Vale do Javari teve multa recorde por pesca ilegal de pirarucu no Amazonas
Região é onde indigenista brasileiro e jornalista inglês desapareceram; segundo denúncias, indigenista vinha recebendo ameaças de pescadores ilegais da espécie
Por Anna Beatriz Anjos, Bruno Fonseca
Agência Pública – Dez milhões de reais. Esse foi o valor de apenas uma multa aplicada em 2019 pelo Ibama sobre o transporte ilegal de carne do peixe pirarucu na região do Vale do Javari, no oeste do Amazonas. De acordo com levantamento inédito da Agência Pública, esse foi o maior valor de multa aplicada pelo órgão em todo o estado do Amazonas num período de 30 anos envolvendo a pesca ou comércio ilegal do peixe.
O Vale do Javari — próximo à tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia — é onde desapareceram, no dia 5 de junho, o jornalista inglês Dom Phillips, colaborador do jornal The Guardian, e o indigenista brasileiro e servidor licenciado da Funai Bruno Araújo Pereira.
Segundo o jornal O Globo, Pereira vinha sofrendo tentativas de intimidação por pescadores ilegais de pirarucu e tracajás (espécie de cágado) da região, entre elas, um bilhete enviado à União das Organizações Indígenas do Vale do Javari (Univaja), para a qual o indigenista trabalha, com ameaças a ele e Beto Marubo, coordenador da entidade.
Ainda de acordo com a apuração, Pereira havia participado recentemente, junto a uma equipe de vigilância indígena da Univaja, de uma incursão no Vale do Javari que apreendeu materiais de pesca e peixe.
Os dados do Ibama levantados pela Pública mostram que a captura e o comércio ilegal do peixe são recorrentes na área: a reportagem encontrou 47 autuações por pesca, transporte ou venda de pirarucu em cinco municípios da região do Vale do Javari desde 1998, a maioria delas em Tabatinga. Durante o governo de Jair Bolsonaro, houve apenas quatro autos de infração envolvendo a pesca de pirarucu, dois em 2019 e dois em 2022.
Além disso, em todo o período, houve 230 infrações relacionadas a pesca ilegal de outras espécies, como o surubim e piracatinga — cuja captura e venda estão proibidas em todo território nacional até julho. Dentre elas, está a apreensão de uma tonelada de pescado sem comprovante de origem em Tabatinga em 2019.
Segundo O Globo, Bruno Pereira teria denunciado ao Ministério Público Federal e à Policial Federal uma organização criminosa ligada à pesca ilegal na área do Javari e que estaria envolvida no assassinato do colaborador da Funai Maxciel Pereira dos Santos em 2019. Ele foi morto com dois tiros na cabeça na frente de sua esposa em Tabatinga após participar, uma semana antes, da apreensão de mais de uma tonelada de carne de pescados e caça.
O pirarucu, um dos maiores peixes de água doce do mundo, é protegido por limitações de pesca desde a década de 1980, após a constatação de que a sua população estava em declínio. Atualmente, no Amazonas, só é permitido capturar a espécie dentro de sistemas de manejo, um modo de pesca controlada em reservas ambientais. Qualquer pesca fora dessas áreas ou venda da carne do pirarucu que não seja procedente de manejo autorizado são ilegais no estado.
Fiscalização apreendeu duas toneladas de pirarucu ilegal no Vale do Javari em 2019
Um barco que se dirigia à Colômbia foi o alvo da maior multa aplicada pelo Ibama sobre a pesca ilegal de pirarucu de que se tem registro. A fiscalização aconteceu em setembro de 2019, quando uma equipe do órgão, junto a policiais federais de Tabatinga, pararam uma embarcação que levava duas toneladas de pirarucu ilegal, isto é, que não provinha do manejo sustentável do peixe.
O barco foi abordado na área de São Paulo de Olivença, um dos municípios pelos quais se estende a TI Vale do Javari. Ele seguia pelo rio Solimões em direção à cidade de Letícia, vizinha à Tabatinga na fronteira com a Colômbia. A fiscalização do Ibama identificou Francisco Cavalcante de Souza como o responsável pelo pescado e o multou em R$ 10 milhões.
As equipes do Ibama e PF atuavam em conjunto através da Operação Mota, realizada em duas fases em 2019. Segundo a Pública apurou, durante a realização das operações, foram lavrados 22 autos de infração relacionados à pesca ilegal.
Além do caso de Francisco de Souza, há um outro auto de infração pelo transporte de 140 quilos de pirarucu sob responsabilidade de Fernandes Rodrigues Rabelo, que foi multado em R$ 4,5 mil. Os demais autos identificados não citam explicitamente a pesca ou comércio de pirarucu.
Fim de base do Ibama dificulta fiscalização na região
Embora se trate de uma área ameaçada por pesca e outras atividades ilegais, como garimpo e caça, não há estrutura fixa do Ibama na região desde 2018, quando foi encerrada a base do órgão em Tabatinga – desde então, as operações de fiscalização são realizadas com o apoio de outras instituições, como a Polícia Federal, que possui delegacia no município.
Segundo a reportagem apurou, a base era estratégica para a fiscalização da captura e comércio ilegal de pirarucu e outros peixes na região do alto Solimões. Um dos principais destinos da venda ilegal é a Colômbia, através da cidade fronteiriça de Letícia.
O diretor da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente e do PECMA (Ascema), Hugo Loss, que foi chefe da Divisão Técnico-Ambiental (Ditec) do Ibama no Amazonas entre 2018 e 2019, aponta que o fechamento de unidades do órgão em qualquer local da Amazônia prejudica a proteção ambiental porque, além de fornecerem apoio logístico às operações, elas servem como ponto de atendimento ao cidadão no geral.
“As bases do Ibama não se resumem à fiscalização, são pontos importantes de articulação com a sociedade, de fomento, difusão e promoção das políticas ambientais da União”, afirma. Hoje, o Amazonas conta apenas com a sede do Ibama em Manaus: além da base de Tabatinga, foram desativadas também a de Humaitá, no sul do estado, depois de um incêndio criminoso em 2017; e mais recentemente, em 2019, a de Parintins, na fronteira com o Pará.
Loss ressalta que as bases são ainda mais importantes em áreas fronteiriças, como Tabatinga, que exigem atuação mais intensa dos órgãos federais. Além disso, de acordo com ele, o fato de estar próxima à tríplice fronteira (Brasil, Colômbia e Peru) faz com que a região seja “muito mais complexa” pela presença de outras modalidades de crime, como o narcotráfico.
Segundo relatório de 2019 do Instituto Socioambiental (ISA), citado por reportagem da BBC Brasil, a Terra Indígena (TI) Vale do Javari está na área de uma das principais rotas de transporte de cocaína destinada a cidades e portos brasileiros. “Torna-se um local geopoliticamente estratégico tanto para o crime quanto para o desenvolvimento de ações de políticas públicas do Estado”, destaca.
Municípios da região do Javari ultrapassam R$ 14 milhões em multas por pesca ilegal
O município de São Paulo de Olivença, da região do Vale do Javari, onde foram apreendidas as duas toneladas da carne de pirarucu em 2019, é onde mais se registrou multas pela pesca ilegal do peixe no Amazonas. A reportagem também encontrou R$ 226 mil em multas em Tabatinga, R$ 190 mil em Jutaí, R$ 1,4 mil em Atalaia do Norte e R$ 500 em Benjamin Constant.
Segundo reportagem da BBC Brasil, um pirarucu jovem era vendido em 2019 por mais de R$ 1 mil.
Nesses municípios está localizada a TI Vale do Javari, a segunda mais extensa do Brasil (apenas atrás da TI Yanomami, em Roraima) e onde fica a maior concentração de povos indígenas isolados do mundo, de acordo com a Funai.
Considerando todas as multas envolvendo pesca ilegal de qualquer espécie, os cinco municípios juntos têm mais de R$ 14 milhões em multas. São Paulo de Olivença é novamente o recordista, seguido por Tabatinga e Atalaia do Norte.