Como será a quarta e diversa Itabira sem a mineração, pergunta a jornalista Marlene Machado em sua tese de doutorado pela UFMG
Itabira e a mineração: ambiguidade histórica leva a cidade conviver com não acontecimentos que impactam a vida de seus moradores
Foto: Acervo Vila de Utopia
Carlos Cruz
Pegando “gancho” com a preocupação do cronista itabirano Carlos Drummond de Andrade, que na crônica Vila de Utopia, de 1933, depois de ver o marasmo que vivia a segunda Itabira sucessora do ciclo do ouro, indaga com ceticismo como será a terceira Itabira com a exploração da hematita no pico Cauê, a jornalista Marlene Machado conclui tese de doutorado, apresentada à banca da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 9 de outubro deste ano (coincidentemente no aniversário de emancipação política deste município), indagando “se haverá uma quarta e diversa Itabira após a mineração.”
Trata-se de uma pergunta ainda sem resposta, por razões que a jornalista descreve em sua tese, após longa pesquisa em jornais e extensa bibliografia, além de ter realizado entrevistas com 17 personagens itabiranas de diferentes segmentos sociais.
A autora monitorou também a cobertura de parte da mídia local (este site Vila de Utopia, Diário de Itabira e De Fato), como também os veículos da imprensa regional e nacional que deram destaque à presente conjuntura vivida em Itabira com a iminência da exaustão mineral, acrescida da ameaça das barragens de rejeitos instaladas no entorno a montante da cidade.
O resultado obtido com a sua tese de doutorado apresenta contribuições promissoras para entender a complicada – na maioria das vezes pouco transparente e quase sempre evasiva – comunicação do principal agente de desenvolvimento e, também responsável pelo atraso socioeconômico e cultural do município, a mineradora Vale em seus mais de 81 anos de instalação na cidade para inicialmente explorar a hematita, minério mais rico em ferro, agora chegando-se ao fim, passando a beneficiar os itabiritos mais pobres em teor ferrífero.
Segundo observa a jornalista, Itabira vive sob o medo de dois ainda grandes não acontecimentos, mas que por si suscitam medo e angústia – e de certa forma paralisam a cidade em seu tempo presente, repercutindo e moldando o seu futuro, o porvir de uma economia diversificada que nunca acontece.
É que além do “fantasma da exaustão mineral”, tem-se ainda a ameaça de colapso das barragens de rejeitos, ambos um não acontecimento, sendo que o segundo se espera não venha ocorrer, mas que já causa estranheza, preocupação e medo entre os moradores que convivem diuturnamente com ambas ameaças a turvar o presente, ameaçando o futuro “sustentável” do município.
Isso mesmo tendo a Prefeitura, em parceria com a mineradora, lançado recentemente o projeto Itabira Sustentável, com projetos que prometem reestruturar e diversificar a economia local, mas ainda sem se ter recursos assegurados para tal fim.
Sem similaridade
“Com efeito, Itabira é uma rica promessa para estudos, sobretudo porque não há situação similar, pelas características da mineração no município. Se não bastasse, a cidade é cercada por barragens de grande porte, que impactam significativamente os moradores das ZAS (Zonas de Autossalvamento) – um problema também presente em vários municípios mineradores, principalmente em Minas Gerais”, assinala a jornalista em sua tese de doutorado.
“Mesmo incorporando esses elementos ao cotidiano, é estranha, senão dramática, a sensação de conviver com a possibilidade de uma tragédia de danos incalculáveis tomar o território escolhido para viver. O risco é real e as vulnerabilidades também”, acrescenta.
Letargia itabirana
Na crônica Vila de Utopia, citada reiteradamente pela autora, Drummond fala da letargia do itabirano antes mesmo do advento da mineração em larga escala, com a cidade “adormecida na fascinação do seu bilhão e 500 milhões de toneladas de minério com um teor superior a 65% de ferro, que darão para ‘abastecer quinhentos mundos durante quinhentos séculos’, conforme garantia o visconde do Serro Frio”.
Para o poeta, a cidade parecia encantada em 1933. “E de fato o é. Acordará algum dia? Os itabiranos afirmam peremptoriamente que sim. Enquanto isso, cruzam os braços e deixam a vida passar. A vida passa devagar em Itabira do Mato Dentro”, constatou o cronista, que prossegue:
“Se a vida passasse depressa, a estrada de ferro já teria posto os seus trilhos na orla da cidade; à sombra do Cauê, uma usina imensa reuniria 10 mil operários congregados em cinquenta sindicatos, e alguma coisa como Detroit, Chicago, substituiria o ingênuo traçado das ruas do Corte, do Bongue, dos Monjolos.”
Mas essa terceira Itabira não se concretizou como imaginou o cronista itabirano, pois permanece até aqui dependente da mineração, sem diversificar a sua economia.
Ao contrário, assistiu passivamente ao longo da história o desmantelamento de sua incipiente indústria (pequenas manufaturas de ferro, fabricação de arreios, confecção de tecidos de algodão, agricultura e pecuária), fechada pela força dominadora da mineração em larga escala, cedendo lugar ao setor mono extrativista para exportação
“A atenção se volta, nesse sentido, para a relação da Vale com os itabiranos, marcada por ambiguidades, controvérsias e conflitos socioambientais, já identificados à época que esta autora ainda ocupava o quadro de empregados da mineradora, nos anos 2000, se constituindo agora em uma rara oportunidade de reflexão, em que a teoria ilumina a prática e vice-versa.”
Essa letargia é também destacada pelos estudiosos de caso (o processo de obtenção da Licença de Operação Corretiva das Minas de Itabira e os seus desdobramentos) Denise Tubino, John F. Devlin, e Nonita Yap, citados no desenvolvimento da tese de Marlene Machado.
Para esses estudiosos, a causa desse arrefecimento (letargia) se deve às mudanças administrativas dos órgãos e entidades que articularam os processos de mobilização.
“À exceção da época da privatização da Vale, com um tímido movimento contra a privatização da empresa, de fato não se viu grandes mobilizações em torno de causas significativas em Itabira nos últimos anos, pelo menos aquelas que se destacam pela mobilização de públicos”, constata a jornalista.
Ruídos na comunicação
Segundo ela, a cidade convive ainda com a ambiguidade da Vale nessa relação, o que se expressa muito claramente quando não deixa claro até mesmo quando se dará a exaustão mineral.
“A Vale publica o Form20-F (relatório encaminhado à Bolsa de Valores de Nova Iorque) desde 2001, atualizado anualmente. Nas publicações recentes, primeiramente, a data da exaustão das minas estava prevista para 2028; depois passou para 2029, 2031 e, em 2022, a empresa estipulou um novo prazo para o esgotamento do minério: 2041.”
E emenda: “Alteram-se as datas e as expectativas da sociedade local, mas não o risco de Itabira se transformar em uma cidade fantasma, sem emprego, renda e desenvolvimento econômico, se não encontrar uma saída para substituir sua principal fonte de renda. Esse é o temor dos itabiranos. Hoje, 85% da receita municipal tem origem na cadeia produtiva da mineração.”
De acordo com a autora, mesmo sendo a exaustão mineral ainda um não acontecimento, como é também um não acontecimento o rompimento de barragem, que se espera não aconteça, tudo isso já é uma realidade que afeta a vida cotidiana do itabirano, com os seus fantasmas e temores.
“Se estamos na expectativa de que algo aconteça, o fenômeno de algum modo já começou a se realizar pela perturbação que produz”, salienta a jornalista, lembrando que o fato de não acontecer “já produz um conjunto de efeitos, suscitando experiências não só individuais, como também coletivas e públicas”.
De acordo com Marlene Machado em sua tese, a primeira comunicação da Vale sobre a exaustão das minas de Itabira ocorreu há mais de três décadas, em 1992, quando foi lançado o projeto Itabira 2025. “Os resultados da iniciativa, no entanto, não se perenizaram.”
Ou seja, deram em nada, como é comum em Itabira ao longo de sua história, principalmente após o advento da mineração em larga escala. Será história que se repete agora com o projeto Itabira Sustentável, é o caso de se perguntar.
“A Vale manifestou interesse em se juntar à prefeitura nesse desafio, mas até a escrita desta tese não havia detalhado sua participação”, observa a jornalista, para quem essa indefinição é geradora de grandes expectativas e com potencial para comprometer a implantação do projeto.
Isso porque, ela argumenta, “sem os recursos financeiros da Vale, o Itabira Sustentável não segue adiante”.
“A ausência de uma economia robusta, capaz de sobreviver sem o minério de ferro, é atribuída pelos itabiranos que participaram das entrevistas semiestruturadas para esta pesquisa à falta de visão estratégica da Vale e dos líderes políticos e empresariais da cidade.”
Expectativas com não acontecimentos
No desenvolvimento de sua tese de doutorado, Marlene Machado mantém o mesmo ceticismo do cronista Drummond, ao perguntar se haverá uma quarta e diversa Itabira.
Assim como o poeta, a jornalista fica ainda à espera de uma resposta que seja convincente e fática – e não mais uma ficção, uma intenção de fazer ainda não realizada, como foi o projeto Itabira 2025, lançado em 1992 pela Associação Comercial local (Acita), em “parceria” com a Vale.
O projeto se propunha, como hoje repete de certa forma o Itabira Sustentável, tornar a economia do município diversificada e independente da mineração. Um propósito que ainda não saiu do campo da ficção, das “boas intenções” vá lá, ainda irrealizadas. Ou seja, um não acontecimento.
“Itabira está preparada para fazer frente a esse novo horizonte de expectativas que se descortinou com os rompimentos das barragens de Fundão e B1 e o anúncio da exaustão do minério de suas minas?”, ela pergunta, para em seguida ousar ter uma resposta que é também eivada de esperança na expectativa de que algo novo possa vir a acontecer para modificar esse cenário de iminente exaustão, sem que se tenha encontrado uma saída objetiva e que possa ser efetivada para diversificar a economia local.
“Por ser um processo aberto e indeterminado, especular sobre o futuro de Itabira torna-se uma tarefa por demais complexa. Contudo, um cenário está posto e é preciso considerá-lo: o esgotamento do minério é iminente e é preciso afastar a possibilidade de Itabira se transformar em uma cidade fantasma, encontrando soluções que possam substituir a riqueza mineral e acolher seus moradores, incluindo aí os atingidos pelas barragens de rejeitos, com suas fragilidades, vulnerabilidade, incertezas e angústias”, propõe.
“Cercada por 15 barragens, de portes variados, cerca de 18 mil dos 121 mil habitantes da cidade vivem nas Zonas de Autossalvamento (ZAS) e poderão ser alcançados pela lama de rejeitos em minutos, caso uma das principais barragens da Vale se rompa”, registra a jornalista.
É nesse contexto de uma quase não comunicação, que cria incertezas e angústias, que a jornalista se refere ao também ainda não acontecimento, que é o Plano Regional de Fechamento Integrado das Minas de Itabira (PRFIMI), elaborado pela empresa de consultoria internacional Tüv Süd Bureau Projeto e Consultoria, contratada pela mineradora Vale.
“O trabalho, concluído em 2013, envolveu as equipes da Vale, do bureau e consultores, totalizando 36 profissionais. Propõe iniciativas para uso futuro das áreas mineradas e programas socioeconômicos e ambientais para diversificar a economia do município”, descreve a jornalista em sua tese de doutorado, que prossegue:
“Teatros, bibliotecas, parques, complexo hospitalar, cultura de plantas medicinais e fabricação de equipamentos médicos são algumas das propostas para se implantar em Itabira após a exaustão das minas. O plano está depositado na ANM, como recomenda a legislação, mas não foi apresentado oficialmente pela Vale aos itabiranos e suas lideranças (até a conclusão desta tese). No entanto, foi divulgado integralmente pela Vila de Utopia.”
Leniência
Segundo afirmaram muitos dos entrevistados para a tese de doutorado, as lideranças políticas e empresariais de Itabira, entre elas a Vale, foram lenientes com o futuro da cidade e de seus moradores. Entretanto, mesmo com as sucessivas procrastinações do fim da mineração, ainda dá para buscar o tempo perdido, embora esse prazo esteja se tornando escasso.
“É uma nova oportunidade que se abre para Itabira e Vale construírem um futuro diferente, sustentável, que não seja o de uma cidade marcada pelo declínio da mineração. Fecha-se um ciclo em Itabira, confirmando a característica da atividade econômica – finita e não-renovável.”
É assim que “a expectativa de Drummond sobre o legado da mineração, como especulou o poeta na crônica Vila de Utopia, nos idos da década de 1933, quando questiona sobre uma terceira e diversa Itabira, que usamos na abertura de nossas reflexões, parece-nos que continua atual”, disserta a pesquisadora.
“As minas de minério de Itabira estão a um passo de se exaurir, com o município ainda buscando uma nova vocação econômica. E a cidade vive cercada por grandes barragens de rejeitos de minério de ferro, ameaçando os moradores das ZAS. Assim, nos perguntamos: haverá uma quarta e diversa Itabira após a mineração”, é a pergunta que a jornalista também faz, ainda sem resposta, assim como Drummond a formulou em 1933.
“A cidade não avança nem recua. A cidade é paralítica. (…) Tudo aqui é inerte, indestrutível e silencioso. A cidade parece encantada. E de fato o é. Acordará algum dia? Os itabiranos afirmam peremptoriamente que sim. Enquanto isso, cruzam os braços e deixam a vida passar. A vida passa devagar em Itabira do Mato Dentro.”
Ambiguidades
Para entender esse dilema, posto há tantas décadas, e ainda insolúvel como um não acontecimento a atormentar o itabirano de ontem e de hoje, a jornalista busca entender a relação ambígua entre a Vale e Itabira, ora tida como “mãe” e, não raro, como madrasta.
Com o avanço da mineração nas décadas de 1950 e 1960, ocorre significativa expansão urbana, fruto da instalação dos bairros funcionais e do crescimento de outros bairros de forma espontânea.
“A ‘cidade pública’ quase toda de formação espontânea abriga a outra parcela da população atraída para a cidade. Aumenta a diferenciação entre os bairros operacionais e os demais quanto à infraestrutura e equipamentos urbanos”, observa a pesquisadora em sua tese.
“Além do aumento do quadro de carências urbanas, revela-se uma situação singular: o duplo comando administrativo da mineradora e da prefeitura municipal, com os interesses da empresa muitas vezes prevalecendo sobre os da cidade”, observa a jornalista com acuidade, uma relação que permanece até os dias atuais.
É o caso de se perguntar: Itabira acordará algum dia? Quem responde, mais uma vez, é Drummond: “Os itabiranos afirmam peremptoriamente que sim. Enquanto isso, cruzam os braços e deixam a vida passar. A vida passa devagar em Itabira do Mato Dentro.”
Fundo perdido
É assim que a história se repete à semelhança do que Drummond observou em 1933 na pacata Itabira ainda sem os impactos, negativos e positivos, da mineração. Isso por inépcia e negligência dos agentes políticos e empresariais itabiranos, a Vale incluída nesse rol de omissões históricas.
“A atuação dos agentes do Estado não pareceu se mostrar à altura dos problemas. E a aplicação dos recursos da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (Cfem), ou royalties da mineração, é fortemente criticada”, registra a jornalista.
“Em 2020, segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM), Itabira arrecadou R$ 212,9 milhões com a Cfem. Contudo, desde 2012, não há nenhum projeto específico financiado pela Cfem para diversificar a economia do município nem na recuperação ambiental”, anotou a jornalista em sua tese.
Acrescente-se que antes, com o Fundo de Desenvolvimento Econômico e Social de Itabira (Fundesi), o que se investiu na diversificação econômica não passou de uma panaceia que em quase nada resultou de positivo.
Recursos municipais dos royalties foram perdidos em empreendimentos mal formulados, que não concretizaram seus planos de negócios. Não raro, resultaram em inadimplência dos devedores – e tudo ficou por isso mesmo, como é comum em Itabira da impunidade e da malversação com o dinheiro público.
É hora, portanto, de sair das cartas de intenção, dos projetos que visam a sustentabilidade no papel, para exigir a imediata implantação do Plano Regional de Fechamento Integrado das Minas de Itabira (PRFIMI).
“Embora a Vale ainda não tenha aberto a discussão com a sociedade sobre o encerramento de suas operações no município, o assunto demanda mais clareza em função das incertezas que o cercam”, sugere a jornalista, que já foi gerente de Comunicação da Vale.
“Apesar da iminente exaustão do minério, a Vale ainda não revelou a forma de participação dos itabiranos no processo de fechamento de suas minas e uso futuro dos espaços”, ela observa.
“Há, sim, expectativas da comunidade em participar desse processo, que poderá garantir um novo momento para a cidade, sobretudo se forem bem-sucedidas as iniciativas para Itabira ter uma economia diversificada e sustentável. Tais medidas poderão também se transformar em uma oportunidade para se discutir a sustentabilidade da mineração e o seu legado para a sociedade local.”
Carlinhos, Gostaria de saber o título da tese de doutorado da Dra. Marlene Machado. Ao ler seu texto, percebi muita similaridade nos temas abordados por ela com os da minha pesquisa e livro – A Terceira Itabira. Interessei-me pela leitura dessa tese.