Um oásis do mundo
Affonso Arinos de Mello Franco
O caminho que ligava a antiga Villa Rica à Cachoeira do Campo não foi sempre a mesma estrada que hoje se percorre em automóvel.
Esta é obra recente do Império, e uma das suas belas pontes de pedra, em arco, traz a data de 1855. A estrada velha saída a oeste da Villa Rica, pelo Alto das Cabeças, tomava direção de noroeste, e, passando por zonas pobres em ouro ganhava a chamada serra da Cachoeira, até chegar ao arraial.
A estrada de hoje sai pelo Saramenha, acompanha o caminho de ferro até Rodrigo Silva, galga o morro da Ventania, e, passado o alto da Figueira, começa a descer suavemente até a Cachoeira.
Do alto da Figueira tem-se uma vista que não poder ser mais bela. As coroas de morros se sucedem à esquerda e a direita, mansamente, até o horizonte, numa ondulação moderada que, como já notou um viajante, em tão tormentoso país chega a dar ideia de planície.
Nos píncaros que bordam o círculo visual reconhecemos os austeros gigantes que guiaram as bandeiras. Seus perfis se desenham cruamente no céu macio de Minas, e eles, destacando os vultos imensos, ao lado dos serros agachados, são como pastores eretos guardando um rebanho de ovelhas.
A nossa vista percorre, no extremo horizonte, a linha poderosa, que deixa o cônico Itabira, passa pela Serra do Curral, atrás da qual se aninha Belo Horizonte, continua pela dos Tubarões até alcançar o bizarro Itacolomi, a cujos pés se derrama Ouro Preto, como um presépio.
O vento brinca no dorso dos montes e nos nossos cabelos, e, quando a gente grita um nome querido, o eco, por galanteio, enche com ele a imensidão, multiplicando-o amorosamente de quebrada em quebrada.
Fundada na era da fome, em princípios do século XVIII, como outros arraiais do campo, a Cachoeira foi teatro e testemunha de períodos essenciais da evolução mineira. Dentro do arraial feriu-se o mais sangrento combate havido entre paulistas e os destetados emboabas, do famoso Manoel Nunes Vianna.
No adro da sua igreja, arengando ao povo, foi preso Felippe dos Santos, o tribuno da plebe, o grande agitador da primeira sedição de Villa-Rica.
Finalmente foi no palácio da Cachoeira que o astuto Barbacena, aranha paciente, teceu a trama em que iriam se prender os réus da Inconfidência como insetos estourados.
Este palácio serviu a princípio de simples quartel de dragões, tropa fina de cavalaria, criada em Minas em 1719.
Foi o velho Martinho de Mendonça, ocupante interino do governo das Minas de 1736 a 1737, na ausência do conde de Bobadella, quem mandou construir no declive manso da colina o belo quartel de cavalaria.
Mais tarde, em 1778, d. Antônio de Noronha levantou novo prédio para quartel, do outro lado do vale.
O velho casarão, mandado fazer por Martinho de Mendonça, foi adaptado para palácio de recreio dos governadores, o luxuoso d. Rodrigo de Menezes, futuro conde de Cavaleiros, se esmerou por transformá-lo numa residência principesca, com belos jardins e um lago artificial de grandes proporções, cujos os restos ainda existem.
Do palácio antigo nada mais resta, salvo, talvez, alguns alicerces. Os viajantes do princípio do século XIX já o encontraram em ruínas, e ameaçando desabamento iminente.
Aires do Casal nada refere a este respeito, mas Saint-Hilaire e Pohl não deixam dúvidas nos seus depoimentos visuais. Saint-Hilaire encontrou o edifício no mais completo abandono.
Dizia-se, mesmo, que a coroa ia pô-lo em leilão. E o dr. Pohl, que passou dias nele hospedado numa excursão de recreio feita em companhia do governador D. Manoel de Portugal e Castro, declara positivamente que a bela casa estava próxima ao desabamento.
O castelo era utilizado como pavilhão de caça. D. Manoel não era amigo de caçar e, por isto, diz-nos o velho Pohl, não se preocupava com a conserva do edifício.
Tinha o conjunto de edificações a forma clássica dos quarteis, quadrangular, com um grande pátio central.
O corpo principal, colocado ao centro da ala dianteira, se elevava em dois andares, e era destinado às acomodações dos oficiais do regimento. A soldadesca se espalhava pelo resto desta ala, e pelas três outras, que não ofereciam senão um andar térreo.
Nos quatro cantos havia grandes chaminés que correspondiam às cozinhas. A impressão geral era a amplidão, robustez e nobreza. Uma nobreza calma, acolhedora, sem engenhosidade decorativas, integradas na paisagem ao mesmo tempo doce e severa.
Em 1896 vieram para ali padres salesianos que fundaram o colégio que traz o nome de D. Bosco, seu patrono. Elevou-se, então, mais um andar em toda a volta, adaptaram-se as peças à sua nova finalidade e o grande escudo de cantaria foi transportado do frontão, onde se rasgou uma janela nova, para uma parede da ala esquerda.
Mas, apesar das modificações, o espirito geral da velha casa foi mantido e ainda se sente o respeito pela sua passada grandeza, quando se ouve o álacre vozerio dos meninos, brincando no pátio onde outrora tiniram as espadas e as esporas dos fieis dragões de El-Rey.
A igreja de Cachoeira do Campo, (que foi elevada a freguesia desde 1726), é uma surpresa prodigiosa para quem não a conhece de tradição. O trabalho em talha dourada do altar-mor e dos altares laterais não encontra similar em qualquer templo de Ouro Preto, exceto a Capela do Padre Faria.
Obra tipicamente portuguesa, anterior à formação do ambiente que determinou a eclosão da geração de mestres brasileiros. É o velho barroco lusitano em todo o esplendor do seu luxo refolhado. É a imaginação delirante, ingênua e mística, dos homens que falavam, através da talha, numa empolada linguagem de símbolos, para se fazerem bem entendidos de Deus.
Se se escolhesse no Brasil meia dúzia de igrejas mais belas internamente, a pequena matriz de Cachoeira do Campo estaria entre elas.
Visitamos o templo venerável em companhia de Augusto de Lima Junior que estava hospedado no colégio, onde passou vários anos na adolescência. Foi um guia minucioso e informado, familiar de cada imagem, de cada coluna, de cada elemento decorativo.
Aliás, a ideia de decoração, no templo barroco, se casa harmoniosamente com a de expressão. Raramente, ou mesmo nunca, aparece o trabalho pura e ociosamente decorativo.
Tudo ali tem um papel, significa qualquer coisa de litúrgico. Cada volta caprichosa da madeira é uma palavra, cada elemento uma frase naquela oferta divina, naquela espécie de prece eterna aberta diante dos nossos olhos.
Depois da visita demorada à igreja regressemos ao colégio. Já então era noite, e ao subirmos pela suave encosta, sentimos o ar leve embalsamado pelas flores do pomar.
A lua cheia de sexta-feira da paixão ardia na sua fria claridade no meio de um céu limpo de nuvens. Os meninos do colégio estavam recolhidos e o velho casarão parecia vazio dentro dos seus bosques noturnos.
Era impossível conceber maior impressão de doçura e de tranquilidade, do que aquela. Fiz a experiencia de pensar na guerra de Espanha, nas lutas do Oriente, na corrida armamentista do mundo, na vida podre das praias e casinos e verifiquei que nada disto tinha existência, diante daquela calma implacável.
E quando os padres salesianos, com a inexcedível hospitalidade que é tributo da sua ordem, abriram para nós, novamente, as portas acolhedoras daquele oásis do mundo eu me lembrei da noite tormentosa em que Dante, perdido nos caminhos, bateu à porta de um mosteiro.
E quando o irmão porteiro entreabriu-a, temeroso, e perguntou ao estranho viandante noturno o que queria, o poeta divino respondeu estas simples palavras, que é o desejo eterno e inútil de todos nós: quero paz.
[Diário de Pernambuco, 1/5/1938, da hemeroteca da BN-Rio, pesquisa Cristina Silveira]
Que bão, que a crônica do Affonso passou na editoria. É um texto de alta cultura, porque o Brasil que conhecemos nasceu em Minas Gerais, toda vendida pra canalha…
Dante Alighiere queria PAZ, Arinos evoca a voz do poeta para a PAZ. E nós, o que temos? Guerra. A guerra hibrida pelo dinheiro. Guerra de covardes…
Viva Lula da Silva, “o futuro que quer a vez de novo.”