Coletânea “Antifascistas” reúne 32 escritores de língua portuguesa

No destaque, José Eduardo Agualusa

Foto: Divulgação

Maria Valéria Rezende, Pilar Del Rio, Luis Fernando Veríssimo, José Eduardo Agualusa, Mia Couto, Valter Hugo Mãe e Micheliny Verunschk integram “Antifascistas – contos, crônicas e poemas de resistência”. O livro será lançado neste semestre na Europa e no Brasil pela editora Mondrongo, da Bahia. A revista Pessoa publica alguns trechos com exclusividade

Organizada pelo escritor, jornalista e professor universitário Leonardo Valente e pela advogada e professora universitária Carol Proner, a ideia da coletânea surgiu durante a Flip, no ano passado, logo depois que Leonardo foi atacado por manifestantes dentro de um café, em Paraty. O grupo estava na cidade para protestar contra a participação de Glenn Greenwald, um dos fundadores do Intercept Brasil, no debate sobre “Os Desafios do Jornalismo em Tempos de Lava Jato”, na programação paralela da Festa Literária.

“Prometi que a resposta seria dada pela literatura e não pela violência. É a literatura que vai disputar os afetos e a narrativa sobre os tempos sombrios do Brasil de hoje, muito mais que outras formas de expressão. E precisamos vencer essa guerra pelos afetos e pela narrativa, para impedir que essas atrocidades de hoje continuem e se repitam no futuro. O fascismo está no ventre da sociedade, e nele precisa ser combatido”, conta Leonardo.

Mal havia terminado o Festival, Leonardo já tinha o apoio de Gustavo Felicíssimo, editor da Mondrongo, para seguir com o projeto. Ao chegar no Rio de Janeiro, começou a contactar os escritores. O projeto era modesto no início, mas as adesões foram rápidas e generosas, segundo Leonardo, que, ao lado Carol, conseguiu mobilizar 32 autores do Brasil, Portugal, Angola e Moçambique.

“Somente de prêmios Jabutis, temos entre eles 12. No grupo temos ainda jornalistas famosos de TV, escritor de telenovela, cineasta e juristas. Foi emocionante receber o sim de gente tão grande, e foi mais emocionante ainda ter consciência de que há muita gente no Brasil e fora dele disposta a lutar para mudar este estado de coisas”.

Os autores que participam de Antifascistas – contos, crônicas e poemas de resistência são: André Diniz, Bárbara Caldas, Carol Proner, Christiane Angelotti, Cinthia Kriemler, Cristina Judar, Cristina Serra, Fernando Molica, Gustavo Felicíssimo, Hildeberto Barbosa Filho, Jeferson Tenório, João Ximenes Braga, José Eduardo Agualusa, Juliana Neuenschwander, Leonardo Tônus, Leonardo Valente, Luis Fernando Veríssimo, Marcelo Moutinho, Marcia Denser, Maria Valéria Rezende, Mia Couto, Micheliny Verunschk, Pilar de Río, Regina Zappa, Rodrigo Novaes de Almeida, Rosângela Vieira Rocha, Sylvio Back, Stella Maris Rezende, Urariano Mota, Valter Hugo Mãe e Wanda Monteiro.

Leonardo destaca também o peso simbólico de ter o livro editado pela Mondrongo, casa editorial da Bahia. “Para nós, era muito importante ter no Brasil uma publicação vinda do Nordeste, região mais massacrada pelo atual governo e vítima do preconceito de fascistas de todas as regiões do país. E no Nordeste, a Mondrongo se destaca pelos prêmios literários e por ser berço de grandes escritores, como o Itamar Vieira Júnior, que hoje faz muito sucesso em Portugal.”

A proposta não é lançar apenas um livro, mas um movimento. Por isso, todos os lançamentos no Brasil terão debates voltados para diferentes públicos “com o objetivo de alertar para a necessidade de enfrentar o fascismo”. O pré-lançamento da coletânea será em breve numa capital europeia. No Brasil, o livro será lançado em Salvador e depois vai circular pelas cidades do Rio, Niterói e São Paulo. Ainda não há data prevista para os lançamentos no país. O organizador ainda não sabe se o livro também será publicado em Portugal. Mas adianta que já está em conversação com algumas editoras portuguesas.

Confira abaixo trechos de textos de José Eduardo Agualusa, Maria Valeria Rezende e Luis Fernando Veríssimo.

Enquanto o fogo avança

José Eduardo Agualusa

Nessa noite, após o passeio pela Avenida da Liberdade, Zinho trabalhou  horas a fio diante do écran do computador, explorando as infinitas possibilidades do photoshop. A partir de imagens que encontrou na Internet construiu um homem bonito, distinto, com um triunfante sorriso no rosto jovem. Criou um perfil novo no FaceBook, em nome de Domingos Boaventura, natural de Luanda, estudante de comunicação social em Paris. Domingos Boaventura surgia em diversas fotografias praticando surfe, saltando de paraquedas, tocando saxofone ao lado de um espantado Manu Dibango. Enviou pedidos de amizade para dezenas de angolanos ligados à oposição. Ao terceiro dia participava em animados debates sobre liberdade de expressão, direitos cívicos e a situação económica do país. Decorrida uma semana na pele de Domingos Boaventura, sentindo-se de corpo e alma Domingos Boaventura, Zinho lembrou-se de escrever e divulgar uma Carta Aberta ao Ditador. Na carta, em linguagem violentíssima, incitava o presidente a abandonar o palácio-cor-de-rosa antes que o povo enfurecido o arrancasse de lá a pontapés. A carta foi recebida com entusiasmo e, em breve, já circulava em mensagens electrónicas, e era citada em blogues e em jornais angolanos on-line.

Animado com os resultados da sua primeira insurreição cívica, Zinho redigiu um apelo para uma manifestação, a ter lugar em Luanda, na Praça da Independência, no segundo domingo de janeiro. Assinou o apelo com o nome de Domingos Boaventura. Releu o apelo. Pareceu-lhe pouco um único nome. Inventou então dois outros personagens: Mestre Pombo, arquitecto, e Miracolino de Sousa Andrade, militar de carreira, ambos residentes em Luanda.

Na manhã seguinte surpreendeu-se ao encontrar dezenas de mensagens no FaceBook. Jornalistas angolanos e portugueses pretendiam obter mais pormenores acerca da manifestação. Um deles solicitava uma entrevista. Havia também mensagens felicitando-o. Pessoas comprometiam-se a estar presentes. Outras, pelo contrário, condenavam a iniciativa. Dois dias depois, o Jornal de Angola publicou um editorial contra “os falsos revolucionários da Internet, malandragem refugiada em países europeus, que com acções irresponsáveis pretendem colocar em causa a paz e a estabilidade. Angola não é a Tunísia. Não é o Egipto. *

Saio não, senhor

Maria Valéria Rezende

Sair daqui? Saio não, senhor, de jeito nenhum. Hoje é meu turno e eu não falho, como nenhuma mulher deste lugar falha na vez dela. Foi coisa há muito tempo combinada, palavra dada, de uma em uma, e palavra de mulher aqui é feito bala de revólver, depois que disparou não volta atrás.

E nem o senhor vai passar com esse carro, que já faz pra mais de dez anos que aqui não passa nenhum. E não foi pra isso mesmo que a gente acertou de não deixar esse monte de pedra sozinho, sem guarda, hora nenhuma do dia nem da noite? Falhou nunca! Se uma tiver impedimento grave é só chamar que outra vem, não é mesmo, Comadre Raimunda? Se houver confusão, vêm todas! A comadre é a testemunha maior, que daí desse alpendrezinho dela fica de olho, sempre que pode, pra prevenir o mulherio todo se aparecer alguma perturbação. Eu mesma só falhei uma vez por causa da barriga e do resguardo do meu último menino, mas a guarda das pedras não ficou descoberta. Sobrou gente pra cobrir meu turno.

Nós não temos nada a ver, se o senhor comprou essa fazenda sem se informar sobre os caminhos. Por aqui não passa.

A divisão

Luis Fernando Veríssimo

Na chamada Idade das Trevas, quando nem os reis sabiam ler, a escrita e a cultura clássica foram preservadas nos monastérios e claustros da Igreja, que ao mesmo tempo em que negava a ciência  foi seu refugio.., e ao mesmo tempo em que combatia a intolerância dogmática da ciência, foi o exemplo maior de dogmatismo intolerante da fé. No mundo dos economistas em conflito, humanistas x cientistas,  não-liberais x neo-liberais, estamos de volta a uma minoria herética abafada por um dogma dominante. De novo a divisão.

[Fonte: www.revistapessoa.com].

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