Direitos humanos e crise climática
Bento Rodrigues é exemplo de crime sem punição. População ribeirinha e povos originários do rio Doce sofrem as consequências continuadas e permanentes do rompimento de barragem da Samarco, da Vale e BHP Billiton
Foto: Antônio Cruz/ Agência Brasil
Entrevista
SER-DH* – As mudanças climáticas têm impactado a vida de muitas pessoas, especialmente as mais vulneráveis, que muitas vezes não têm acesso a recursos adequados para lidar com as consequências dessas mudanças. A crise climática intensifica a desigualdade social e econômica, afetando os direitos humanos de milhões de pessoas em todo o mundo. A falta de acesso à água potável e segura, à alimentação e à moradia adequadas são apenas alguns dos exemplos de como a crise climática pode afetar os direitos humanos.
Além disso, a exploração de recursos naturais em larga escala, muitas vezes afeta negativamente as comunidades locais, que têm seus direitos violados. Portanto, é essencial que ações para mitigar as mudanças climáticas sejam acompanhadas de políticas sociais e medidas de proteção aos direitos humanos, de forma a garantir que as pessoas mais vulneráveis não sejam deixadas para trás.
Neste contexto, um termo que vem sendo amplamente difundido é “Racismo ambiental”. Sobre isso, conversamos com Flávia Alvim, doutoranda em Direitos Humanos, Integração e Estado Plurinacional PUC Minas; Mestra em Teoria do Direito e da Justiça PUC Minas; Especialista em Direito Público e Internacional; Pesquisadora do Observatório de Direito Socioambiental e Direitos Humanos na Amazônia – UFAM e Redes de Direitos Humanos da PUC Minas
Confira:
Como você define o conceito de racismo ambiental e como ele se manifesta na sociedade atualmente?
Para conceituarmos o racismo ambiental é preciso compreendermos que o racismo é estrutural, é sistêmico e exerce, covardemente, seus efeitos, principalmente, sobre as mulheres, as populações negras e indígenas, assim como sobre seus respectivos territórios, que representam suas tradições e contextos ambientais de vida. As forças do capital determinam uma forma de organização econômica e social que marginaliza, que cria separações entre humanos e mercantiliza a Natureza.
O capitalismo, por essência, é racista. Comunidades periféricas, quilombolas, ribeirinhas e indígenas, entre outras, além de historicamente excluídas dos processos de tomada de decisão, são constantemente expostas à degradação ambiental e aos fenômenos ambientais nocivos, o que nos permite demonstrar e comprovar a manifestação do racismo ambiental no dia a dia.
Em outras palavras, os “outros” – aqueles negados pelo colonialismo e pelo neocolonialismo, sofrem de forma recorrente com as externalidades negativas, com os impactos ambientais causados, por exemplo, com as queimadas, com a contaminação do solo e com a mineração. Além disso, esses grupos nem sempre possuem acesso aos recursos naturais e aos serviços essenciais como o saneamento básico, por exemplo.
Quais são os principais fatores que contribuem para a perpetuação do racismo ambiental em diferentes contextos, como áreas urbanas e rurais?
Os efeitos desestabilizantes provocados pelo crescimento econômico e pelo desenvolvimento industrial sem precedentes sobre as comunidades mais vulneráveis, sobre os “não-gente”, cresce inescrupulosamente sem a intervenção firme e direta do Estado, o que contribui para a perpetuação do racismo ambiental em diferentes contextos. Interesses de grupos “minoritários” são descartados com o objetivo de avançar com a acumulação de capital, em grande parte para o Norte-global, deixando comunidades urbanas e rurais submetidas a condições ambientais de vida indignas.
Nesse sentido, é importante ressaltar que o racismo ambiental e climático caminham juntos e o grande número de mortes, como as decorrentes de fortes chuvas, inundações e deslizamentos, lembram o fascismo.
Afirmamos isso porque os valores públicos liberados pós-desastres, como resposta às comunidades atingidas, em sua maior parte é destinada a normalização de serviços e desobstrução das vias, enquanto pouco ou nenhum valor é direcionado à prevenção de desastres ou mesmo à recuperação das vítimas e suas territorialidades, aprofundando ainda mais as desigualdades socioambientais.
De que forma as políticas públicas podem ser utilizadas para combater o racismo ambiental e promover a justiça ambiental?
Políticas públicas, na condição de instrumentos participativos que visam promover cidadania e solução de problemas comuns enfrentados pela coletividade, podem, ou melhor, devem ser utilizadas, nesse caso, para a proteção do meio ambiente e para o enfrentamento da desigualdade econômica e escassez financeira, que são verdadeiros obstáculos à promoção dos direitos socioambientais.
Importante lembrar que cabe, também, ao poder público exercer seu poder de polícia, previsto na legislação ambiental, para fiscalizar condutas que sejam potenciais ou efetivamente poluidoras e que utilizem recursos naturais, para garantir a proteção dos ecossistemas e da própria comunidade.
A dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana, que garante, entre outros, um padrão de integridade e segurança ambiental, é condição indispensável à promoção dos direitos humanos e, em especial, ao enfrentamento do racismo ambiental.
Em ambientes de risco e insalubres, como aterros sanitários, barragens de rejeito e “distritos industriais”, encontramos grupos historicamente discriminados. Atividades como essas devem ser fiscalizadas pelo Estado; denunciadas e fortemente combatidas.
No mesmo sentido, esses grupos historicamente excluídos, principalmente em áreas rurais onde o poder público não “caminha”, devem ter acesso à coleta de lixo e ao tratamento de água e esgoto, assim como qualquer pessoa “branca” que vive na área urbana e/ou “condomínio”.
Justiça ambiental é um conceito que depende do contexto histórico, cultural e das necessidades provenientes desses contextos. No entanto, em países colonizados como o nosso, que vivem em contextos de desigualdades e injustiças, a discriminação ambiental está intrinsecamente relacionada à discriminação racial.
Dessa forma, para promovermos a justiça ambiental, precisamos combater os privilégios de uma minoria “branca” e voltarmos os olhos para aqueles que são profundamente afetados em sua relação com o ambiente.
Remoções forçadas, por exemplo, são umas das principais causas do crescimento das favelas. Justiça ambiental envolve, portanto, solidariedade e respeito às tradições originárias; envolve a satisfação de necessidades humanas básicas em integridade com a Natureza.
Justiça ambiental envolve, também, justiça ecológica e climática. Envolve harmonia entre humanos diversos, entre o humano e as demais espécies e entre todos e os elementos naturais que permitem o equilíbrio necessário à manutenção da vida no planeta.
Como as comunidades afetadas pelo racismo ambiental podem se mobilizar e lutar por seus direitos e por um ambiente saudável e seguro?
As comunidades afetadas pelo racismo ambiental podem se mobilizar e lutar por seus direitos e por um ambiente saudável e seguro de diversas formas. Além de procurar proteção e apoio de órgãos públicos como o Ministério Público e a Defensoria Pública, as comunidades podem e devem participar de audiências públicas, assim como propor projetos de lei que visem garantir o que os povos originários chamam de Bem Viver.
No caso do Serro, município de Minas Gerais, a título de exemplo, os quilombolas tiveram papel decisivo no reconhecimento da Natureza como sujeito de direitos, garantido a todos os membros da comunidade natural, humanos e não humanos, o direito ao meio ambiente ecologicamente saudável e equilibrado.
O município, como sabemos, está no foco dos empreendimentos minerários e o reconhecimento de direitos subjetivos à Natureza, garantiu proteção especial do Cerrado e do Rio do Peixe, que abastece hidricamente o município.
Esse projeto está sendo citado porque deu voz a comunidades historicamente silenciadas, como as Comunidades Quilombolas, que possuem, tradicionalmente, outro tipo de relação com o território que habitam e com a Natureza.
A busca coletiva pela democratização e descolonização do poder, isto é, por alternativas que repensem as estruturas e as experiências político-sociais dominantes buscando superar esse quadro moderno em que poucos vivem bem em detrimento da grande maioria, talvez, seja o primeiro passo que já se inicia para combater um sistema extrativista, produtivista, consumista, individualista e racista.
Quais são as principais consequências do racismo ambiental para as populações marginalizadas e para o meio ambiente?
As principais consequências do racismo ambiental para as populações marginalizadas e para o meio ambiente vão desde o agravamento de desigualdades ao genocídio e ao ecocídio.
A eliminação sistemática e intencional de um grupo de pessoas pela negligência e negativa de prestação de assistência, assim como ato ilegal ou arbitrário cometido com conhecimento que existe uma probabilidade substancial de causar danos graves ou generalizados a longo prazo ao ambiente podem ser analisadas, infelizmente, em diversos momentos no Brasil.
A título de exemplos: 1. Litoral de São Paulo, Cubatão – o crescimento do acelerado do polo industrial transformou o município em uma “estufa de fumaça tóxica”. Segundo estudos realizados à época, a população que vivia em torno das fábricas e que apresentava problemas pulmonares era composta por pessoas de baixa renda.
Além dos problemas pulmonares, houve, no seio dessas comunidades, um aumento do nascimento de crianças com problemas neurológicos devido aos componentes químicos tóxicos liberados no ar;
2. Rompimento de barragens em Minas Gerais, Marina e Brumadinho, respectivamente. Em ambos os casos a maior parte das pessoas atingidas eram não-brancas, além das comunidades indígenas que viram “sangrar” seus entes queridos, fonte de sua subsistência, os rios.
Além disso, houve perda e destruição de ecossistemas, provocado por uma falha significativa de um dever legal, por período substancial. Para os indígenas, a “morte do rio”.
Como a pesquisa científica pode contribuir para o entendimento do racismo ambiental e para o desenvolvimento de soluções efetivas para combatê-lo?
A pesquisa científica pode contribuir para o entendimento do racismo ambiental e para o desenvolvimento de soluções efetivas para combatê-lo à medida que promove, antes de tudo, a inclusão.
Para construirmos uma ciência antirracista e ecológica, precisamos de representatividade, ou seja, mulheres, negros e indígenas precisam participar, com toda sua subjetividade científica corporificada, de pesquisas acadêmicas que caminhem em direção à verdade.
As ideologias oficiais que conduzem o método científico refletem um campo de poder-saber branco e masculino que precisa ser, definitivamente, superado. O “objeto” de pesquisa deve ser compreendido como “ator e agente”, não como algo distante, como o “outro”, como o “meio ambiente”, pois tudo é Natureza.
A partir daí, trabalharemos com um tipo conhecimento que não esteja descompromissado com o real, evitando uma visão unidimensional que monopolize a ciência. Pesquisas científicas são instrumentos capazes de promover o desencobrimento e consequentemente promover justiça socioambiental quando não utilizam da hiper simplificação, o que as leva a reduzir a complexidade e servir, única e exclusivamente, ao doutrinarismo do Ocidente
*Entrevista publicada originalmente pela SER-DH – Sistema Estadual de Redes em Direitos Humanos