As áreas culturais de Minas

João Camilo de Oliveira Tôrres (1915-1973)

Fotos: Reprodução/
BN-Rio

“A pesquisa do ouro é quase uma atividade industrial regular: havendo o precioso metal, com esforço (e a margem natural, mas não exageradamente grande, da sorte) os resultados virão com o tempo. O diamante, este é uma loteria. E daí o espírito espiritualmente mais ousado, e alegre do homem do Tijuco, em face da tristeza sombria dos homens da região do ferro e do ouro.”

Por João Camilo de Oliveira Torres

1 – Tomando como base metodológica e ponto de partida para as investigações o fato de que as esferas de influência de todas as ciências culturais se cruzam em todos os sentidos e, de certo modo, se interpenetram, as escolas modernas criaram o método histórico cultural.

Pode-se afirmar, com bastante segurança, que o princípio filosófico que deu origem a esse método e a essa posição em face dos problemas é o da integralidade real da natureza humana, que estaria sendo gravemente comprometida com o aparecimento de sucessivas ciências sociais que, por mais justificadas que sejam por seu objeto imediato e suas razões metodológicas, pressupunham, de certo modo, uma visão parcial e isolada de um conjunto que na realidade é uno e único.

Se podemos estudar como ciências isoladas, a etimologia, a economia, a sociologia (nome que já se vai tornando quase ambíguo) a geografia humana e a história, etc., é necessário que tenhamos sempre como princípio normativo principal a unidade substancial do objeto comum a todas elas.

Ora, a escola histórico-cultural parte – levando em conta esse substratum filosófico – de dois pontos de vista que poderiam ser as suas regras metodológicas prévias:

  1. nenhuma ciência cujo objeto seja o homem como tal (ciências “culturais”, “sociais”, “do espírito”, ou que nome genérico tenham) pode ser estudada independentemente das demais;
  2. a história é o centro de convergência e a síntese de todas as ciências antropológicas, por estudar a humanidade em conjunto e segundo a dimensão do tempo, que é a própria do homem.

O resultado disto é o método a que Graebner, Schmidt e outros deram feição definitiva, baseados principalmente numa espécie de síntese entre a geografia, a sociologia, a etnologia e a história. E como categorias principais deste método há que registrar as seguintes: a cultura, que é o conjunto das realidades “visíveis e invisíveis” nascidas da atividade humana especifica; os círculos (ou ciclos) de cultura, que são as fases de realização de uma unidade cultural; as áreas culturais, que são aquelas regiões geográficas e historicamente definidas, que servem de palco e de fundamento para um círculo de cultura e, finalmente, os estratos (ou camadas) culturais que são diversas secções temporalmente definidas da realização de um ciclo cultural. Isto, é claro, muito esquematicamente e de maneira bem sumária.

2 – Por isto, uma divisão adequada e a exata delimitação dos círculos, áreas e estratos culturais é condição previa ao estudo da história de qualquer entidade que seja de fato um ser histórico definido, pois muitas vezes os historiadores se dedicam ao estudo de determinadas construções históricas, artificialmente delimitadas e constituídas sem o menor respeito à substância real dos fatos históricos.

Daí ser conveniente, “para começo de conversa”, fixarmos o conjunto das áreas e dos estratos culturais, as primeiras, mostrando a difusão da cultura no espaço e as segundas a sua sucessão no tempo, isto se pretendermos ter qualquer ideia razoavelmente definida do capítulo da história que pretendemos estudar.

Ora, do ponto de vista histórico, a nossa Província das Minas Gerais, embora uma região – uma província – perfeitamente definida surgiu da confluência dos quatro grandes ciclos da história do Brasil: o da caça ao índio, que foi algo no gênero de um prefácio anterior à história; o da mineração (com as suas variantes: ouro, ferro, diamantes, todos em duas fases); o do couro (também com duas fases) e o do café.

Isto até uma certa época, durante o tempo em que se pode falar em história em Minas. Destes o mais espeficifico como se sabe, foi da mineração, polo e centro de atração de toda a formação mineira. Como delimitar, porém, as áreas respectivas de todos estes ciclos em suas variantes? E que tipos de cultura produziram?

É o que vamos esboçar aqui, antes como anotações prévias a pesquisas mais amplas e vigorosas do que conclusões. Vamos traçar o roteiro que deverão seguir as caravanas de especialistas que irão fazer o mapa verdadeiro da região.

3 – Define-se uma área cultural por uma região geográfica que lhe é própria, assim como por um centro de interesses, igualmente especifico. E como consequências, modos de existência da mesma forma típicos e peculiares.

4- O ciclo da mineração conheceu em Minas Gerais dois desdobramentos principais, perfeitamente definidos: o do ouro e o dos diamantes. Ambos, por sua vez, se prolongaram e se projetaram em novas direções, no século XX que se caracterizaram igualmente pela substituição do critério utilitário, próprio do feudalismo, pelo critério utilitário, próprio do capitalismo. Assim o ciclo do ouro prolonga-se no ciclo do ferro e o ciclo dos diamantes no ciclo do cristal, da mica e outras atividades afins.

São fases sucessivas e complementares. As áreas geográficas naturais respectivas não são de difícil fixação e são bem conhecidas. O ciclo do ouro fixou-se no grande “continente” da Serra do Espinhaço e nas “ilhas” mais afastadas de S. João del Rei, Pitangui e Campanha. É o grande conjunto de serras que serve de divisor das águas dos grandes rios mineiros e cujos picos pontiagudos geralmente muito semelhantes uns aos outros – sugerindo inclusive repetição de nomes, como Itabira – emergem do seio das cordilheiras cortadas pelos rios. São grandes os depósitos de itabirito e jacutinga nas serra e de ouro nos rios e córregos.

A civilização seguiu, aqui, o caminho conhecido: faiscagem nos rios, lavras a céu aberto, grandes minas. Depois veio o ferro e a siderurgia. No princípio a fase de transição, com a siderurgia subsidiária à mineração, os tempos heroicos do Major Paulo, do intendente da Câmara, de Eschwege, Monlevade, etc. Por ultimo a siderurgia moderna, colocando o ouro em segundo plano. Mas, sempre os altos fornos surgindo diante das velhas igrejas do Aleijadinho: o ferro e o ouro, com todo o milenar simbolismo que representam, ligados mutuamente pela constituição do solo mineiro.

E o velho Gorceix, bom cientista e mau poeta fazia a retorica fácil e de gosto duvidoso, quase um trocadilho: um coração de ouro num peito de ferro. Por sua vez, a localização do ciclo dos diamantes, mais tarde democratizado no ciclo do quartzo e da malacacheta, não é de difícil identificação: são os rios que correm a leste e ao oeste do grande maciço que lhe fixaram a situação. De certo modo correspondem a uma área de transição, entre a montanha e o sertão. Mas nas bacias do Jequitinhonha e do Paranaíba, assim como certas zonas aproximadas geologicamente fixaram-se as duas áreas dos diamantes.

Quanto à fixação da vida social nos ciclos autônomos (até juridicamente, pois o Distrito Diamantino possuía administração própria) há um vasto campo de estudos a serem feitos e estudos da maior importância, pois Minas Gerais, como o próprio nome indica principiou por aí. E durante dois séculos, dos duzentos e cinquenta anos que existimos, a sede politica, intelectual e religiosa de Minas estava dentro destes dois ciclos: Ouro Preto, Mariana, Diamantina e S. João del Rei.

Mesmo a capital moderna está num “golfo” do ciclo do couro dentro do conjunto da zona do ouro. Podemos dizer que os alicerces de Minas foram fincados sobre o terreno angustiado e revolto das minerações. E mesmo hoje, a industrialização do Estado se projeta ao longo dos caminhos dos bandeirantes e mineradores. De um modo geral, porém, não são iguais as estruturas sociais nos dois ciclos gêmeos, embora semelhantes e destacando-se do conjunto.

Analisemos rapidamente os seus aspectos principais em comum e de divergência. De comum, ambos possuem o tipo urbano e industrial de existência, contrastando com o sentido agrário dos outros dois. São as regiões mais antigamente povoadas e onde a presença da cidade e do estado é mais antiga. O homem aqui possui um passado antigo e sabe o valor da tradição, que às vezes lhe pesa aos ombros com a força de todos os mortos.

Já existe uma experiência sedimentada pelo tempo e a cultura não é uma palavra vazia de sentido. A religião se apresenta mais difundida e não se pode associar a Igreja a uma classe ou a um agrupamento social, pois, há dois séculos, as irmandades disseram a mesma Palavra, em línguas diferentes, aos homens desigualmente distribuídos. E a este respeito, a presença muito mais acentuada do homem de cor que em qualquer outra região do Estado.

E as diferenças?

Aires da Mata Machado Filho fala-nos no espírito lúcido do minerador: de diamantes, seja dito. A pesquisa do ouro é quase uma atividade industrial regular: havendo o precioso metal, com esforço (e a margem natural, mas não exageradamente grande, da sorte) os resultados virão com o tempo. O diamante, este é uma loteria. E daí o espírito espiritualmente mais ousado, e alegre do homem do Tijuco, em face da tristeza sombria dos homens da região do ferro e do ouro.

Não haveria uma Chica da Silva em Ouro Preto. Apenas Marília, a bela, romanticamente reclusa. E no campo do culto à “Vênus Fusca”, capital entre nós, não se passou além da atividade mais ou menos doméstica e sem grandes fantasias… A verdade, como todos sabem, é que o diamantinense continua sendo o mais alegre dos mineiros. E se a literatura prova alguma coisa, temos os exemplos clássicos das letras da zona do ouro: Alphonsus Guimaraens, Carlos Drummond, Cornélio Penna…

5 – O ciclo do couro é tão velho como o do ouro nas Minas Gerais; o povoamento do território mineiro se deu simultaneamente em duas direções: os bandeirantes, vindos do sul e os boiadeiros, vindos do norte, subindo o São Francisco. Vinha da Bahia e espalharam-se com os seus currais ao longo dos campos do chapadão.

A área cultural do couro é facilmente determinável: é o grande planalto de campos naturais no qual se achatam as montanhas mineiras ao Norte e ao Oeste. As características da civilização do couro – que engloba todo o S. Francisco, os sertões do Nordeste, o Goiás e o Mato Grosso – já foram objetos de estudos clássicos e por vários autores antigos e modernos.

Um dos clássicos da nossa literatura pertence ao gênero: “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. O que é justo, pois, não há, certamente, no Brasil uma área cultural mais vasta. Uma coisa é certa: em Minas Gerais, muito se diferenciam os ciclos do couro e da mineração. Predominância do campo sobre a cidade, do espírito de aventura sobre o espírito de tradição, composição racial na base do complexo do caboclo (índio-branco), maior gosto pelo fausto.

Creio que não há demonstração mais nítida desta diversidade que a observação que me fez certo deputado: na sua região não existem “fazendas velhas”, só casas modernas… A área cultural do couro foi alvo em nosso tempo de um dos maiores escândalos econômicos da história do Brasil, o do “encilhamento” do zebu, a transformação do boi em artigo de luxo e de especulação, sucedendo-se depois, o “crack” espetacular.

O pior de tudo foi a presença perturbadora do Governo num e noutro caso. Em muitas regiões do Estado a palavra “pecuária” possui sentido pejorativo, significando a utilização do gado para fins desonestos. A verdade é que o homem do chapadão conserva o espírito ativo e inquieto, e aceita de melhor grado as inovações: é o setor avançado das Minas Gerais, contrabalançando o tradicionalismo da região das Minas e o conservadorismo dos cafezais.

6 – O terceiro dos grandes ciclos culturais da formação brasileira a atingir Minas Gerais é o do café. Se o gado e o ouro foram os instrumentos de povoamento e civilização no século XVIII, coube ao café a glória de fazer o século XIX.

Quanto à sua distribuição geográfica, o ciclo do café espalhou-se ao longo de toda a faixa meridional do Estado, nos vales férteis e úmidos das vertentes da Mantiqueira. Dois grandes setores possui a área cultural do café: o sul de Minas propriamente dito e a zona da Mata, a vasta região situada  ao SE. Caracterizam-se ambas como fase intermediária entre o ciclo do ouro e do couro. Embora região fortemente agrária, a urbanização é nitidamente visível e a tendência à industrialização sempre foi predominante e hoje se acentua cada vez mais.

Duas distinções principais devemos procurar entre estes dois grandes setores da cultura do café: o sul de Minas sofre a influencia paulista e o estilo de vida dos homens e as ideias, assim como a organização social se assemelha ao tipo paulista. A zona da Mata pertence ao complexo fluminense: O estilo é o das grandes fazendas feudais do vale do Paraíba.

E, muito significativamente uma estrada tipicamente fluminense e ligada aos barões do vale do Paraíba, a Leopoldina Railway, penetra a zona da Mata até no seu extremo limite norte; por um triz realizava-se o plano de ir terminar em Itabira. A zona da Mata, principalmente na bacia do Rio Doce constitui o “Solid South” da política mineira. Ali os grandes chefes eleitorais controlam maciçamente as grandes maiorias eleitorais… Racionalmente, temos a presença do negro, mais intensa que na região do couro é mais reduzida, pois a presença do imigrante é acentuadíssima.

De um modo geral das zonas ligadas ao ciclo do café têm surgido os homens de estudo de minas, embora não seja pequena, até hoje, a concorrência dos homens da mineração. Já os do ciclo do couro contribuem antes para a história econômica, criando novas raças de gado, adotando princípios e técnicas mais modernas da agricultura…

7 – Assim, de modo esquemático, se classificam as áreas culturais de Minas Gerais. Há um grande trabalho a ser feito, descrevendo os movimentos da população que lhe deram o nascimento. Há também, que estudar as maneiras peculiares de ser de cada uma delas, como nasceram as suas cidades e como se organizaram. Ainda não se estudaram com as devidas atenções a sua organização econômica, específica, as lutas e a formação de seu povo. Para que possamos fazer isto, necessário se torna a execução de amplos e minuciosos trabalhos de pesquisas, praticamente inexequíveis, dadas as dificuldades que, no Brasil, oneram a pesquisa histórica…

[Ilustração Brasileira (RJ), Junho de 1949. Hemeroteca da BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

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