Um Dia D para não se esquecer de lembrar
Dolores Dutra Drummond com CDA em seu apartamento no Rio, em 14 de fevereiro de 1981.
Foto: Altamir Barros/ Acervo: O Cometa Itabirano
Por Ricardo Mota*
Cada Minuto – Está chegando um dia que não podemos esquecer. Ou melhor, não devemos esquecer. É o 31 de outubro, que alguém bastante inspirado resolveu batizar como Dia “D” – de Drummond (data do seu nascimento), que deu a maioridade à poesia no Brasil.
Aproveito a introdução desta breve crônica para tornar público o meu agradecimento a outro poeta: Sidney Wanderley, responsável por trazer o mineiro/brasileiríssimo/universal poeta (ele sendo da Viçosa de cá) ao meu convívio de afetos. Conhecer Drummond, eu até conhecia, mas foi através do amigo querido que pude então enxergá-lo em toda a sua grandeza.
Afinal, Carlos Drummond de Andrade, como tantos outros poetas, brasileiros ou não, são até conhecidos, mas não se pode dizer o mesmo de suas obras. Muito citados, assim como (me perdoem a insistência) Guimarães Rosa e seu magistral Grande Sertão: veredas – mas lê-los que é bom, pouco ou quase nada.
Coincidência ou não, os mencionados são mineiros. E Minas, Drummond carregou na essência, enquanto pulsou (1902-1987): “Alguns anos vivi em Itabira./ Principalmente nasci em Itabira./ Por isso sou triste e orgulhoso: de ferro./ Oitenta por cento de ferro nas almas./ E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação./…/Itabira é apenas uma foto na parede/ Mas como dói!” (Confidência do itabirano).
Funcionário público durante 35 anos, foi como cronista, principalmente no Jornal do Brasil, que Drummond deu-se a conhecer ao grande público. Mais ainda, apesar de em menor escala, quando alguns dos seus poemas foram musicados: E agora, José (Paulo Diniz), Canção amiga (Milton Nascimento), além de Quadrilha e Poema de sete faces (como definitivos intertextos na obra de Chico Buarque).
Mineiramente sonso (“mineirinho”, dir-se-ia), sabia que Amar se aprende amando, em silêncio para os do lado de fora. Mas não é que saiu do sério, pela mulher duplamente desejada, em 1940, na sede do Ministério da Educação (já contado aqui)?
Como pugilista opositor, ninguém menos do que o historiador Sérgio Buarque de Holanda, com quem rivalizava pelo coração de uma prenda. Esbofetearam-se, óculos quebrados ao chão, como se há de fazer por um grande amor – mantendo intocada a mulher amada.
O homem tímido, taciturno, quase sombrio, levou “vida dupla” no casamento, nos revelando, porém, o seu mais recôndito segredo: “O poeta… cultiva um amor noturno, pecaminoso: a Monja Lua./ É da raça dos que morrem cedo,/ Não tem tempo a perder com a alegria” (O destino de Edgar Mata). E, de novo surpreendente, o naco que guardava de bom humor, confessável, levou ao papel: “O pintor ao meu lado/ reclama:/ quando serei falsificado?” (Miniversos).
Não morreu cedo, é verdade, mas o que pretendia deixar apenas entre quatro paredes ganhou o mundo, “vasto mundo” – sem sua expressa ordem, está claro –, pelo menos o daqueles a quem seus versos fizeram e fazem companhia.
O amor Natural, livro publicado após a indesejada resgatá-lo da lacerante dor pela perda da filha única e amada, haveria de fazê-lo protestar: nenhum criador, poeta que seja, sobrevive impunemente à sua obra completa. Eu sou daqueles, minoria, imagino, que acho que estaria prenhe de razão.
Carecia de, na epígrafe, replicar-lhe os versos: “Da morte a mó que mói/ Não mói todo o legado/ Fica, moendo a mó/ O vento do passado” (Moinho). Afinal, assim avisara, só Vinícius de Moraes viveu como poeta – pelo menos de maneira tão escancarada, pública, nada mineiramente.
Este Poeta (assim, com maiúscula) habita a cabeceira da minha cama ao lado de Fernando Pessoa – poesia e prosa, Sidney Wanderley, Manuel Bandeira, Mário Quintana, Ferreira Gullar…
O meu dia “D” de Drummond é um dia qualquer, e acontece quando o corpo pede descanso para a alma. Encontro-me, então, de porta aberta para palavras poucas e não menos preciosas. Sabendo que tristeza e beleza vão além de se compor numa rima pobre. É hora de lavar os olhos para enxergar o mundo da forma que só eles, os poetas, são capazes de nos mostrar.
Quem sabe, Drummond, ali, me daria um segundo que fosse da sua (in)existência para sussurrar, firme e delicado:
– E agora, José, a festa vai começar.
*Artigo publicado originalmente no portal Cada Minuto, portal de notícias de Alagoas.