A Itabira das sombras e do poeta

Por Luiz Jardim*

Quem nas terras vastíssimas de Minas Gerais procura emoções barrocas, por gosto e recreio, não deve perder nem mesmo as curvas dos caminhos. Tem que as seguir, como quem “s’envolve, e buscar os contrastes plácidos das linhas retas. Depois, para complemento de plástica visual, deve olhar os amarelos dos buritis de Afonso Arinos e o verde de mil verdes de toda a mataria.

O galope do automóvel também deve contar, porque o barroco é um fenômeno dinâmico. Está na corrente circulatória do sangue, como está no movimento das folhas, mesmo mortas, quando o vento as sacode.

Importa continuar. Continuar sempre, sempre subindo para São Leopoldo-de-Rio-Abaixo ou descendo para São-Leopoldo-de-Rio-Acima. O riacho que por ventura se interpuser à passagem do auto não deve jamais ser tido como um acidente, e sim como um presente.

Da terra, presente generoso da terra em cuja superfície as imaginações mercenárias talvez suponham entrever coruscantes pedras preciosas, que não são joias, mas pedaços vulgares de passados vidros.

Na baixa do rio há sapos, no automóvel há sopapos e nos gordos pescoços de transeuntes desconsolados, vez por outra, há perigosos papos, enxu’s de carne malsã onde não chega o bisturi dos médicos.

Onde estão os médicos? Nas grandes praças, onde nada é de graça. Haverá um dia uma força volante de médicos contra as moléstias cangaceiras que dizimam a gente pobre da terra brasileira?

– Um dia haverá tudo, dizia-me um homem que não possuía nada. Haverá até de sobra, afim de que o que passa da conta se exporte generosamente a preço nenhum para os nossos irmãos chineses, poloneses e até malteses. Que importa a latitude onde se nasce, se cada um, por Deus, tem o nome de irmãos?

E foi assim que me disse o chofer:

– Chegamos, meu irmão!

– Estamos nós na Itabira do insigne poeta Carlos Drummond de Andrade? Indaguei.

– Se é dele eu não sei, moço, mas esta é a velha Itabira, onde sobra sempre um palmo de terra para quem nela queira demorar o pé, respondeu o chofer.

– Então é esta?

– Esta mesma, irmão, onde o ferro dá pela raiz.

Itabira! Eis aí a significação da vaga tristeza do poeta Carlos Drummond de Andrade!

Itabira é terra do penumbrismo, terra abundante de sombras que os muros, as fachadas setecentistas e as árvores sem data certa sacodem generosas lá do alto para os que andam e rastejam ao nível do chão. As sombras se alongam preguiçosas pelas calçadas férreas, transpõem as ruas sonolentas e estendem-se, maleáveis, como uns enormes tapetes inconsuteis.

No brazão à direita de quem entra na cidade de ferro está uma data que assinala o gozo do historiador confiante no tempo. Ao lado, varandas do século dezenove ainda não muito valorizadas pelas eras.

Defronte se posta um homem para quem a vida só importa quando contada aos séculos. Nada de hoje e de ontem tem valor. Só o de antanho, o de priscas eras, ainda não autenticado pelo documento.

Nisto, para surpresa minha um homem de simpatia irresistível, arrastando bem acomodado a sua hemiplegia quase inofensiva, me cumprimenta expontaneamente:

– Boa tarde, amigo! Anda passeando por aqui?

Eu ri o riso que responde a contento todas as perguntas, e ele compreendeu, satisfeito. E como eu perguntasse pela serra de Itabira, que guarda o ferro do Brasil presente e futuro, o homem riu o riso que ninguém compreende, e me informou:

– Vê toda essa cordilheira aí defronte?

– Vejo!

– Vê tudo isso, que a vista nem alcança?

– Estou vendo.

– Pois: bem é como se não visse nada, porque toda esta serra de ferro está aí se enferrujando há quatrocentos e tantos anos.

Uma velhinha passou nesse meio tempo e nos desejou uma boa tarde, à maneira dos medievais. Deixei então o boticário e segui anônimo pelas sombras amigas da cidade férrea do poeta.

Por aqui passou ele, um dia, pensava eu. Ele terá visto as estrelas particulares desta sua cidade, terá contemplado os céus sonolentos da sua terra.

E os terá visto diferentemente, personalissimamente, com a circunstância a mais de os ter visto ainda menino, fase em que o azul é cor de rosa e a rosa é uma bonina.

Qual teria sido a cor do primeiro par de olhos pelos quais a alma do poeta adoeceu de melancolia? Teria ele amado os muros carcomidos, os casarões feridos pelo tempo?

– Não! Respondeu violentamente um homem que discutia com outro no botequim da esquina.

– Como? Indaguei, surpreso, ligando a sua negativa às minhas cogitações.

– Não falei com o amigo – disse ele – mas é como se falasse. Eu dizia aqui a este cabeçudo o seguinte, seguinte que eu digo ao senhor também…

E o homem do botequim da esquina falou, de copinho na mão, luz brilhante nos olhos e cor vermelha da cara revelando a alma tocada de bons espíritos. Aliás, não era má a fria aguardente.

– É o seguinte:

“Que importa o passado, amigo? O passado é uma coisa que a vida digere, assimilando mal ou assimilando bem. E quem faz digestões lentas, do que já comeu, igual ao que já passou, acaba por indigestar-se. Olhe aqui: Vivem aí a dizer-me, em belo lugar comum, que o exemplo do passado é a bússola de futuro, mas eu digo que a ciência vive a corrigir os erros dos que morreram.”

“Nós estamos é na época do ferro; do aço; da velocidade; do som e clima acondicionados, e não podemos, portanto, ficar chorando em cima do defunto passado do pau podre; do bronze; do carro de boi, nem do clima que o tempo dá. Olhem-me esta cidade. Olhem-na!”

“ Lá estão as serras do ferro! Quem as cava, quem as “melt” para que sobre os campos corram tratores, nas estradas haja amores de pares confortavelmente instalados em autos da marca “star”, “of course” do Brasil? Quem as “melt” para as foices transformadoras de árvores sem fruto em pomares bloosomantes?”

“Quem dissolve este ferro de teor supremo em finas linhas por onde corram velocíssimos comboios levando aos pontos cardeais do Brasil o metal de que carecem? Metal para uma estrutura que o cupim não roa!”

“E eu quero geladeiras, chocadeiras (abaixa as chaleiras!) – eu quero também tratores, rebocadores (vivam os amores!) – mas que haja igualmente outras sortes de maquinarias a serviço quase barato das gentes sem coisa alguma.”

“Máquinas que não somem ou diminuam e, graças à arte e ao engenho, só saibam dividir e multiplicar. Dividir tudo por todos e multiplicar cem por mil. Para que cada um tenha em que rodar.”

“Eu quero é ferro, amigo o bom ferro de tempera toledana para o Brasil subir e medrar. E sabe o senhor de uma coisa? Nutro a vaga esperança de que, de ferro, só se faça, no mundo uma carabina simbólica: que não dispare, mas faça parar o ímpeto sanguinário dos que brigam.”

“Paradoxalmente, para que se luta? Para fazer a paz. Logo, pás, pás, pás, para as terras gordas do mundo inteiro, de cujas entranhas nascerá o pomo pelo qual Eva, de novo, não se perderá”.

Então o homem ao lado declarou:

– Não dá importância a este camarada, que ele está triscado.

Nisto, o chofer, esmagadoramente solicito, correu para mim gritando:

– Doutor! Doutor! É esta mesma a terra do poeta!

Eu sabia, devia ser aquela a terra do poeta. E uma vontade indomável quase me fez dar um viva aos homens que triscam, sonham e poetizam.

*Luís Inácio de Miranda Jardim (Garanhuns, 1901-1987)

[Diário de Pernambuco, 9 de julho de 1944. Hemeroteca da Biblioteca Nacional/Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

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3 Comentários

  1. Que genial esse raro achado, mais um registro de literatos no rastro do poeta, com uma impressão altamente elogiosa do itabirano trincado, que já nem sei se existe mais. Reaparecerá algum dia? Entre tantos comentários geniais do xará de Lula, destaco um pela sua contemporaneidade em tempos de pandemia e cloroquina. “Onde estão os médicos? Nas grandes praças, onde nada é de graça. Haverá um dia uma força volante de médicos contra as moléstias cangaceiras que dizimam a gente pobre da terra brasileira.” . Isso é em 1944. Um abraço afetuoso de uma itabirana ausente. Heloisa Lage Figueiredo.

  2. Genial o texto que nos transporta a uma Itabira longínqua, onde o poeta nasceu. Um grande legado descoberto por nossa conterrânea Cristina, sempre a nos brilhar com textos raros e atraentes.
    Também me transportei ao presente, em tempos de pandemia, e responderia ao personagem onde se encontram os médicos: nos hospitais, extenuados, trabalhando noite e dia para salvar vidas e, muitas vezes, sem conseguir salvar as próprias vidas.

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