Zema enfim reconhece a transposição de água do rio Tanque como utilidade pública: 400 l/s para a Vale e 200 l/s para Itabira 

Para o licenciamento ambiental, é imprescindível incluir nas condicionantes a recomposição da mata cilitar da nascente na Serra dos Alves à foz em Ferros

Foto: Reprodução/
Aecom Engenharia

A declaração de utilidade pública dessa demanda histórica não é pelo direito de a população de Itabira ter acesso à água, mas por interesse nacional, ou seja, da mineração

Carlos Cruz

O Serviço Autônomo de Água e Esgoto (Saae) de Itabira informa que o Diário Eletrônico do Estado de Minas Gerais publicou, nesta quarta-feira (16), a Declaração de Utilidade Pública (DUP) para a transposição de 600 litros por segundo (l/s) de água do rio Tanque, sendo pouco mais de 200 l/s para abastecer a cidade e “atrair novas indústrias” – e o restante ficando à disposição da mineradora Vale.

Em “contrapartida”, a Vale arcará com o investimento necessário para captar essa água, trazer até Itabira e deixá-la adequada ao consumo humano, com a construção de uma nova Estação de Tratamento de Água (ETA), no Alto da Pousada do Pinheiro, bairro Campestre.

A Vale vai arcar também com o custo energético para trazer essa água até Itabira, isso enquanto estiver fazendo uso desse insumo fundamental para o beneficiamento de minério. Mas pode abandonar esse compromisso a qualquer momento, caso não precise mais desse recurso hídrico.

Antes, pela proposta de parceria público-privada, apresentada pelo governo passado e aprovada pela Câmara em março de 2019, a conta da transposição e o custo energético teriam de ser arcados pelo consumidor, com reajuste da tarifa da água cobrada pelo Saae entre 25% e 30%.

Agora, por força do que está no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado em agosto de 2020, um aceite e reconhecimento de dívida histórica com Itabira, entre as muitas que ainda estão para ser cobradas e saldadas, a mineradora é que arca com esses investimentos, mas não sem levar vantagem, como na célebre Lei de Gerson, ficando com a maior parte da água dessa transposição.

A assinatura do TAC foi a condição negociada pela Vale com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), via Curadoria do Meio Ambiente, para que não fosse instaurada uma ação civil pública, para cobrar, entre outras obrigações,  o integral cumprimento das condicionantes da água, impostas pela Licença de Operação Corretiva (LOC) do distrito ferrífero local, aprovada em 18 de maio de 2000 pelo órgão ambiental estadual.

É também para que seja cumprido o que dispõe a Política Nacional de Recursos Hídricos, que, pela Lei Federal nº 9.433/1997, determina o consumo humano e a dessedentação de animais como uso prioritário da água para, para só depois abastecer a indústria e a agricultura.

Portanto, o investimento da Vale na captação de água não é uma benesse ou favorecimento da mineradora para com Itabira.

Ocorre em cumprimento da legislação federal, como é também uma medida compensatória, e até indenizatória, pelo quase monopólio das outorgas existentes na cidade por parte da mineradora, enquanto a população de Itabira fica, historicamente, com as poucas fontes que restaram fora da serra do Esmeril, Cauê e Conceição.

Além disso, a Vale atrasou, deliberadamente, essa transposição hoje necessária e imprescindível em mais de 20 anos. Dizia ser desnecessária pois ficariam disponíveis mais de 1.100 (l/s) de água subterrânea para suprir a demanda na cidade, com o fim do rebaixamento dos aquíferos.

Foi o que ela propagou repetidas vezes em seu house-organ Vale Notícias, quando dizia que todo esse recurso do aquífero ficaria à disposição da cidade a partir de 2016, com a exaustão das Minas do Meio (Chacrinha, em especial).

Entretanto, com a disposição de rejeitos e material estéril nessas cavas exauridas, a partir de 2019, esse “legado” virou outra perda incomparável, com a cidade ficando, mais uma vez, sem essa “água de classe especial que serviria para abastecer a população com sobras suficientes para atrair novas indústrias, diversificando a economia local”.

Portanto, a transposição de água do rio Tanque é também imprescindível para Itabira atrair novas indústrias, como meio de se tornar independente da monoatividade extrativista exportadora de um bem mineral sem valor agregado de exploração finita – e que tem exaustão inexorável prevista para um horizonte temporal curto, para pouco depois de 2041.

Nascente do rio Tanque na serra das Bandeirinhas, região limítrofe com o Parque Estadual da Serra do Cipó, distrito de Senhora do Carmo, em Itabira (Foto: Marcelo Pinheiro)

Interesse nacional

Feitas essas considerações iniciais neste necessário “nariz de cera”, registre-se que nada disso foi levado em conta pelo governador Romeu Zema Neto (Novo) ao considerar a transposição como sendo de utilidade pública.

Conforme está publicado Diário Oficial Eletrônico do Estado desta quarta-feira, a DUP para captar e trazer água do rio Tanque até Itabira não é para a Vale deixar de descumprir a legislação federal, no caso o Código da Água, como também as condicionantes ambientais da LOC, impostas pelo próprio Estado e que ela não cumpriu integralmente.

O decreto não foi assinado pelo governador, portanto, assegurando para que não falte água para o consumo humano em Itabira. A razão para essa deliberação é a economia, estúpido, afirmo mais uma vez recorrendo à histórica frase do marqueteiro de Bill Clinton.

É, segundo Romeu Zema Neto, por interesse nacional, pela continuidade da mineração no complexo de Itabira, gerando empregos e royalties ao Estado e município, com divisas também para a União.

Impostos não serão gerados pela mineração da Vale, pois a empresa não paga ICMS sobre o minério exportado (todo o pellet-feed produzido em Itabira), assim como não paga IPTU por considerar que as minas e suas instalações estão na zona rural e não no entorno da cidade.

É esse “interesse nacional”, ou seja, da mineração, que norteou o decreto de utilidade pública, conforme está no parágrafo único e decisivo para esse reconhecimento pelo Estado de Minas Gerais:

“A alta relevância e o interesse nacional do empreendimento foram indicados pelo proponente (a Vale) e justificados pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, nos termos do parágrafo 3º do artigo 14 da Lei federal nº 11.428, de 2006”.

É essa lei federal que dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica, que terá vegetação suprimida para a construção do sistema de captação de água do rio Tanque.

Com o reconhecimento como utilidade pública, pelo artigo 14 o órgão ambiental competente pode autorizar essa supressão de árvores nativas, mesmo sendo em área de preservação permanente.

A DUP é, portanto, passo fundamental para que saia o licenciamento ambiental para a transposição de água do rio Tanque, como meio de assegurar o abastecimento público em Itabira e, sobretudo, a continuidade das atividades minerárias da Vale no município, que é também reconhecida como “utilidade pública”, pela Lei nº 12.651/2012.

Pois antes de conceder a licença ambiental, que seja verificada se a captação de 600 l/s não vai diminuir a vazão do rio, comprometendo-se a disponibilidade para o consumo humano e dessedentação de animais a jusante, inclusive no município de Santa Maria de Itabira.

É preciso também estabelecer medidas mitigadoras e compensatórias não só pelo desmatamento, mas também pela captação desse recurso hídrico para fins econômicos-industriais.

Dentre as condicionantes devem constar, por exemplo, a proteção com cercamento de todas as nascentes que formam a bacia do rio Tanque, assim como a recomposição da mata ciliar, da nascente na região da Serra dos Alves até a foz no rio Santo Antônio, em Ferros.

É o mínimo que deve ser pago pela mineradora Vale por ficar com os 400 l/s dessa captação de água do rio Tanque, como meio de garantir o uso futuro desse recurso hídrico para as gerações que virão.

Água do Tanque passando pela fazenda Florença, em Santa Maria de Itabira: o rio que já foi caudaloso, hoje definha antes mesmo desta seca severa (Foto: Amanda Drumond)

Saiba mais

A Declaração de Utilidade Pública (DUP) foi emitida em nome da Vale, mas espera-se que a outorga para captação desse recurso hídrico seja emitida em nome do Saae – e não da mineradora, que é responsável pelo licenciamento, por bancar o investimento e execução das obras de captação, adução e da nova ETA a ser instalada no Alto da Pousada do Pinheiro.

Segundo o Saae, a emissão da DUP era aguardada desde o dia 30 de agosto, quando o prefeito Marco Antônio Lage (PSB) e comitiva reuniram com a secretária de Estado de Meio Ambiente, Marília Carvalho de Melo, e com o subsecretário de Saneamento, Anderson Diniz.

Foi quando o prefeito pediu urgência na declaração dessa utilidade pública, não por interesse nacional, leia-se da mineração, mas do município, em nome da população itabirana.

Com a DUP, a expectativa agora é que o processo de licenciamento ambiental da transposição ocorra mais rápido, por ser “de interesse nacional”, registre-se mais uma vez.

É mais uma inversão de prioridades, como vem ocorrendo há mais de 82 anos, quando a Vale monopolizou as águas das encostas do Cauê, Serra do Esmeril e Conceição – e também dos aquíferos.

As obras para a transposição só devem ser iniciadas após aprovada a Licença Ambiental pelo Conselho Estadual do Política Ambiental (opam), com os pareceres de órgãos correlatos. Que venha com muitas condicionantes mitigadoras e compensatórias para a garantia de uso desse recurso hídrico pelas gerações atuais e futuras – e também para os moradores ribeirinhos.

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