Tutus modernizados
Em crônica de 1953, Vinicius de Carvalho conta histórias de fantasmas belorizontinos: “o fato é que, no Bonfim, (…) já há mais fantasmas por metro quadrado que pulgas no Cine Paissandu”. É de arrepiar…
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Balanço das mais categorizadas assombrações belorizontinas – Quem é o inventor da aparição cantada por Carlos Drummond de Andrade – Visões que marcaram época
Vinícius de Carvalho
Satanás ultimamente está gostando muito de aparecer em Minas. Como, porém, até agora ele não se dignasse a vir à capital e como, com sua ausência, preferindo outras cidades, muitos belorizontinos, desconhecedores de sua história, podem ficar despeitados, resolvemos demonstrar que aqui também já se hospedaram muitos fantasmas capazes de encher de orgulho a qualquer centro colecionador.
Há cerca de três anos, circunspectos e graves britânicos, diretores da British Broadcasting Corporation, enviaram toda uma aparelhagem de televisão ao Palácio de Hampton Court, em Londres, a fim de transmitir um programa com o fantasma de Catarina Howard, decapitada por Henrique VIII, em 1542.
Não é, porém, privilégio da velha Albion possuir fantasmas, se bem que, com a anglomania da tradição, as próprias assombrações tiveram de se acostumar à ilha, e, por se recusarem a tomar novos rumos, acabaram por transformar a terra de John Bull, no maior conglomerado fantasmagórico do mundo. Dizíamos, todavia, que isso não é privilegio inglês, haja vista que o próprio Brasil tem seus fantasmas representativos, não obstante serem assombrações sem brasão e mesmo sem árvore genealógica.
Em Minas, como é lógico, Ouro Preto com seus numerosos desvãos coloniais, seus porões cheios de teias de aranha e seus vários meandros arcaicos, deve abrigar mais almas do outro mundo que qualquer outra cidade, pois todos sabem que o “habitat” do fantasma requer um certo número de particularidades cuja existência só é possível em locais onde houve muito sofrimento, correntes, corujas, ciprestes, botinas velhas, gargalhadas satânicas, lamentos em falsete, enfim objetos, costumes e gestos obsoletos, mais próprios de museus ou de catacumbas.
Impossível, portanto, – há de pensar o leitor – que Belo Horizonte, em plena juventude, já tenha fantasmas. Pois engana-se. De nada valeria o nosso orgulho, se também não pudéssemos ostentar alguns espécies espectrais principalmente em se sabendo que qualquer cruz de beira de estrada tem a sua alminha particular. Como, então, a capital de Minas tão espetacular e tão completa em tudo que apresenta ao mundo, fosse carecer de simples fantasmas perdendo assim para qualquer arraial em noite de lua cheia ou de vento choramingante? Absurdo…
Sim, absurdo… Por isso, Belo Horizonte deu um jeitinho e arranjou algumas assombrações de emergência, feitas, contudo, à moda da casa. Sim, à moda, porque se o meio faz o homem, faz também o fantasma, e é claro que, com pouco mais de cinquenta anos de idade, esta cidade não poderia, sem pena de ser taxada de anacrônica, mostrar almas de pretos mortos nos troncos das senzalas, nem de bandeirantes trucidadores de índios.
Portanto, para não pedir um bicho emprestado de Sabará, só lhe restou amoldar a seu gosto as velhíssimas aparições que andam pelo nosso “hinterland”. E foi assim que tivemos desde o “Trem Voador” de Carlos Prates, até o “Automóvel Fantasma” da Avenida Afonso Pena, espécie de mula sem cabeça modernizada, que acendesse holofotes em desabalada carreira.
Em confronto com as avejões matusaléns, desses que aparecem na Inglaterra e quejandos, os fantasmas belorizontinos nada mais são, por conseguinte, que brotinhos de fazer medo, marinheiros de primeira viagem no tenebroso mar de navios pilotados por todos os James Masons de outras vidas.
Mas, nem por serem papões de uma era coca-cólica, muitas dessas visões deixaram de usar os clássicos ensinamentos dos mais velhos, trocando o alvo lençol espectral por um tecido de matéria plástica. E se várias delas, bisonhas e calouras, se deixaram desmascarar após umas poucas funções apenas, inúmeras outras se mantiveram em forma de muita gente respeitável.
Para qualquer estatística que se queira fazer da capital, ainda que seja um mero gráfico de fantasmas, a primeira obrigação que se tem é falar com Abílio Barreto, já que sua cabeça é o arquivo de tudo o que por cá aconteceu.
No entanto, o primeiro fantasma aqui estreado, ao que nos informou ele, era muito pífio, uma assombraçãozinha mequetrefe que, por certo, envergonha suas irmãs de mais escola ou de mais linhagem. Citá-la-emos, todavia, atendendo ao fato de que, se no mundo humano, antiguidade é posto, no lobisumano também deve ser.
Disse-nos Abílio Barreto que, lá por volta de 1900, um homem vestido de saias apareceu assombrando a Avenida Paraná, e, ali, durante muitas noites fez correr os passantes.
Em seguida, apud Djalma Andrade, conseguimos mais uns avejões, estes já com mais tutano classista e quase diplomados na arte. Assim, é que, segundo o poeta, em certa casa desabitada da rua Itapecerica, altas horas da madrugada, surgia outrora, feérica iluminação, e casais, luxuosamente trajados, dançavam quadrilhas loucas.
Após referir-se a duas outras assombrações de menor folego, o escritor, baseado na História da Guarda Civil de Belo Horizonte, diz que, “em 1919, uma jovem da sociedade, lindíssima e rica, por motivos ignorados, suicidou-se”. Um ano depois, um guarda civil, que prestava serviços na Praça da Liberdade, teve a sua atenção voltada para uma senhora que, a desoras, aflita, procurava orientar-se na rua deserta.
Ao avistar o mantenedor da ordem, a estranha dama pediu-lhe que a seguisse até a sua casa, situada no Bonfim. O guarda não relutou e pôs-se a segui-la, guardando, ambos, no trajeto, absoluto silêncio. Ao aproximar-se do portão do cemitério, a misteriosa moça, voltando-se para o seu guia disse: “É aqui”.
E como uma sombra, penetrou pelas grades da necrópole. O guarda enlouqueceu e no seu delírio repetia as palavras do fantasma:
– É aqui.
Esse fantasma aí de cima é o precursor de toda uma avalanche de assombrações que, mais tarde, invadiram o bairro do Bonfim. Se noutras partes do mundo os fantasmas são mais ou menos individualistas, procurando cada qual o seu cantinho para meter medo às gentes (os mais desprotegidos em tocas, encruzilhadas, fazendas em ruina; e os mais felizes até com castelos exclusivos), em Belo Horizonte, eles não tem tanta iniciativa e, por isso, se tornaram gregários, elegendo o bairro do Bonfim como morada coletiva.
Talvez a necrópole seja a causa dessa preferência, mas, se assim for, é de se estranhar que o cemitério da Saudade não fosse contemplado nem com uma avantesma da reserva do segundo time. Ou será que as assombrações têm complexos e o parcialismo dos grã-finos? De qualquer maneira, o fato é que, no Bonfim, o espaço mortal se vai tornando tão angustioso quanto o vital, e nele já há mais fantasmas por metro quadrado que pulgas no Cine Paissandu.
São tantos que nem sabemos por onde começar: contam-se às dezenas casos de choferes que levaram mulheres que desapareceram à porta do cemitério; de Don Juans que acompanharam avantesmas “fi-fius” para depois porem a boca no mundo e o corpo no Pronto Socorro; de panos brancos que, “quando vai alta a lua na mansão da morte e já meia-noite com vagar soou” ficam para cá e para lá provocando chiliques e bate-queixos.
O ultimo “causo” ainda está quentinho de novidade, embora traga fria a espinha de um militar. É um acontecimento filial daquele mais célebre de Petrópolis. Deu-se que um sargento, no bonde começou a namorar uma garota que não era desta vida, mas mesmo uma coisinha do outro mundo.
E porque ultimamente (não se sabe o motivo) as assombrações deram para andar beijocando, a torto e a direito, a garota foi levando o homem pelo beiço, até a porta do dito hotel dos “de cujus” – o cemitério. Ali chegando – “pluff” – aquele clarão clássico de toda assombração que se preza, e depois, nada, a não ser o homem de cabelo em pé, o pé na noite e as noites em casa.
O homem da Capa Preta começou a por as manguinhas de fora no Alto do Colégio Batista, lugar que segundo as escrituras do Além ainda não tem proprietário certo e que também é disputado por assombrações párias e por ladrões da oitava classe. Apareceu, após, em vários pontos da cidade, ora como sendo homem, ora como sendo tatú mesmo. Contudo, por não ter muito conceito, ninguém lhe ligou importância, não se sabendo ao certo de seu destino.
Do Carro Fantasma muitos se lembram, por certo: todas as noites, um automóvel moderno (notem o constante “new look” das aparições belorizontinas) passava a mais de 220 quilômetros horários, por dentro de um abrigo de bondes, contornava o Pirulito, passava pelo outro abrigo e sumia na calada da noite, que é mesmo na calada que as assombrações desaparecem, ainda que sejam motorizadas e barulhentas.
Ninguém lhe podia ver a placa. Como o fato se repetisse a própria polícia moveu-se: pôs inspetor de motocicleta na Avenida Afonso Pena, amarrou cordões de isolamento para curiosos, fechou os abrigos com correntes, enfim, tomou tantas precauções que foi a vez do Carro Fantasma ficar com medo, não voltando.
No bairro Carlos Prates também mais de acordo com o século XX, apareceu, durante toda uma quinzena, um aero-fantasma, ou melhor, um trem voador. O comboio sinistro corria muito acima das casas, cortando o bairro de leste a oeste. Ninguém jamais pode observar se a locomotiva era elétrica, diesel ou a vapor. Todos, porém, que viram o estrupício volante, juraram que seu maquinista era de cor negra e que os vagões iam apinhados de negrinhos – naturalmente sacis retirantes.
Quase todas essas visões, contudo, não se deixaram desmentir para honra e glória de um folclore recém-nascido, mas já fecundo em fantasmas estilizados. Houve porém, dezenas de outros que se serviram para desacreditar seus confrades bem intencionados em seguir carreira.
Exemplificaremos:
Lá por 1947, em certa madrugada, um guarda-civil chegou na Praça Vaz de Melo, suando em bicas, trêmulo, desmoronante. E ali, junto a um grupo que, em breve, se transformou em multidão, contou, tartamudeante a sua história.
Estava ele encostado, distraidamente, ao muro do cemitério, quando escutou uma vozinha esganiçada, chamando-o: “Moço, ô moço”. Olhando assustado, ele vira um braço descarnado, acenando-lhe através da grade do portão da necrópole. E, de uma boca enrugada e sem dentes, a mesma vozinha, continuava implorante: “Moço, ô moço”.
O homem não teve dúvidas, e, não obstante o rápido da Central já haver deixado o cemitério para trás há dois minutos, conseguiu alcançar a passagem de nível da Lagoinha outros tantos minutos antes da composição. E ali estava, jurando pela alma de seus filhos, por aquela luz que o alumiava (naquele tempo a Força e Luz ainda cumpria suas obrigações), que vira um fantasma.
– Bobagens – falou um mulato, entre dentes.
– Sei não – retorquiu um malandro, acrescentando: – A gente vê cada coisa!…
Em breve, dois recém-parceiros de truco se lembraram de que “certa vez em minha terra “… E começaram os “eu vi”, “o pai disse”, “homem sério”, etc… Quando mais de mil fatos “absolutamente autênticos” já haviam sido narrados e de cujo relato já haviam participado dez policiais pingogingados, a turma toda resolveu dar um pulo ao cemitério para desabusar a alma. E para lá partiram corajosos.
A uns cinquenta metros do portão, todos viram a coisa. Corridas, gritinhos de pavor e pigarros de valentia concentrada logo acompanharam o sestro dos policiais, que arrancaram revolveres da cintura. E, cinematograficamente, com passos sincronizados à ballet, todos continuaram. Já estavam tão certo que podiam ouvir a vozinha descrita pelo guarda: “Vem cá pessoal”…
Aquele fantasma acabou por dar razão aos incrédulos: era apenas uma pobre velhinha que, indo à tarde rezar no túmulo do filho, adoecera e ficara presa no cemitério.
Poderíamos citar ainda quase um milhar de outras aparições belorizontinas, mas cremos bastar, como apoteose, a lembrança da mais celebre de todas: a Moça Fantasma, cuja origem é, agora, revelada ao público. A Moça Fantasma nasceu de um arranjo do chofer José Ferreira Senne, do carro 241, com Newton Prates, o mesmo que assina, nesta revista, a seção “Quadros do Rio”.
Lá um belo dia, dos idos de 1934, a folha dirigida por aquele jornalista ficou sem matéria bastante para sair à rua. Medita que medita, Newton Prates deu com o eureca capaz de abrir manchete. E no outro dia, com um enorme desenho do saudoso Monsã, o jornal afirmava que uma linda moça, na rua do Chumbo, nas proximidades da residência do professor Antonio Aleixo, tomara o carro de José Ferreira e que, junto ao Abrigo Pernambuco, quando o motorista olhara para trás, ela havia desaparecido.
O chofer, inocente, quis protestar, mas o jornalista convenceu-o confirmar a história para os colegas, acrescentando que ele ainda vira a Moça Fantasma em levitação, deixando o automóvel como uma gaze flutuante, até esvaziar-se completamente, ocasião em que, como louco, o veículo dirigido por “seu” José despencava pela avenida abaixo.
Em breve, a coisa pegou fogo. Dezenas de pessoas viram de fato a Moça Fantasma: um guarda desmaiou, ao topar com o seu vulto em Santa Efigênia; uma empregada, ao quebrar um rico aparelho de porcelana, jurou que a visão a assustara.
Além disso, terceiros diziam coisas incríveis: Um estudante, namorando uma jovem, junto ao canal, vira que, intra-vestido, a moça era apenas um esqueleto. Outro, notara-lhe vermes saírem de dentro da manga. Outro, ainda, perdido pela sua beleza, acompanhara-a ao cemitério, entrara, e lá desaparecera, em companhia de sua morta virgem, não se sabe se Elvira ou Inês.
Tanto ascendeu na escada da fama a criação jornalístico-motoristica que o chofer, ainda que indiretamente, chegou até ser a musa de Carlos Drummond de Andrade, já que o poeta encantado com a defunta notívaga, inspirou-se em andanças para escrever o conhecido poema que começa assim:
“Eu sou a Moça-Fantasma
que espera na rua do Chumbo
o carro da madrugada…”
Também a criatura terminou por ser mais importante que o próprio criador: assim é que o motorista quer para seus colegas, quer para conhecidos, passou a chamar-se Zé Fantasma, nome com que ainda hoje atende pelo telefone 2-5090, com o carro e o conto.
E ainda agora, a despeito de seu automóvel conduzir personalidades importantes como Pedro Aleixo, Milton Campos e ases congêneres, fregueses de longa data, e de servir de local para a discussão de importantes problemas políticos nem mesmo o fantasma de Benedito Valadares, que tantas vezes deve ter perseguido seus ocupantes, serviu mais à fama de seu Zé que o daquela moça que, no Abrigo Pernambuco, lhe saltou da cachola para a história da cidade…
[Alterosa (MG), 1/11/1953. Hemeroteca BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]
Aqui em Itabira, também tem as suas histórias. Próximo ao cemitério do cruzeiro havia uma sede, onde os boêmios se encontravam para dançar, paquerar e tomar umas biritas. E sempre aparecia uma loira estupenda, fenomenal que frequentava o local. Bebida vai, bebida vem, o entusiasmado crescendo, bailes mela cueca, dança agarradinho e a noite vai se chegando ao fim. A moça então vira para o rapaz que lhe acompanha e pede para levar em casa. Daí a surpresa, saem do local caminha pela avenida, quebra a esquerda e vai em direção ao Paulo Pereira, cadeia pública do município defronte ao cemitério do cruzeiro. Chegando próximo a entrada do cemitério, despede-se de seu pretendente com um longo beijo dizendo-lhes ternas palavras de amor.
Oi João, uma história puxa a outra, hem!!!