Carlos Drummond de Andrade, uma biografia difícil

Considerando-se homem de ferro, Drummond dá nova associação de ferro a um tipo superiormente humano. Ele é um poeta triunfalmente de ferro. (Gilberto Freyre, sociólogo)

Num lugar de Itabira, nas Gerais – O escritor que não responderia o inquérito de João do Rio – Na batalha modernista – “Havia uma pedra no meio do caminho” – O poeta e o prosador – Um prodígio de organização e método.

Correio da Manhã, 1/11/1952 – Não será fácil escrever a biografia de Carlos Drummond de Andrade. O homem é reservado, discreto. Não vê com simpatia a bisbilhotice dos repórteres. Ainda há pouco, declarou que não responderia mais a inquéritos literários. As respostas lhe soavam falso.

Se já fosse ele um poeta célebre em 1907, João do Rio perderia tempo em enviar-lhe um questionário. Desistimos assim da ideia de pedir minúcias biográficas a Carlos Drummond neste seu cinquentenário. “Minha vida não tem história” – teria respondido o poeta, e fechar-se-ia em copas; jamais lhe arrancaríamos qualquer outro esclarecimento.

ALGUMAS PEGADAS BIOGRÁFICAS

De uma coisa, porém, estamos bem certos: Carlos Drummond de Andrade nasceu na cidade de Itabira, no Estado de Minas Gerais, no dia 31 de outubro de 1902. Itabira possui, se não nos enganamos, uma usina de ferro e o poeta já tem estabelecido paralelo entre a rigidez do seu temperamento e o minério de Itabira.

Da infância podemos lhe assinalar algumas reminiscências em engenhosa transposição literária em alguns Contos do Aprendiz. Aquela comunhão perdida por causa de uma briga com um colega deve ter sido algum caso pessoal da meninice do autor.

A literatura despertou muito cedo em Carlos Drummond. Numa correspondência de Minas, publicada na revista Mundo Literário, de Agripino Grieco e Pereira da Silva, no ano remoto de 1922, já encontramos o nome de Drummond citado entre os “novos” que começavam a pôr as manguinhas de fora na imprensa de Belo Horizonte.

O futuro autor da Rosa do Povo não contaria então mais de vinte anos. Iniciava-se a década modernista. Dois anos após a Semana de Arte Moderna, tínhamos o tumulto de Graça Aranha na Academia.

Todo mundo que escrevia naquela época via-se na contingência de optar por um dos dois caminhos: o modernismo ou o passadismo. De Minas, Carlos Drummond, muito jovem começou a acompanhar a luta, e não é de estranhar que se sentisse logo atraído pela corrente revolucionária.

No setor modernista de Minas

Em 1925 já o encontramos em plena batalha, atuando no setor mineiro de Belo Horizonte, ao lado de João Alphonsus, Emílio Moura, Martins de Oliveira e muitos outros. A polêmica fervia. Os mineiros eram vistos com grande interesse por Mário de Andrade, que lhes escrevia cartas e lhes respondia em longos artigos alheios de cacoetes modernistas.

Na revista Terra Roxa e Outras Terras, de Antonio de Alcantara Machado e na qual se agrupavam Mário e Oswald de Andrade, em oposição à corrente Verde-Amarela da “Novíssima”, começaram a aparecer colaborações de Carlos Drummond.

Em dezembro de 1925, a “Noite” resolve instituir um Mês Modernista. Cada figura da nova escola ocuparia, em determinado dia, uma coluna do jornal, com absoluta liberdade de escrever o que bem entendesse. Seria um meio de mostrar até onde iam os absurdos e as maluquices dos inovadores.

Mário de Andrade, Sérgio Milliet, Manoel Bandeira, Pedro Dantas e Carlos Drummond de Andrade, foram as “vedettes” do mês modernista, ocupando este último várias vezes as colunas da “Noite”.

Como acontecia com os outros vanguardeiros, Drummond aí publicou prosa e verso de circunstância, procurando forçar a nota, justamente para escandalizar. Célebre se tornou então a sua Bucólica no Caminho do Pontal por causa de uma ave que aí aparecia no gesto de aliviar-se organicamente. Algumas revistas glosaram o excessivo pitoresco da imagem.

Seria uma rima, mas não uma solução

Embora só publicasse o primeiro livro de versos Alguma Poesia, em 1930, quando já começava a declinar o movimento, Carlos Drummond se tornou, durante muito tempo – como ainda continua a ser até hoje para certos cidadãos – a expressão mais típica dos desmandos da poesia moderna. Isto, por causa do efeito chocante de alguns dos seus versos, como o famoso epigrama:

“Se eu me chamasse Raimundo

Seria uma rima

Mas não seria uma solução”.

Ou aquele irritante:

“Havia uma pedra no

meio do caminho”.

Muita gente ainda esperneia de horror ante a poesia de Carlos Drummond. O certo é que com todas as reações hostis que provocou, continuou ele passando muito bem, aperfeiçoando cada vez mais o seu instrumento de expressão e realizando novas e surpreendentes explorações no terreno misterioso e flutuante da poesia.

Em 1934, apareceu Brejo das Almas, em 1940 Sentimento do Mundo. Aqui já Carlos Drummond atingia uma grande altura, fazendo um grupo de admiradores entusiásticos e marcando uma corrente de influência na poesia brasileira.

É difícil encontrar de 1940 para cá poeta novo que não haja pago algum tributo a Carlos Drummond e Frederico Schmidt. Em 1945, o aparecimento de Rosa do Povo alvoraça a crítica.

O pensamento poético de Carlos Drummond de Andrade revestia-se de uma nuança política, que iria levá-lo, talvez para o setor de Paul Eluard e Aragon. Discussões apaixonantes se travaram em torno desse livro.

Mas dentro de algum tempo verifica-se a mudança de rumo: Carlos Drummond jamais se tornaria um poeta “engagé”. É preciso não esquecer, porém, o prosador.

Carlos Drummond sempre mostrou uma grande destreza no manejo da prosa, a ponto de um dos seus amigos e confrades no início da carreira de ambos, tê-lo considerado antes prosador do que poeta.

Na crônica, ou melhor, num certo gênero de crônica, que reúne a penetração crítica à sensibilidade, tornando por vezes um colorido poemático, o autor de Confissões de Minas se mostra exímio.

As colunas deste suplemento constituíram, durante muitos anos, o campo em que Carlos Drummond realizou algumas de suas evoluções mais felizes no gênero. E se quiserem o prosador em toda plenitude, leiam Passeios na Ilha, recentemente publicado.

O homem e o funcionário exemplar

Restaria falar no homem. Mas isto são coisas que encabulam terrivelmente Carlos Drummond… O homem é duro de vergar, como o ferro de Itabira. Calado, inimigo das formas, escondendo nas maneiras discretas, uma sensibilidade de que a poesia reveste toda em humor lírico.

Não seria possível também esquecer o funcionário público exemplar. Só as magnificas qualidades de organização e método de Olavo Bilac – segundo nos afirma Medeiros e Albuquerque em “Quando eu era vivo” – poderiam ser comparadas ao rigor burocrático do ex-chefe de gabinete do ministro Capanema e o atual chefe do arquivo e biblioteca do Serviço de Patrimônio Histórico e Artistico. Que o diga o sr. Rodrigo de Melo Franco de Andrade…

[Correio da Manhã (Rio), 1/11/1952. Hemeroteca da BN-Rio]

 

 

 

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