funciona. Meu pai era tão preocupado com nossa nutrição que, em algumas manhãs, assava banana madura na brasa e acrescentava achocolatado para a meninada. Isso era um luxo para quem vivia na roça nessa época. Claro que não era sempre, o mais comum era fubá suado, “feijão tombado” ou um mexido no café da manhã. Quem é mineiro sabe bem o que é “feijão tombado”.

Morando e trabalhando no campo, não perdia tempo: moía cana na engenhoca de pau, capinava e mantinha todo o terreno do sítio limpo o ano inteiro, cortava lenha com machado, batia pasto com foice e plantava quase de tudo: horta, frutas, milho, feijão, mandioca e batata. Nada utilizava máquina como hoje. Trabalhava muito. Quase faleceu no cabo de uma enxada.

No entanto, havia uma diferença: qualquer um que o procurasse, ele parava seu trabalho e vinha atendê-lo e conversar, com a maior serenidade. Como era seu jeito, às vezes, a conversa se estendia por muito tempo e o outro dizia para ele continuar seu trabalho, ao que ele respondia do seu jeito: ‘vou falá com cê: trabalho não acaba mesmo; ocê não vem aqui todo dia; vamos conversar, depois, eu continuo’.

E continuava a conversa enquanto o outro quisesse. Era seu estilo. Sabia ouvir, refletir, ponderar e aconselhar. Graças a isso, conquistou a simpatia de todos que o conheceram. Pacificador nato, sabia se impor humildemente. Prejudicava-se para atrapalhar os outros. Dialogava com pessoa culta ou analfabeta, rico ou pobre, velho ou criança. Dizia que gostava muito de conversar com gente educada, pois, assim ficava educado também.

Contudo, sua frase que mais marcante: “perdoar é fácil, difícil é absolver”. Só mais tarde, pude entender o significado disso e ele sabia do que estava falando. Afinal, absolver é apagar tudo, é esquecer… Foi sua grande lição de pedagogia. Com ele aprendi o prazer da leitura e da reflexão. A leitura exige de nós: concentração, silêncio e reflexão.

Antônio Lino – década de 1990. Fonte: acervo da família

Meu pai tinha uma relação muito diferente com o tempo. Ele vivia mais devagar, sem estresse e nunca lhe faltava tempo para atender os outros. Entre o trabalho e uma boa conversa, ficava com essa última. Os finais de semana que passávamos juntos eram as oportunidades de longas conversas até altas horas da noite: qualquer assunto, sem restrições de temas.

Sabia deixar a lida para receber seus visitantes e dizia serenamente: ‘você não vem aqui todo dia. Vamos conversar…’ E o bom papo continuava. Essa atenção para receber e dar atenção às pessoas fazia dele um homem diferenciado para seu tempo.

Deixou sua marca como ser humano e boas lembranças de um grande amigo em minha mente. Um infarto fulminante o levou em 10 de julho de 1998. Deixou muita saudade para aqueles que o conheceram. Era casado com Almira Martins de Carvalho, sua prima e companheira por 49 anos.

Pintor e artista[6]

José Assunção nasceu, cresceu e viveu grande parte de sua vida como agricultor. Trabalhou pouco tampo em mineração, em Itabira, antes da existência da Vale. Mais tarde, mudou-se para Nova Era, onde trabalhou como cabelereiro. Finalmente, estabeleceu-se na terra de Drummond, dedicando-se somente à pintura de quadros até o final de sua vida. Foi o mais longevo dos irmãos.

Artista plástico, pintor primitivo de grande sensibilidade de estilo próprio, sem ter estudado Belas Artes. Pintava por intuição e retratou em suas telas a religiosidade de sua infância e juventude em São Domingos do Prata, ou mais especificamente no Morro da Sela.

José Asssunção e Maria Mendes (Inhá). Fonte: Acervo de família. Década de 1990.

Seu traço, único e inconfundível, é cheio de detalhes, como cores fortes, presença de procissão e igrejas, crianças subindo em árvores ou em pau de sebo, o cruzeiro sempre com um galo em cima, riachos e lavouras de café.

São marcas inconfundíveis que remetem à sua infância da infância bem vivida no meio rural, numa família de raízes humildes e profundamente católica. Suas centenas de quadros hoje se encontram espalhadas por todo o Brasil e no exterior. Ele adorava presentear os sobrinhos com seus quadros, eu mesmo tenho dois.

Tinha como hobby fazer charadas e cartas enigmáticas. Deixou vários cadernos com enorme quantidade de textos não muito fáceis de decifrar. Era criativo como todo bom artista. Tocava violão e bandolim. Arriscava-se, algumas vezes, a compor as próprias músicas que nos mostrava com orgulho.

Casou-se duas vezes. Na primeira vez, sua mulher morreu de parto e, também, seu primeiro filho. Na segunda vez, casou-se com Maria Mendes (Inhá), exímia costureira, pessoas linda, discreta e de uma simpatia singular. Era sua paixão desde novinha e filha de Zé Venâncio, morador de um lugarejo denominado Toco, município de Nova Era.

Sua segunda filha, Margarida, já segue seus passos do pai. Aprendeu com ele as técnicas de pintura por observação, porém, desenvolveu um estilo próprio, dando à tela um toque feminino nas escolhas de cores mais suaves e na representação de outros temas.

Ao contrário do pai que retratava, quase sempre, cenas rurais, ela representa, também, temas urbanos e próprios de sua cultura. Ela já participou de várias exposições, em companhia do pai e, hoje, segue seu próprio caminho. Pai e filha são orgulhos para todos nós da família Carvalho.

Uma lição dele: é a arte que nos humaniza e desperta nossa sensibilidade. A linguagem visual torna-se cada dia mais acessível e a pintura é sua forma mais antiga de expressão, desde os primeiros habitantes das cavernas. Ainda hoje, as pinturas rupestres, despertam interesse e a imaginação dos cientistas porque foram uma das primeiras formas de comunicação humana.

Hoje, qualquer criança, munida de um celular, é capaz de fotografar, editar uma foto, colocar legenda e distribuí-la nas redes sociais. No passado não muito distante, essa tarefa só era permitida aos profissionais de fotografia ou de comunicação visual. Imaginem ainda a potência da linguagem visual no futuro próximo, com tanta gente criativa descobrindo novas possibilidades de narrar histórias e, ao mesmo tempo, ilustrá-las, seja no meio impresso ou no digital.

Zé Assunção, como era conhecido, não teve medo de ousar, de se mostrar ao mundo e de aprender até os últimos dias de sua vida. Talvez, isso explique um pouco seus quase um século de existência. Foi um exemplo de persistência e de perseverança, como todo bom Carvalho.

[1] In: Carvalhos: memórias de minha aldeia / José Teófilo de Carvalho. – São Paulo: Peripécia, 2022, p.21-26.

[2] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim2040.htm. Acesso em 29/10/2021.

[3] O cartório eleitoral me respondeu que os registros de eleitor são apagados após 5 anos de não comparecimento do eleitor às eleições. Não se dão ao capricho de guardar a informação num banco de dados de imagens digitalizadas, procedimento tão comum e barato hoje em dia.

[4] In: Carvalhos: memórias de minha aldeia / José Teófilo de Carvalho. – São Paulo: Peripécia, 2022, p.35-39.

[5] In: Carvalhos: memórias de minha aldeia / José Teófilo de Carvalho. – São Paulo: Peripécia, 2022, p.76-78.

[6] In: Carvalhos: memórias de minha aldeia / José Teófilo de Carvalho. – São Paulo: Peripécia, 2022, p.91-93.

*José Teófilo Carvalho é professore e escritor

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6 Comentários

  1. Seu avô Carvalho, é uma grande pessoa, que bão que você nos relata esta linda historia de gente do Matto Dentro.
    “Sou filha de cumã,
    Sou filha de nanã,
    Também sou filha de d. Maria, a rainha louca
    Por isso sou brasileira”

  2. Teófilo, que alegria ver você agora despontando como escritor. Ah! E de Memórias. Não bastasse seu desempenho elogiável na área da educação, agora você me vem com essa de contar história de histórias. Narrativa fluente, construída com perfis, lugares e épocas singela e sensivelmente traçados , incita-nos à leitura do mundo que você (re)criou.

    1. Teófilo, que delícia ler os seus escritos! Me fez voltar à minha infância quando estava em companhia de vovô Carvalho escutando o seu falar e contando os casos acontecidos com ele. Obrigada por este presente!

      1. Só nós, os primeiros netos, tivemos o privilégio de conviver com ele. Por isso, a nova geração precisa saber disso. Quem não tem passado não tem futuro. Obrigado pela leitura atenta!

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