Um buquê de alcachofras
Esqueleto de animais, Arnaldo Pedroso d’Horta (1914-1973), do Brasil (São Paulo)
Maria Julieta
Hoje acordei pensando em Arnaldo Pedroso d’Horta, que conheci pouco – e muito. Em 66 ele veio fazer umas reportagens políticas aqui na Argentina. Eu nunca o tinha visto antes, mas admirava o jornalista intrépido e as plantas e animais estranhos que desenhava; tinha até, pendurada na parede do escritório, uma flor em branco e preto, longa e torturada, que ele dedicara a um amigo comum, de quem eu a havia afetuosamente roubado.
Gosto de repetir, nas diferentes casas em que morando, detalhes das anteriores: agora, essa aquarela, rodeada de pequenos trabalhos de pintores brasileiros, reproduz, em meu quarto, aquele velho canto de escritório. Será talvez a forma doméstica que encontrei de dar continuidade aos altos e baixos da vida.
Neste momento, por exemplo, enquanto escrevo, posso, doze anos depois e graças à flor de Arnaldo que tenho diante dos olhos, evocar, como presença permanente, a figura comprida, desengonçada, os traços diferentes – mais esboço que perfil – do artista e escritor desaparecido.

Arnaldo telefonou-me ao chegar, trazendo recados do Brasil. Convidei-o para tomar um uísque lá em casa. Naquela época meu apartamento vivia povoado de meninos, que entravam e saiam o tempo todo; três eram fixos, e, outros eles – incógnito – o próprio Principezinho, louríssimo, delicado, cheio de sabedoria, que descera do seu planeta solitário só para iluminar o nosso quotidiano.
Arnaldo ficou encantado com ele (e vice-versa), e passou a visitar-nos quase todos os dias. Falava pouco, em voz rápida e baixa, e com jeito muito sério ia contando os casos mais engraçados do mundo. Dir-se-ia que praticava um humor requintado, apto para alguns adultos exclusivos; entretanto, todos os garotos o entendiam e não se desgrudavam dele: transformou-se depressa no centro das reuniões familiares.

Num sábado acompanhou-nos ao Jardim Zoológico, onde ficou horas, de mãos dadas com o Principezinho, observando os bichos.
Não sei qual deles desfrutou mais o passeio, mas garanto que os dois, quase em silêncio (as palavras eram tão desnecessárias), se comunicaram perfeitamente com os animais em clausura, que captavam e retribuíam a corrente de compreensão que emanava de ambos.
Arnaldo era também um autêntico cavalheiro, desses à antiga, que cultivam uma gentileza natural e despretensiosa. Apareceu uma tarde com uma sacola de papel comum pardo:
– Queria umas rosas, mas não encontrei. Aí vi numa quitanda estas alcachofras lindas e trouxe um buquê. Vocês sabiam que alcachofras não é legume, é flor?
Mandei cozinhar aquelas flores especiais e ele ficou para compartilhá-las conosco.

O Principezinho frequentava então (para fingir que era gente e não habitante da estratosfera) o primeiro ano de uma escola pública, onde a professora gorda era outra personagem de Saint-Exupéry.
Nas salas de aula havia gaiolas com pássaros, que os meninos cuidavam e alimentavam; nos feriados e fins de semana, os melhores alunos levavam os bichinhos para casa, como prêmio.
Já nos tocara alguns canários, mas, como no apartamento vivia também um gato, a presença das aves causava ao Principezinho um misto de prazer e apreensão: era preciso estar atento (não fossem os instintos felinos desatarem-se de repente) e nunca deixar a gaiola ao alcance de um pulo.
Daquela vez lhe coubera o cardeal-amarelo, o pássaro mais canoro e cobiçado da classe. Exultou orgulhoso de poder compartir com Armando os trinos e arabescos que merecera.
À hora do jantar, não sabia se comer um prato feito no quarto, vigilante, ou saborear na sala as flores – alimento inefável, digno da sua realeza –, junto ao amigo pintor. Como o gato parecia indiferente, já acostumado ao convívio com os seres alados, capitulou.

Antes da sobremesa foi cumprimentar o passarinho. Ouvimos gritos de horror e corremos ao quarto, pressentindo o drama: no chão, a gaiola quebrada e vazia. Arnaldo apontou para a janela aberta:
– Ele deve ter voado por aí.
Vã esperança, pois debaixo da cama, de onde, satisfeito e inocente, surgiu o gato, com uma peninha presa aos bigodes, apareceram os restos semidevorados do cardeal.
– Se ao menos ele não tivesse comido o coração… – soluça o Principezinho.
Arnaldo o toma nos braços, enquanto os outros garotos, indignados, saem em perseguição do assassino. O Principezinho implora:
– Não batam nele, não: é só um gato. E depois isto tinha que acontecer: hoje é dia dos mortos.
[Livro: Um buquê de alcachofras, Maria Julieta Drummond de Andrade. RJ: José Olympio, 1980 – Pesquisa: Cristina Silveira]