Tempo de jabuticaba

Foto: Reprodução/
Emater/Goiás

Maria Julieta Drummond de Andrade

Há quanto tempo não chupava jabuticaba? Perdi a conta: desde sempre talvez – de tal maneira o gosto e a consistência da frutinha (distantes, diluídos) pareciam mais feitos de sonho que de realidade. Jabuticabas da infância, da casa vermelha na Floresta, dos tempos de antes, muito antes do nascimento?

Confundida, cada vez que voltava ao Rio, eu implorava à anfitriã:

– Por favor, quero jabuticaba, preciso de jabuticaba! Moro no estrangeiro há tantos anos, consiga-me algumas, uma que seja!

Invariavelmente Dona Irene respondia:

– Não é tempo.

No ano seguinte, em outubro, em maio, de novo aquela urgência de jabuticaba. Nunca era tempo.

– Como não é tempo? Estamos no verão, estamos no inverno: que classe de tempo é esse que não encaixa nas sucessivas primaveras?

E a jabuticaba, fruta de botão (diz o tupi), povoando a lembrança profunda, a saudade de gosto, cheiro, formas redondas entre os dedos, entre os dentes. A imagem constantes de “I’apoti” kaba” no tempo nenhum.

Até que no mês passado – eu, no Rio – Dona Irene me acorda sutilmente:

– Hoje você terá uma felicidade.

Ela sabe das coisas e seu tom era firme. Não duvidei e me pus a inventar as felicidades mais lindas, íntimas e luminosas. Só não descobri a única, a inigualável, que me fora preparada pela dona-de-casa (de uma especialíssima, aliás, à qual chegam diariamente dádivas diversas e sedutoras: flores, livros, frutas, mel, estatuetas, pedras, poemas, mariposas em acrílico, objetos macios, bolinhos de feijão).

Levanto-me alvoraçada e, na copa, sobre a mesa de formica, um pratinho contendo: já-bu-ti-ca-bas! Dona Iracema recebera de presente, na véspera, duas dúzias, envoltas em papel de seda, enfeitadas com laço de fita amarela, e escondera o pacote na geladeira para surpreender-me no café da manhã:

– É a melhor hora de ser feliz – terá pensado com delicadeza. Assim o dia inteiro, a semana, o mês, o que resta de 1980 ficarão marcados por essa alegria inicial.

Dona Iracema é cheia de amor e, como sempre, tinha razão: o de que eu carecia, a ponte que me faltava eram precisamente aquelas doze bolas de gude lustrosas, olhinhos úmidos de ônix encontrando-me, desafiantes, capazes de transportar-me para outras terras, em outros tempos.  Detive-me, em estado de fascínio: as jabuticabas, à espreita.

Devagar e prelibando a satisfação do tato, fui estendendo o braço e, mais devagar ainda, passando a ponta dos dedos sobre a superfície envernizada: o conjunto era fresco, liso, curvo. Separei uma: esta! Segurei-a com cuidado, rodei-a na palma da mão, das duas mãos, cheirei-a, fixei-a na retina, uni-a a todas as outras jabuticabas que hibernavam em mim e que, nesse instante, recuperando o viço, passaram a girar também.

No jabuticabal, uma jabuticabeira, que não era branca, peluda, cipó ou do-mato: jabuticabeira somente, “arvore da família das mirtáceas (Myrciaria cauliflora), de flores alvas e com muitos estames, folhas pequenas, com glândulas translucidas, e sobre cujo tronco, liso aparecem os frutos, deliciosas bagas suculentas”.

Menos ainda: a jabuticabeira do quintal de Dona Elódia (onde os moleques da rua, onde as meninas da rua – em horas separadas – se aglomeravam, voluptuosamente: de manhã e de tarde, centro de todos os prazeres).

Levei minha jabuticaba aos lábios. Ah, era esse o contato que a memória sensorial exigia: a casca túrgida, resistente, cedendo bruscamente à primeira dentada; o miolo grosso deslizando pela língua sugadora; a rápida separação e expulsão do caroço; a casca inútil, oca, entre os dedos. A alegria na garganta!

Era assim, assim mesmo que se comiam jabuticabas na Rua Silva Jardim, no tempo da jabuticabeira: lentamente, sem avidez, de forma concentrada, para que todos os sentidos participassem da cerimonia. (O cheiro pegajoso, singular, e os diversos barulhinhos que produziam a casca, ao romper-se, a sucção, o engolir – inimitáveis.)

Sem presa, acariciei as onze frutinhas, observei-as, comovida. Quis comer uma segunda, desisti. Deixei-a junto às outras, para Dona Iracema, que discretamente me largara sozinha diante das jabuticabas. Ao voltar, e vendo o pratinho quase intato, ela inquiriu, desapontada:

– Mas você não proclamou tanto que não podia viver sem jabuticabas?

Sorri e pisquei para ela com ar cumplice. Acho que a perfeita anfitriã captou em silêncio o que eu acabara de entender: que o tempo de jabuticaba, fluido ou estático em cada um de nós, independe da fruta.

[Livro: O Valor da Vida, Maria Julieta Drummond de Andrade. RJ: Nova Fronteira, 1982 – Pesquisa: Cristina Silveira]

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