Tobias, o menestrel* do samba de Itabira do Mato Dentro
– Texto publicado originalmente neste site Vila de Utopia em 01/7/2017)
Carlos Cruz*
(Segunda e última parte da reportagem com Tobias. Leia a primeira parte aqui)
Foi em meados da década de 1950 que José “Tobias” Caetano Belisário conheceu aquele que virou o seu grande mecenas, o compadre e ex-prefeito Daniel de Grisolia. Convidado pelo amigo de alcunha Bené de Noite, os dois seguiram para um show de calouros que o ex-prefeito promovia em um barracão no bairro Pará, perto de onde hoje é a praça Doutor Nelson Lima Guimarães (leia a primeira parte da reportagem aqui).
Durante o show, Daniel distribuía presentes que ele ganhava “dos riquinhos da cidade para distribuir aos pobres”. Era início da primeira campanha eleitoral que o consagrou como o político mais popular de Itabira, elegendo-se prefeito por duas vezes (1959 a 1963 e de 1967 a 1970).
“Cheguei lá todo mulambento e acabei ganhando uma calça e uma camisa. Daniel falou assim: ‘este presente vai para o homem mais feio que está aqui’. Era eu”, recorda Zé Belisário, dizendo ter ficado feliz mesmo tendo sido chamado de feio, por ter ganho o primeiro par de roupa nova em sua vida.
Depois disso, o menino cresceu e a convite de um primo chamado Mateus, foi trabalhar em Nova Lima, na mina de Morro Velho. “Fiquei por lá três anos trabalhando. Vi muita gente sair no saco (morta). Tinha um gás que causava explosão, além das doenças que provocava no pulmão. Era muito triste”, recorda.
Mas Nova Lima não foi só tristeza na vida de Zezé de Sá Amélia. Foi lá que o Tobias aprendeu a tocar cavaquinho e comprou o seu famoso e histórico banjo. “De volta a Itabira, não aguentei tanta ‘paradeza’, Foi aí que juntamos os meninos do Capim Cheiroso e começamos a fazer batucada batendo nas latas.” Surgiu assim a famosa charanga do Tobias que, anos mais tarde, virou a Escola de Samba Gente Humilde de Itabira.
Na campanha de Daniel
Já no fim dos anos 50, Tobias teve o segundo e definitivo encontro com Daniel de Grisolia, logo que voltou de Nova Lima, começando uma grande amizade. “Eu estava batendo lata com os meninos no quintal quando chega Daniel e me convida para trabalhar em sua campanha. Nesse tempo o coronel Fonseca me perseguia. Contei para Daniel e ele teve uma conversa dura com ele lá no paredão, em frente à casa do doutor Antônio Camilo. Depois disso, esse coronel nunca mais implicou com a minha batucada. E mandou o cabo Torto parar de me perseguir.”
Tobias conta que nunca frequentou escola e que aprendeu a ler sozinho, lendo jornais. O primeiro sucesso para a campanha de Daniel foi o samba-jingle Eleitor de Cuia, que compôs em parceria com o amigo Zé Pinto. “Ele trouxe a letra pronta, escrita à mão. Eu falei, ‘ô Zé, assim eu não sei ler. Traz em letra de jornal que eu entendo’. E assim ele trouxe e fiz a música.”
Tobias busca o velho banjo empoeirado, com as marcas do tempo. E canta Eleitor de Cuia: “Larala, larala, lá. O operário está decidido, a afirmar a coligação/ porque não somos eleitor de cuia/não somos burros, sem consolação./ larala, larala, lá/ Vem o prefeito, vem o DJ/você sabe que depois que ele for eleito, apoiado pelo povo, saberá o que fazer/ larala, larala, lá.”
Criativo, durante a campanha o sambista foi compondo os seus novos sucessos eleitorais, como um cronista musical atento aos acontecimentos, a cena primária vivida enquanto batucava o samba para eleger o compadre Daniel. O segundo samba/jingle foi Proibiram o meu samba, uma resposta bem-humorada ao coronel Fonseca que o perseguia a mando dos adversários de Daniel.
“Proibiram o meu samba, mas não incomodei, não/ Sou sambista lá do morro, gosto de alegrar o povo, mas não sou de confusão/Moro no Morro de Santo Antônio, procure o meu nome, sou o maioral de lá/Meu direito é livre, quero-me desabafar/Dá o que dá, dá o que dá. Proibiram o meu samba…”.
José Belisário recorda enfezado de uma noite em que vinha do bairro Campestre para o centro puxando uma passeata de estudantes, quando passando pela rua Santana, acabou todo mundo numa fedentina medonha. Menos ele, claro, que puxava o samba e conseguiu escapar da saraivada de ovo podre.
Ocorreu que Ivan Eliziário, o famoso Ivan Lavanca da rua Santana, filho do ex-prefeito José Eliziário Barbosa (1957/59), a quem Daniel fazia oposição, jogou ovo podre na multidão. Não deu outra: o episódio virou mais um samba para campanha do compadre Daniel.
“Nos jogaram ovo na rua Santana, procurando a gente. Não incomodamos, saímos cantando, porque nós somos iguais/ Para eleger o prefeito, usamos o nosso direito./Não queremos briga, queremos é ganhar/ Vitória, vitória da Frente Popular/Venha assistir a nossa vitória/venha ver a glória da Frente Popular/ Quem não acredita, pode chegar./Pega e olha a blusa do ovo que nós trouxemos para mostrar/Vitória vitória, da Frente Popular.”
Já no comício no bairro Pará, Tobias conta que Niquinho Guerra, outro adversário político, jogou água nos correligionários de Daniel. Mais uma vez a verve do poeta compôs mais um sambinha, jogando “praga” para que o agressor pegasse mijarcão, uma doença que segundo ele explica, dá no pé de burro.
“Nos jogaram copo d’água, quem não tem educação./As suas mãos hão de encolher com o mijarcão. Não adianta jogar água, não/ nós não deixamos de passear no Pará/Aha, ah/ quem mandou o Daniel ser da Frente Popular/ Aha, ah./Quem mandou o Daniel ser da Frente Popular.”
Padre Lopão
E quando os adversários viram que as eleições estavam perdidas, foram atrás do padre Lopão, que diziam apoiar Daniel. Ameaçaram mandar o padre pro quinto dos infernos, ou para uma paróquia bem pequenina, se não mudasse de opinião. O episódio acabou virando tema de mais um samba do criativo compositor:
“O nosso padre Zé Lopão não larga Itabira, não/Não sai de nossa união/Não vai fazer gosto a ninguém, não./Na matriz ou nas procissões, praticamos a nossa religião./Não vai largar a nossa paróquia, não/ Vamos rezar com devoção/Ave Maria, ave Maria.”
Virou o maior sucesso laico/eclético/religioso/político/estudantil de Itabira. Os estudantes vibravam. Aprendiam rapidinho as letras dos sambas que Tobias de Sá Amélia compunha para Daniel e o acompanhava nos comícios cantando com empolgação. Daniel cativava estudantes, camponeses, operários, estava acima da luta de classes. Era o que hoje os neoliberais rotulam de populista, pelo carisma e convivência que mantinha com os humildes do Capim Cheiroso, dos distritos de Senhora do Carmo e Ipoema.
Consagrado na urna, a vitória de Daniel virou mais um sambinha com o sugestivo nome Vitória de cabo-a-rabo: “Acabou a confusão, agora temos liberdade/Ganhamos de mil e sessenta e nove, sem entrar os votos dos meninos/A turma ganhou de cabo-a-rabo/Não deu lambuja para eles contarem o caso/Entra seu Colombo de beque da defesa./E o nosso glorioso meia de ligação/Zezito e Jody completaram a seleção/Daniel chutou e gooooool/Acabou a confusão.”
Linguagem de macaco
Ainda no tempo em que Tobias garimpava minério de ferro na mina Cauê, naquele época já da Vale, na calada da noite feito um curiango, junto com companheiros do antigo bairro Explosivo, conversando entre eles, surgiu a célebre Linguagem de Macaco.
Tobias pode-se dizer que é um dos autores e como tal aprendeu logo a se expressar correntemente. “Foi um modo que inventamos para os ingleses não entenderem o que a gente falava.” Sem perder tempo, o nosso menestrel do samba compôs Ah, que tosgoso, no recém-criado “dialeto”.
Ah, equ tosgoso, ah equ tosgoso. (Ah, que gostoso, ah, que gostoso)./E on lhevo pemto do Pacim Reichoso. (E no velho tempo do Capim Cheiroso)./E a ita Lecicia zafia o lobo, ás Mencletina zafia o facé. (e a tia Cecília fazia o bolo, e sá Clementina fazia o café)./Uem aip Ez ad Vilsa xupava o lofe na saquinha de pasé. (Meu pai Zé da Silva puxava o fole na casinha de sapé)./Ah que tosgoso, ah que tosgoso. (Ah que gostoso, ah que gostoso)./On lhevo pemto no Pacim Reichoso. (No velho tempo do Capim Cheiroso)./
Ue era quepeno sam era guendoso. (Eu era pequeno mas era dengoso)./Omc as romeninhas do Pacim Reichoso. (Com as moreninhas do Capim Cheiroso)./Ramia ad Zul e Ramia Sojé, tancavam nobito e bamsavam no ep. (Maria da Luz e Maria José, cantavam bonito e sambavam no pé)./Ah que tosgoso, ah que tosgoso. (Ah que gostoso, ah que gostoso)./Guechava os mondingos eu vada um teijinho, lococava a dorca on eum vacanhinqo. (Chegava os domingos eu dava um jeitinho, colocava a corda no meu cavaquinho). Ah, equ tosgoso, ah equ tosgoso. (Ah, que gostoso, ah, que gostoso).
/Eu ones era bobo ed quifar zosinho omc tantas romenas rochando orp imm. (Eu não era bobo de ficar sozinho com tantas morenas chorando por mim)./Ah que tosgoso, ah que tosgoso. (Ah que gostoso, ah que gostoso)./Ál on alto do rromo era o eum darjim. (Lá no alto do morro era o meu jardim)./Rea duto galeria e eu tancava ssaim. (Era tudo alegria e eu cantava assim)/Ah que tosgoso, ah que tosgoso. (Ah que gostoso, ah que gostoso).” Genial o Tobias, poeta e sambista bilíngue.
Trabalho na Prefeitura
Mas nem tudo foi só samba na vida de Tobias. Para se manter sambista e jogar capoeira, viver e deixar viver, teve de trabalhar duro. E a prole só crescendo, cada ano mais bocas para alimentar.
Com Daniel eleito, ele foi trabalhar na Prefeitura, aposentando-se só no fim da década de 1970, pelo Serviço Autônomo de Água e Esgoto (Saae). Ele recorda que teve como primeira incumbência cuidar da limpeza da cidade. “Virei encarregado de turma. Com 20 rapazes colocamos a cidade toda limpa.”
Daniel queria melhorar a pavimentação da cidade, pois a maioria das ruas era de chão batido, excetuando as do centro histórico, calçadas com hematita. O problema era que o fornecedor de pedras era um adversário político, o empresário Raimundo de Otto, dono da única pedreira da cidade, no atual bairro Pedreira do Instituto.
O compadre Daniel então perguntou se ele, o Tobias de Sá Amélia, o menestrel do samba, pau pra toda obra não daria jeito de conseguir as pedras em uma outra frente de trabalho na mesma pedreira e que não pertencia ao seu adversário.
“Nunca tinha mexido com ‘fogo”, mas vi como os operários da Vale faziam para detonar minério. Daniel conseguiu um compressor e fui fazer carga. Voou pedra para todo lado. Abrimos uma frente de trabalho e colocamos mulheres e meninos para quebrar as pedras para fazer os calçamentos.”
Feito o serviço na cidade, na sequência Tobias reuniu outra turma e foi calçar as ruas dos distritos de Senhora do Carmo e Ipoema. De volta a Itabira, quando foi preciso buscar água no córrego Pureza, já que os mananciais do Borrachudo e da Camarinha ficaram com a Vale para lavrar minério, Daniel recorre mais uma vez ao seu fiel escudeiro.
“Daniel falou assim: ‘Tobias, vamos buscar água na Pureza, mas tem um problema: no meio do caminho tem a fazenda de um homem baixinho, mas muito bravo. E é nosso adversário, ‘doido’ com Luiz Brandão (prefeito de Itabira de 1950/54), foi logo avisando.”
E lá foi Tobias com a sua frente de trabalho cavar o chão para instalar as manilhas. O fazendeiro bravo era Zito Matoso que, para sua surpresa, não criou caso. “As tubulações passaram pela sua fazenda sem que ele se importasse. Ficou tudo em paz. Era para o bem de Itabira.”
Muitos anos se passaram e Tobias participa da segunda campanha vitoriosa de Daniel, em 1966. E com o compadre ficou até o fatídico dia 19 de setembro de 1970, quando o ex-prefeito se matou com um tiro no ouvido, depois de ser acusado de corrupção pela implacável Agência Governamental de Inteligência (AGI), percursora do SNI (Serviço Nacional de Investigação) da ditadura militar. Essa é mais uma história itabirana até hoje mal explicada, como tantas outras nos tristes tempos obscuros que se espera não voltem nunca mais.
“Foi o dia mais triste da minha vida. Eu estava na porta da Prefeitura quando Daniel chegou, encostou em mim e falou: ‘Tobias, adeus”. Eu perguntei: ô compadre, você vai viajar? Ele nada respondeu e subiu para o segundo andar. Daí a pouco, ouvi o estampido. E ele foi embora para sempre. Morreu o político mais querido de Itabira de todos os tempos.”
Gente Humilde, mas com muita saúde
Aos 86 anos, Tobias se vangloria de só ter entrado em um hospital recentemente, para tratar de uma gripe forte que o acometeu. “Foi essa gripe que derrubou muita gente aqui em Itabira, coisa recente”, conta, como se assim explicasse o seu fraquejo.
Até então nunca tinha tomado remédio de farmácia. Curandeiro, ele conhece os efeitos curativos das plantas medicinais que cultiva em seu quintal. Nunca cobrou pelas “garrafadas” que distribui a quem o procura para tratar de alguma doença.
“É tudo vindo da natureza, não posso cobrar”, alega. “Meu remédio para gripe é Santo Antônio com Mané Magro”, diz ele, que mistura “carquejo, babaçu, jurubão”.
Foi com essa saúde de matuto nascido no povoado dos Gomes, em Santa Maria, já mais ou menos idoso mas com toda vitalidade, que Tobias de Sá Amélia voltou no início da década de 1980 a desfilar na avenida com a Escola de Samba Gente Humilde de Itabira. Mas foi por pouco tempo, apenas dois anos.
No terceiro ano após o retorno, a escola sucumbiu mais uma vez por falta de recursos. “Tinha gente na Prefeitura que não gostava da Gente Humilde”, lamenta.
Para tristeza geral, o último samba composto por Tobias não chegou a ser apresentado na avenida para o grande público. No seu enredo, ele canta as riquezas minerais de Itabira e da região. Chama-se Ouro e Esmeralda:
“Como é que pode ser, parte do João Mineiro/, pois eu canto e encanto para Itabira e o Brasil inteiro./O que ele tem que a gente não tem./É falta de união para mostrar para o mundo o que temos também/O quê?/
“O minério de ferro é a nossa garantia, o ouro e a esmeralda são a nossa economia./Sem falar na ametista, que rola pelo chão, roxeada e linda, símbolo da paixão./Você sabe que a água marinha é extraída em Santa Maria./Perto dali tem a alexandrita, a pedra encanto de nosso Brasil./Como é que pode ser, parte do João Mineiro, pois eu canto e encanto para Itabira e o Brasil inteiro.”
Mas Tobias Belisário não deixou de compor os seus sambinhas mesmo depois que a escola de samba acabou. “A música é herança que herdei do meu pai José da Silva, bom sanfoneiro. E a alegria vem da minha mãe, a Sá Amélia.”
Essa mesma herança atávica musical, ele compartilha com os filhos Nonoca (multi-instrumentista e cantor), Osny (percussionista) e João Tobias (violão e voz). E assim, ao lado dos filhos, filhas e netos, Tobias segue vivendo sem perder o samba no pé.
Nasceu no Mato Dentro e pro mato voltou, no quintal de sua casa, nem bem anoiteceu. Ele agora jura que não tem medo de assombração e de onça muito menos, já que mataram quase todas, e se é que sobraram algumas, “Deus queira que sim”.
“Eu acho que nasci compositor”, diz. E levanta-se, encerrando de vez a reportagem. “Chega, tá bom, né? Já falei mais do que devia.” E se foi com o banjo e as suas lembranças de volta para dentro do quintal de casa.
*Menestrel
Acepções
substantivo masculino
1 Rubrica: literatura, música.
na Idade Média, artista da corte ou ambulante que, a serviço de senhores, recitava e cantava poemas em versos, freq. com acompanhamento instrumental [Via de regra, o menestrel, diferentemente do trovador, não compunha poemas, apenas os declamava.]
2 Derivação: por extensão de sentido.
poeta ou músico que divulga, cantando ou declamando, poemas ou músicas próprios ou alheios; trovador, cantor
3 Rubrica: música, teatro.
músico ou comediante pertencente aos grupos de artistas americanos, surgidos no início do século XIX nos E.U.A., cujas músicas, piadas e caracterizações eram típicas da cultura do negro americano
Etimologia
fr.ant. ménestrel ‘servidor’, donde ‘operário, artesão; poeta ou músico’
Fonte: Dicionário eletrônico Houaiss
Fim da segunda e última parte.
Só para lembrar e voltar a curtir
Começo musical
Antes de entrar para a campanha política, Tobias já compunha os seus sambinhas. Aprendeu a tocar cavaquinho e banjo quando morou em Nova Lima, tendo como maior inspiração musical o príncipe do samba Roberto Silva (1920/2012). Ouça aqui: https://www.ouvirmusica.com.br/roberto-silva/.
3 Comentários