Vale, a Gulosa, monopoliza as águas da Serra do Esmeril e dos aquíferos Cauê e Piracicaba, deixando quase nada para Itabira
Foto: Vila de Utopia
A mineração em larga escala desmantela a economia diversificada do município pré-1942. E ao monopolizar os recursos hídricos impede a diversificação econômica de Itabira por falta do imprescindível insumo para atrair novas indústrias
Carlos Cruz
O professor Júlio “Mengueles” Batista Mattos, pré-candidato a vereador pelo partido Rede Sustentabilidade, postou um vídeo com depoimento do meu pai, José Martins Cruz, o Zé Cruz, gravado pouco antes de sua morte aos 93 anos, em 7 de agosto de 2021, que muito me emocionou e orgulhou pela lucidez ao apontar o motivo de Itabira não ter, historicamente, diversificado a sua economia, permanecendo extremamente dependente da atividade mono extrativista-exportadora de minério de ferro.
Segundo ele recorda, quando foi inaugurado o ramal ferroviário para “embarcar minério no Campestre”, na estação João Paulo, o então presidente da Companhia Vale do Rio Doce Israel Pinheiro anunciou que “assim que terminasse a guerra (1939 -1945), seria instalada uma grande siderúrgica em Itabira, mas depois veio um engenheiro e disse que não dava, pois não tinha água.”
Foi assim, por “falta de água”, já monopolizada desde 1942 pela Vale que, segundo Zé Cruz, Itabira perdeu primeiro a Acesita e depois a Usiminas para o Vale do Aço. “Usiminas é hoje quatro, cinco vezes maior que Itabira. É assim que tudo de Itabira vai para fora”, vaticinou.
Assista o depoimento de Zé Cruz, em depoimento a Júlio “Mengueles”, no vídeo abaixo:
Pois esse episódio narrado por Zé Cruz confirma mais uma entre as tantas dívidas históricas que a mineradora Vale, ex-Companhia Vale do Rio Doce, tem com Itabira por atrasar o seu desenvolvimento sustentável e diversificado, o que persiste ainda nos dias atuais.
CPI das Águas
A Câmara Municipal de Itabira, por seus vereadores oposicionistas, no exercício de um direito da minoria (que depois virou maioria), instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar a má qualidade e a constante falta de água na cidade.
É o que, historicamente acontece em Itabira, principalmente nas regiões abastecidas pelas Estações de Tratamento de Água (ETAs Pureza e Gatos) que abastecem mais de 80% da população itabirana, Já nos bairros Pará, Centro, Penha e outros próximos quase nunca falta o precioso líquido, pois são abastecidos pelas Três Fontes, com a água bombeada de poços profundos, do aquífero Piracicaba.
O relatório da CPI ainda não foi apresentado e submetido ao plenário, daí que não houve divulgação de seu conteúdo. Mas se não tratar dessa questão do quase monopólio das águas superficiais e subterrâneas pela mineradora Vale, será um documento inócuo por não aprofundar e apontar a verdadeira causa da falta de água na cidade, situação que se arrasta desde o início da mineração em larga escala em 1942.
Diversificação desmantelada
Zé Cruz disse tudo e aqui repito fazendo eco às suas palavras: a Vale é a grande responsável pela não diversificação econômica de Itabira. É que sem água em volume suficiente para o consumo humano, dessedentação de animais e com sobra para novos empreendimentos, não há como atrair novas indústrias.
A Vale desmantelou a nascente indústria itabirana ao inviabilizar a continuidade das fábricas de tecidos Pedreira e Gabiroba, que ficaram sem água para gerar energia mecânica e tocar os teares, como também inibiu o crescimento das históricas forjas e fábricas de implementos agrícolas, como a do Jirau que, segundo se conta, fabricou armas de fogo para o genocídio do Paraguai (1864-70).
Em seu livro Estado e capital estrangeiro na industrialização mineira, o professor e ex-reitor da UFMG Clélio Campolina Diniz compara a diversificada economia de Itabira, na década de 1930, portanto pré-Vale, com a pujante economia de Juiz de Fora, na época chamada de a Manchester mineira, pois ambas se encontravam praticamente no mesmo nível de diversificação e pujança econômica.
O poeta Drummond, também faz referência à economia diversificada de Itabira antes do advento da mineração em larga escala:
– Itabira, onde estão as tuas trinta fábricas de ferro do tempo do barão de Eschwege, com seus cadinhos dotados de trompas e martelos hidráulicos, os seus fornos e as suas oficinas de armeiro, que antecederam e suplantaram em eficiência a real fábrica do Morro do Pilar?”, perguntou Carlos Drummond de Andrade na crônica Vila de Utopia, ainda sem resposta.
Pois até a presente data, a Vale continua sendo a grande responsável pela não diversificação econômica do município pelo fato de não haver água disponível para viabilizar novas indústrias (observe que o DI de Itabira é ocupado em mais de 80% por empresas que prestam serviços para a Vale, inclusive com uma delas poluindo com óleo o manancial da Pureza recentemente, um crime ambiental ainda impune,. Será um dia?).
Essa indisponibilidade de água em Itabira ocorre desde 1942 em decorrência desse quase monopólio das outorgas de águas superficiais que existiam (algumas ainda existem) nas encostas leste e oeste da Serra do Esmeril (Camarinha, Borrachudo, Três Fontes). A Gulosa, como Drummond se referia à Vale, apossou-se também da monumental reserva hídrica existente no subsolo itabirano, que são os aquíferos Cauê e Piracicaba.
Rio Tanque
Mais grave, ou tanto quanto grave: a Vale atrasou deliberadamente, em mais de 20 anos podendo chegar a 30, a transposição de água do rio Tanque para abastecer a cidade e atrair novas indústrias, o que deveria ter ocorrido pelo menos desde 2000, quando foram aprovadas as condicionantes da Licença de Operação Corretiva (LOC) do Distrito Ferrífero de Itabira, que está vencida desde 2016.
Isso porque a mineradora sustentava, inclusive em reportagens publicadas em seu house-organ Vale Notícias, que não seria necessário captar água do rio Tanque, pois haveria grande disponibilidade hídrica dos aquíferos, de classe especial, após a exaustão das Minas do Meio, quando seriam disponbilizados mais de 1,2 mil litros de água de classe especial por segundo, volume três vezes maior que a demanda atual de abastecimento na cidade.
Disponibilidade que precisa ser reforçada com recurso hídrico que o MPMG obrigou a Vale fornecer ao Saae para não faltar água na cidade, e que também não vem sendo cumprido à risca, tanto que é constante a falta do imprescindível líquido jorrando nas torneiras das residências itabiranas.
A Vale, reiteradas vezes sustentou por seus hidrogeólogos que os aquíferos, cujo acesso às suas águas teria sido possível com o aprofundamento das minas, seriam os grandes legados da mineração para Itabira (tudo isso está documentado e é de conhecimento do MPMG).
Hoje, a mineração entupiu as cavas exauridas com rejeito e estéril. E boquifechou-se sobre o legado dos aquíferos, assim como na cidade nenhuma autoridade cobra esse “legado” para compensar parte das perdas incomparáveis do passado e do presente.
A Prefeitura tem por obrigação entrar com uma ação de reparação pelo atraso que a Vale tem causado a Itabira por monopolizar a água, o que, repito exaustivamente, impediu a atração de indústrias demandantes do insumo para se instalarem no município.
TAC do rio Tanque
Por força de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado com o MPMG, a Vale terá, enfim, de cumprir integralmente as condicionantes da LOC de 2000 relativas ao fornecimento de água na cidade, em volume suficiente e com qualidade para abastecer a população e atrair novas indústrias.
Pelo que foi acordado inicialmente pelo TAC do rio Tanque, a transposição era para ser concluída em 2024. Agora já se fala em 2026, mas pode estar certo que esse prazo vai ser esticado mais que goma de mascar.
Quem sabe até 2030 Itabira terá água disponível para abastecer as residências de todos os bairros e atrair novas indústrias não dependentes da mineração, com a oferta de água em abundância?
Apesar de todo ceticismo atávico, ainda ouso ser otimista: havemos de ter água em abundância até a virada de década.
Mas para isso, é preciso conhecer o passado para revolucionar o futuro, conforme defende Júlio Mengueles, como meio para reverter a derrota incomparável. Sem água não há diversificação e independência econômica da mineração, pois a ‘gulosa’ ficou com tudo.
Excelente texto . Agora é hora da Vale pagar a conta
Ótimo texto! O grande problema, em Itabira , é que somente algumas pessoas têm coragem de se manifestar sobre essa e outras graves questões ambientais. Falta mobilização social e vontade política dos poderes públicos locais. Quando saíram em grandes veículos de impressa nacionais matérias sobre a situação ambiental em Itabira? Vi no Fantástico uma reportagem sobre a poluição atmosférica na cidade de Volta Redonda provocada pela CSN. Quando houve aquele tremor de terra e aquelas nuvens de poeira sobre Itabira, mandei fotos e pedi aos repórteres do MGTV que fizessem uma reportagem sobre essa situação, nada foi feito. No mesmo dia, ocorreram nuvens de poeira sobre Congonhas e eles a fizeram. Fica a interrogação- Até quando????? Onde estão- Ministério Público, Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Câmara Municipal, vereadores e ….?????
O comentário foi excelente mas jogar a culpa totalmente em cima da Vale sempre foi a desculpa de todos os prefeitos que tiveram em Itabira. Nunca ouve um investimento para resolver o problema sempre a mesma desculpa. Itabira tem de parar de ficar terceirizando os problemas que nossos políticos nunca tiveram interesse de resolver. Política em Itabira sempre foi por interesse próprio nada para a cidade.
Nois tá lascado isso é um monopólio sem fim,se não acabar com os interesses próprio nada vai pra frente é igual time de futebol todos na mesma direção só um que leva o nome de melhor de todos.temos que coloca a população pra se entender que também tem que se manifestar enquanto isso pra CVRD tá tudo normal.
Carlos Cruz, belo trabalho.
Sou José Maria Gomes, raiz do Rio de Peixe.
Até os anos 70 Rio de Peixe era uma comunidade muito ativa. Tínhamos escola, igreja, posto médico, festas religiosas, vendas e o Time do Vera Cruz, que chegou a ser campeão amador de Itabira.
Tudo mudou com as construções das Barragens Rio de Peixe e Itabiruçu.
De um dia para o outro a nossa comunidade praticamente acabou.
O seu saudoso pai com certeza lembraria do nosso Rio de Peixe pungente.
Fomos obrigados a entregar nossas terras a esta “Gulosa”.
Fomos desapropriados de forma vergonhosa pela CVRD.
Hoje o Rio de Peixe é quase um Retrato na Parede.
Acabou as micros comunidades como Taquinho, Baratas, Sumidouro, Itabiruçu, Zé Cabrito, Minério, e Baixada do Morro dos Tóquio.
Como sou um quase historiador do nosso Rio de Peixe, calculo que estas duas barragens tenha acabado com aproximadamente 200 nascentes de água, além dos pomares, da agricultura familiar além das nossas tradições.
Rio de Peixe é sem dúvida a comunidade que pagou o maior preço pela mineração em Itabira. Pena que a sociedade de Itabira, pelo menos, não reconhece isto.
Tudo muito, muito triste.
José Maria Gomes.
Um texto maravilhoso.