Santa Maria de Itabira: memória, afeto e urgências de uma cidade entre montanhas
Fotos: Acervo Vila de Utopia
Em busca do tempo perdido pelas ruas da memória Santa Maria de Itabira: afetos, memórias profundas e desafios urgentes
Carlos Cruz
Estive em Santa Maria de Itabira na sexta-feira (1º), para acompanhar a programação noturna do 7º Festival de Inverno da cidade vizinha, que, para mim, é mais do que próxima: é afetiva, visceral, carregada de memórias.
Como me disse a escritora santa-mariense Joana d’Arc, “a carga que sua mãe te deu, e que eu também recebi, é irresistível”. É nesse afeto que me reconheço “meio e muito garrucheiro”.
E foi nesse mesmo espírito, meio em busca do tempo perdido da infância e juventude, proustianamente, como quem caminha por dentro de suas memórias atávicas e afetivas, que fui flanerando pelas ruas da cidade, antes de assistir aos shows de Gisele, Nonoca e Romário, e o encerramento da noite cultural com os sexagenários da banda Biquini Cavadão.
A cada passo, absorvia os detalhes como reencontro com os vestígios da minha mãe, Mariinha, e dos meus avós, Amarante e Maria. Sou do tempo antigo, de quando menino visitava Santa Maria, ainda pequenina, com a luz fraca nas casas e nos postes, onde a eletricidade ainda se apresentava como novidade.

A igreja do Rosário era modesta, pequenina, depois crescida, ocupando a antiga casa da minha bisavó Cocota, trocada pela casa em frente, onde morou por muitos anos a estimada tia Bezinha, a “Rainha do Rosário”.
O olhar era contemplativo, atento, reverente. Em cada esquina, uma lembrança. Em cada fachada, um eco do passado refletindo no presente. Santa Maria não é só história – é também comércio ativo, vida pulsante e desafios urbanos, sociais e econômicos que seguem esperando por enfrentamento, sempre adiados.

Há um detalhe que não se pode ignorar: Santa Maria não tem ruas asfaltadas. São todas calçadas, com pedras que ainda respiram. Por lá não chegou essa “modernidade” antiecológica do “chão preto”, como ocorreu em Itabira, que trocou suas tradicionais calçadas de hematita pelo manto escuro e quente do asfalto. E que ainda cobre ruas calçadas por asfalto, a pedido dos moradores.
E mesmo com o trânsito intenso, com carros, caminhões e motos cruzando a rua Casemiro Andrade, por onde a rodovia corta a cidade, vê-se gente tranquila, pedalando suas bicicletas, meio de transporte que permanece tão tradicional em Santa Maria quanto as calçadas.
A vida passa devagar em Santa Maria, assim como o fluxo dos veículos, que se veem obrigados a desacelerar quando passam pela cidade. E o curioso é que não são os quebra-molas que fazem isso acontecer – é a própria cidade que impõe seu ritmo, lento no trânsito, mas pulsante nas atividades comerciais.
A estética de uma cidade entre montanhas

Confesso que gostei do que vi em Santa Maria, embora com muitos reparos. A cidade está limpa, bem varrida, com sinais visíveis de cuidado urbano.
Não conheço pessoalmente o prefeito André Lúcio Torres (PSD). Sei que responde a processo judicial por abuso de poder político e econômico nas eleições de 2024, o que pode resultar na cassação de seu mandato, bem como da vice-prefeita Renata Duarte Tomaz (Republicanos).
A decisão ainda está em fase de recurso, e o futuro político dos atuais mandatários segue incerto. É de se esperar que, na defesa que apresentarão, busquem sustentar os argumentos que lhes permitam seguir à frente da administração municipal.

Mesmo diante disso, há zelo da administração municipal com o espaço público. Ruas arborizadas e floridas, sem lixo visível, bituca de cigarro ou resíduo no centro e no bairro Conselho, por onde passei e flanerei.
A arborização nesse aprazível bairro é intensa sem agredir passeios ou residências, de dar inveja à nossa poeirenta Itabira que, segundo o IBGE, é uma das cidades menos arborizadas do país.

E foi nesse contexto que me lembrei de Walter Benjamin, que, como Baudelaire, o poeta urbano que se misturava à multidão sem fazer parte dela, permanecendo invisível, também descreveu o papel do flanêur como aquele que observa, mas não se deixa absorver.
Assim também observei a estética das casas modernas na nova Santa Maria. Embora a cidade não tenha tombado seus casarões históricos e arquitetônicos, pela triste ausência de política patrimonial, a cidade não se deslumbrou com a verticalização.
As novas construções não esmagam a paisagem. Há respeito silencioso pelas montanhas, como se cada casa nova soubesse que está ali no lugar de outra que no passado também conviveu harmoniosamente com a cidade.
O rio que corta e o outro que represa: memória de uma tragédia

Mas também ali, observando o rio Jirau, nascido em Itabira, represado pela barragem de Santana e que segue serpenteando passando pelo perímetro urbano de Santa Maria, vieram-me lembranças da tromba d’água que atingiu a cidade em 21 de fevereiro de 2021.
Aquela cabeça d’água atingiu principalmente os moradores das encostas na madrugada de um domingo, deixando seis mortos e mais de 2 mil pessoas desalojadas. E um susto tremendo, o medo permanente de que se repita, caso medidas de controle e mitigações não sejam executadas, como até aqui não foram.
As autoridades atribuíram o evento a causas naturais. No entanto, essa explicação não dá conta da realidade. Santa Maria sofre com a falta de planejamento urbano, ainda não possui Plano Diretor e cresce de maneira desordenada.
Desde então, à exceção da recuperação de algumas pontes, na zona rural e a que liga o centro ao bairro Conselho, pouco foi feito para prevenir uma nova tragédia em tempos de mudanças climáticas cada vez mais intensas.
Alagamentos

O encontro do Jirau com o rio Tanque é uma das principais causas das inundações recorrentes na cidade. O Tanque recebe o Jirau de forma perpendicular, e quando está cheio, empurra a água de volta, provocando refluxo. O resultado são alagamentos no centro e nos bairros Lambari, Conselho e Barra.
A proposta mais debatida, e que deveria ser vista como urgente, é o desvio à direita do curso do Jirau antes de seu encontro com o Tanque. Isso permitiria ao Tanque absorver o fluxo sem represar o Jirau.
Uma solução simples no papel, já há muito apresentada, mas que demanda planejamento, escuta da comunidade e recursos que o município não dispõe. Daí que até agora, nada foi feito.
A barragem e os fantasmas não tão invisíveis

Outro fator de risco é o assoreamento do Jirau, ainda presente, embora menos grave que no passado, quando o fino de minério da Vale era carreado diretamente para o rio.
Atualmente, a principal contribuição vem dos areais e de bairros situados em encostas, onde faltam cuidados urbanísticos adequados. Durante o período chuvoso, esses terrenos e empreendimentos acabam despejando areia e lama no leito do rio, agravando o processo de sedimentação e comprometendo sua vazão natural.

A barragem de Santana, situada a montante da cidade, no município de Itabira, é também motivo de sustos e muita preocupação. Isso pelo risco que representa, mesmo tendo sido construída pelo método a jusante, considerado mais seguro, mas que ainda represa cerca de 14 milhões de metros cúbicos de sedimentos e água. Mesmo reforçada recentemente, permanece como ameaça que assombra a comunidade santa-mariense.
Após a tragédia de fevereiro de 2021, mesmo com a barragem tendo amortecido a força da água, um hidrogeólogo ouvido por este site Vila de Utopia alertou que, embora considerada segura, a estrutura não elimina a vulnerabilidade da cidade durante o período das chuvas intensas.
Como especialista, ele sugere a construção de diques secos ao longo do rio Jirau, que seriam pequenas estruturas que permanecem abertas e secas durante a estiagem, podendo ser fechadas temporariamente em períodos de chuvas intensas para conter o aumento repentino da vazão.

Trata-se de um modelo semelhante ao adotado em países da Europa e no Chile, utilizado para reter o degelo dos Alpes e Andes.
Segundo esse técnico, essas estruturas, equipadas com vertedouros inferiores para garantir o fluxo contínuo na seca, deveriam ser financiadas pela mineradora Vale como medida preventiva – e compensatória, e para minimizar o medo que toda essa estrutura acarreta.
Ainda que a barragem de Santana não venha a se romper, seu impacto indireto sobre a vazão e a segurança urbana já seria razão suficiente para exigir ação imediata cautelar e reparadora.
Afinal, há uma dívida histórica e ambiental da mineradora Vale a ser saudada com Santa Maria. Como bem disse o saudoso ambientalista, professor Ângelo Machado, “a Vale indenizou os bois dos fazendeiros que embucharam com o fino do minério, mas não quitou a dívida ambiental com o rio Tanque.” Está na hora de acertar essa dívida.

Saneamento básico e qualidade de vida
Santa Maria também carece de saneamento básico. Ainda que o Jirau esteja mais limpo, sem entulhos visíveis em seu leito e margens, continua recebendo efluentes domésticos e hospitalares. É preciso revitalizá-lo, inclusive com projeto paisagístico, mas acima de tudo com tratamento de esgoto. Isso é urgência urgentíssima.
Esse projeto precisa entrar no radar da população e da Prefeitura, até mesmo para ser incluído nas condicionantes de renovação da licença ambiental da Vale para o Complexo Minerador de Itabira, o que deve ocorrer em 2027. Itabira, nesse contexto, poderia exercer um gesto de solidariedade regional e apoiar essas demandas.
E há precedente: a Licença de Operação Corretiva (LOC) do Distrito Ferrífero de Itabira, aprovada em 2000, exigia da Vale a reabilitação da mina Piçarrão, em Nova Era. Portanto, nada impede que Santa Maria seja também incluída nesse pacto regional por justiça ambiental.

Planejar para não desaparecer
Santa Maria cresce. Fiquei admirado com o tamanho da Vila Marília da Costa, o mais populoso da cidade. Lá também tem um comércio intenso, uma vida pulsante. “É o melhor bairro de Santa Maria”, me disse um jovem morador, que empinava uma pipa neste mês ventoso de agosto.
E vai crescer ainda mais com uma anunciada – e até aguardada – mineração, fala-se que no Morro Escuro onde existe projeto de exploração, e também para os lados da fazenda Rochedo sentido Nova Era.
Embora alguns mais críticos e atentos fazem ressalvas pelos impactos ambientais decorrentes, o certo é que muitos moradores, possivelmente a maioria, veem isso como progresso com geração de empregos, rendas e tributos para o município. Precisam entender que progresso sem planejamento é só exploração predatória.
Com mobilização política e responsabilidade social, a cidade pode continuar oferecendo cada vez mais qualidade de vida mesmo sendo minerada à exaustão, mas que seja diferente do que historicamente aconteceu e ainda ocorre em Itabira.
Para isso, antes de tudo, é preciso definir, debater, aprovar e aplicar seu Plano Diretor. “Que assim seja, amém!”, como diria o santa-mariense e garrucheiro Arp Procópio, de boas e provocativas lembranças.
É que sem esse Plano Diretor, o crescimento seguirá desordenado, enquanto os afetos e as utopias também serão soterrados pelos rejeitos da mineração. Que assim não seja. Amém!
Sou Garrucheiro e me emocionei com a sua crônica, caro Carlos. Obrigado.