Imagens de 1915 – O Grêmio Artur Azevedo

Carlos Drummond de Andrade

…e sobre as sutilezas sem nome que esconde o ato de falar, tão corriqueiro na aparência.

Quando faleceu Artur Azevedo, o rabiscador destas linhas ainda não havia aprendido a ler, mas logo aos primeiros avanços no mundo das palavras impressas, o seu nome devia impor-se à imaginação infantil. O interior do país conserva ainda (ou conservava, naquele tempo de comunicações escassas, por muitos anos) a lembrança que logo se esgarça no Rio e São Paulo.

E morrendo em 1908, Artur Azevedo continuava perfeitamente vivo na memória de muitos leitores, que guardavam revistas e almanaques antigos, como alimento sempre disponível para as horas de ócio. Ele manejara um instrumento que assegura essa permanência com que o simples humorista ou crônica não pode cantar: suas comédias realmente engraçadas, fáceis de representar e guardar, despertavam nas pequenas cidades não só a alegria de descoberta do teatro, como ainda essa outra alegria bem maior de participar dele, de omitir a rotina cotidiana de maneira ativa, figurando, como ator, num plano irreal.

Diretoria e sócios do Grêmio DramáticoArtur Azevedo, de Itabira, na revista FonFon (Acervo da Biblioteca Nacional, Rio/Pesquisa: Cristina Silveira)

Por isso florescia em Itabira , nos idos de 1915, um Grêmio Dramático e Literário Artur Azevedo, a que tive a honra de pertencer por especial benevolência dos diretores, que deram interpretação muito elástica aos estatutos (se não me engano houve mesmo reforma), pois a sociedade era de adultos, e abriu suas portas a um menino metido a literato.

O Grêmio ficava no segundo pavimento de um velho sobrado, a casa dos Anchietas, família de cegos que viviam de fabricar sapatos no andar térreo. Um pequeno armário envidraçado era toda biblioteca; o retrato de nosso patrono abençoava-nos gordamente de uma parede.

A bem dizer, só pertenci à associação na parte puramente literária, pois desde cedo verificara minha especial inaptidão para a arte de representar: os exercícios teatrais do grupo escolar levaram-me a refletir sobre a dificuldade de mover os braços quando não se vai pegar passarinho ou empurrar o companheiro num brinquedo gratuito; e sobre as sutilezas sem nome que esconde o ato de falar, tão corriqueiro na aparência.

Que fazer de um braço quando se conversa, quanto mais de dois? Ah, de braços duros, esticados ao longo do corpo, numa confissão de timidez idiota; mãos que não agarram, não se crispam, não sabem chorar ou rir… Depois, o pescoço era igualmente rígido, e os olhos não se moviam em qualquer direção razoável – salvo a do ponto.

Esses pequenos grandes sofrimentos não desviam o garoto do interesse pelo que se passava no teatro, que era amplo e simpático, e aparecia aos seus olhos como a casa mágica, raramente aberta, e sempre prestigiosa.

Texto originalmente publicado no Boletim da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), em julho de 1955

Tínhamos ótimos amadores, ou assim os julgávamos. Tito Franklin, um prático de farmácia, primava nos papeis cômicos, assim como Maninho Andrade nos dramáticos.

A meu ver, a influência saudável de Artur Azevedo sobre os grupos de amadores do interior terá residido particularmente no mesmo ponto: o dramalhão antigo e cacete foi cedendo lugar às peças divertidas, que refletiam realmente nossos costumes, suscitavam a confraternização jovial da plateia e abriam caminhos para uma arte teatral tipicamente brasileira no seu espírito e nas suas formas.

Essa arte brasileira não veio, ou só agora se anuncia, porque a evolução foi cortada bruscamente pela irrupção do cinema.

Assim, o teatro de minha terra, com o seu globo azul no frontispício, dominado pelo voo de uma águia de massa, que era obra muito prima do santeiro Alfredo Duval, e olhando para a igreja matriz no outro lado do paredão, como a dizer-lhe:

“Nossos reinos são diferentes; aqui mando eu”, teve de ser adaptado para o cinema de “seu” Eurico, e com o tempo se iam pela vertente das coisas caducas o grêmio dramático, o grupo de amadores, a notável orquestra mista que tocava as “overtures”.

Artur Azevedo foi derrotado, no Brasil afora, por Max Linder, Bertini, William Farnum, Pearl White e outros pesos-pluma. Eram, porém, trezentos, como no verso de Mário de Andrade, e um autor teatral sozinho não poderia manter o interesse de um grande público esparso por esses brejões nacionais, ávidos de distração e de sonho barato na interminável noite onde piscam luzinhas fracas, de longe em longe.

Mas a lembrança dele é grata aos que conheceram ainda os últimos dias de glória dos teatros oitocentistas no interior. E, ao cronista, então, que envaidecia de ingressar meninote num grêmio tão conspícuo de notáveis da terra natal, sob o seu nome popular e amado, o centenário de Artur Azevedo é – desculpem – quase que um pouco o seu próprio centenário. Coisas de 1915! Coisas do século XV…

[Boletim da ABI, julho de 1955. Pesquisa mcs, na biblioteca da ABI-Rio]

 

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