Um instante de boa literatura…

O escritor Renato Tardivo, autor de No instante do céu (Foto: Reprodução)

Por Krishnamurti Góes dos Anjos

O Bule – A tal aventura a que damos o nome de vida sempre a nos surpreender. Sem dúvida. Recebi há alguns dias uma encomenda dos Correios. O porteiro com um olhar meio ressabiado passou-me o envelope contendo um livro. Mas o admirável é que o tal envelope estava completamente avariado.

Rasgado em vários pontos, como se tivesse sido violado, ou sofrido acidente grave ou, quem sabe ainda, ter sido saboreado pela mandíbula de algum cão raivoso.

Alguém, entretanto, dele se apiedou e toscamente fez curativos com fita adesiva aqui e ali. Uma coisa anormal… muito. Ante meu estranhamento, o porteiro finalmente lançou-me um olhar que traduzi por: “nem pense que eu tive algo a ver com isto…”

Muito bem. O surpreendente continua porque aberto o envelope, encontrei o livro intacto, com uma bela capa reproduzindo a fotografia de um mar encrespado ameaçado por nuvens pesadas. No instante do céu é o título. Renato Tardivo seu autor.

Sobrenome não de todo estranho na memória porque recordei de conversa recente que tive com Rogers Silva, editor da revista de literatura O Bule, na qual colaboro regularmente com crítica literária e textos de ficção. De fato, falamos vagamente sobre obra e autor…

E nossa surpresa continua e aumenta quando da leitura da obra porque constatamos como um enredo muito simples, pode estar pleno de denso conteúdo humano. Um menino, filho único de um casal de médicos, cresce solitário, sofre bullying na escola (por conta de uma ereção inopinada na adolescência é apelidado de ‘barraca’, imagine-se o sofrimento da criatura), e assiste a lenta decadência do casamento de seus pais.

Quase podemos ouvir a voz perdida e circular do narrador em busca de si mesmo e dos outros a quem ama, sobretudo quanto a sua relação de afeto e conflitos com Beatriz, ou no forte e confuso apelo sexual que lhe causa a personagem Carolina e finalmente, a ‘iluminação do novo’, que é o encontro com Iolanda.

Neste jogo vamos desvendando sendas ocultas da formação do protagonista. Outra personagem marcante é Tia Sebá – a vida sempre a surpreender – a doméstica que trabalhou em sua casa desde que ele era criança/adolescente e que ao longo da vida foi alguém sempre ali, apoio à mão. Uma simples empregada doméstica que muitas vezes fez as vezes de mãe e pai.

Entretanto, a narrativa se fragmenta em dois eixos principais, dois focos narrativos que se alternam entre os capítulos. De um lado o homem do agora relatando vivências do seu dia-a-dia.

No capítulo seguinte o foco recai na formação do mesmo personagem e através de hábil artifício, os capítulos convocam a cumplicidade do leitor porquanto o pronome “eu” é substituído pelo “você”.

Você está assim, você passou por isto, você passou por esta ou aquela experiência traumática ou de descoberta, e assim por diante, de tal forma, e com tal engenho, que vai se construindo o romance de formação do protagonista que também nos fala aqui e agora (os contornos entre passado e presente diluem-se).

Temos aí a conjugação da história do menino com a vida do homem caminhado juntas. Acresce a toda essa circunstância a ambientação do humano no redemoinho atual das redes sociais (são transcritas mensagens e imagens postadas no Instagram, Facebook e WhatsApp que, para além de contribuírem na composição do enredo, atestam o que afinal são as tais Redes Sociais. Lugares publicamente estranhos, “onde todos são amigos mas quase nunca se sentem”.

O leitor ‘assiste’ a técnica cinematográfica de transmitir flashes da realidade como se apanhados por uma câmara de cinema. Observamos que, assim como no cinema, não há um registro sem controle, pelo contrário, existe alguém por trás dela – o autor –, que seleciona e combina pela montagem, as imagens a mostrar.

E sob essa ‘lente’, podemos ter um ponto de vista onisciente, centrado no protagonista. (lembramos que Tardivo é Autor, entre outros, de Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em ‘Lavoura arcaica’ – portanto sabe muito bem o que está fazendo).

Dessa técnica decorrem ainda as montagens – inclusive com visadas na vertente do empenho do protagonista em ser escritor de ficção –, os cortes bruscos, a simultaneidade de planos espaço-temporais, e podemos conferir em síntese, a busca de uma subjetividade de base filosófica, como forma de minar o mandamento épico da objetividade, porque sabemos bem da impossibilidade de narrar, num mundo hoje reificado pelo domínio da mercadoria; da estandartização provocada pela produção em série e pelos meios de comunicação de massa – redes sociais inclusive – , que tende a tudo homogeneizar na mediocridade.

Nosso tempo é dividido e caótico, nem religião, nem o Estado e menos ainda a ciência conseguiram apaziguar a nossa insegurança e a nossa desconfiança. E os acontecimentos imersos em reflexões existenciais abalam a cronologia.

Funde-se passado, presente e um futuro duvidoso não pode ser antevisto. O plano da consciência se estremece, e até o onírico invade a realidade como acontece no capítulo em que o protagonista sonha, ou imagina ter sonhado com a aparição de uma entidade misteriosa p. 95.

Toda essa estratégia narrativa acaba por expor, de forma muito convincente, a relatividade que há na nossa percepção de espaço e tempo; desmascara-se o mundo epidérmico do senso comum, denunciado como simples aparência; a distensão temporal na alternância dos capítulos é revirada pelo avesso, pela fusão do presente com o passado, criando uma simultaneidade que altera radicalmente a estrutura da narrativa.

Trecho:

“Você descobre que a primeira parte da travessia passa mais depressa. Toda viagem ocorre em perspectivismo infinito; então a segunda parte não existe. Aliás, nem a primeira. Quanto é metade do infinito? Infinito sobre dois? Meio infinito? Infinito multiplicado por 0,5?

Há diversas formas de registrar aquilo que não existe. Aí está a (possibilidade de) salvação. Mas a palavra nem sempre dá conta. Há diversas formas de apagar aquilo que existe. Aqui, no espelho, as palavras são números, e números também não dão conta. Como mensurar em definitivo o intervalo entre um ponto e outro? Entre uma frase e outra? Uma palavra e outra? Uma letra e outra? Os números embaralham você.

A física que aprendemos na escola é uma mentira. Mas e a física que outros aprendem na faculdade é uma verdade? Uma verdade pode até ser; a verdade, jamais.

Você começa então a brincar com os traços que lhe dão contorno, calculando às cegas a distância entre uma orelha e outra, uma ruga e outra, mas é a brincadeira que toma corpo e fica ainda mais interessante se você recorrer à geometria espacial.

Quanto mede o intervalo entre os seus olhos e os olhos do seu avô? Entre o afeto e a tia Sebá? Muitas são as possibilidades de formular e de reformular essas equações – frases – pensamentos que, no perspectivismo do espelho, te prendem no infinito.” p. 79/80.

Registro de ordem pessoal: devo acrescentar finalmente, que não é mais da alçada da crítica literária (aliás, nunca deveria ter sido), a emissão de juízo de valor sobre obras e autores. Entretanto não posso me furtar a afirmar que, surpreendentemente, aquele livro que me foi entregue em um envelope todo rasgado na portaria do prédio se constituiu afinal em uma das mais aprazíveis leituras que realizei nesse fatídico ano de 2020.

“No instante do céu” é livro muito bem realizado, tanto no que tange a técnica da construção ficcional adotada, quanto na capacidade de criar certeira empatia com os leitores sobre tantas questões que vivenciamos hoje.

Sobretudo quanto ao tema do amor que vai se elevando, veja-se só, a visadas tais como a de que “amar é ser testemunha de uma solidão”. É uma verdade; assim como é também passo importante para entendermos melhor como duas almas em suas carências existenciais podem construir sinceramente uma espécie de felicidade.

 

Título: No instante do céu

Autor: Renato Tardivo

1ª edição

Editora Reformatório: São Paulo

ISBN: 978-65-88091-08-1

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