Salgueiro, com ‘Senhoras do ventre do mundo’, pode ser a campeã do desfile no sambódromo
Lenin Novaes*
Acadêmicos do Salgueiro: nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente.
Já se ligaram, estimados leitores e leitoras da Vila de Utopia, no que significa o slong acima? Sim, é isso mesmo! Trata-se do mote da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro. Essa tradicional agremiação carnavalesca do Rio de Janeiro sempre encanta e faz a plateia delirar nas arquibancadas e camarotes com seus desfiles no sambódromo. Ano passado se classificou em 2º lugar e, para o próximo desfile, com o enredo Senhoras do Ventre do Mundo, os componentes estão confiantes em que a escola será campeã. A escola será a quarta a desfilar dia 12 de fevereiro, segunda-feira.
A Acadêmicos do Salgueiro é líder no ranking da Liga Independente das Escolas de Samba (2013-2017), somando 60 pontos, sendo três pontos a mais que a Unidos da Tijuca, totalizando 57 pontos. A Portela vem logo a seguir, com diferença apenas de um ponto da segunda colocada e com três pontos a mais da Beija-Flor de Nilópolis, quarta colocada, com 53 pontos. A Mangueira soma 37 pontos, em 5º lugar, à frente da Grande Rio, com 36 pontos, ocupando o 6º lugar.
Em 7º lugar está a Imperatriz Leopoldinense, com 34 pontos, seguida da Mocidade Independente de Padre Miguel, em 8º lugar, com 27 pontos. A Unidos de Vila Isabel está na nona posição, com 25 pontos; a União da Ilha do Governador é a décima colocada, com 17 pontos; a São Clemente ocupa o 11º lugar, com oito pontos; e na décima primeira colocação estão a Paraíso do Tuiuti, Estácio de Sá, Unidos do Viradouro, Império da Tijuca e Inocentes de Belford Roxo, sem pontuação.
Apesar de integrarem o Grupo de Acesso Série A, organizado pela LIERJ, Estácio de Sá, Unidos do Viradouro, Império da Tijuca e Inocentes de Belford Roxo figuram no ranking da LIESA por terem participado de desfiles do Grupo Especial nos últimos cinco carnavais. O ranking está formado pelo somatório obtido nos últimos cinco desfiles. Entre as escolas que desfilam, as dez primeiras classificadas recebem a seguinte pontuação: campeã – 20 pontos; vice – 15; 3º lugar – 12; 4º – 10; 5º – 8; 6º – 6; 7º – 4; 8º – 3; 9º – 2; e 10º – 1.
Vocês podem observar, numa leitura mais atenta no ranking, que a Império Serrano – agremiação considerada a quarta colocada na preferência nacional – não aparece na relação. A ausência, é óbvio, está no formato do conceito do ranking que pontua apenas as escolas que desfilaram nos cinco últimos desfiles do Grupo Especial, no qual a verde e branca de Madureira ficou de fora das derradeiras competições. Mas, no entanto, aquele quadro poderá mudar, substancialmente, se a escola realizar excelente desfile este ano entre as principais agremiações.
Senhoras do ventre do mundo
Sobre o enredo da Acadêmicos do Salgueiro, desenvolvido pelo carnavalesco Alex de Souza, baseado na pesquisa coordenada por Júlio Tavares feita pelas pesquisadoras Kaká Portilho, Marina Miranda e alunos do Curso de História Geral da África – Instituto Hoju – nos remetemos à sinopse, que foi base para os compositores criar o samba:
“Ela brotou do ventre negro da África, seu povo a deu o nome de Dinikinesh, seu fóssil de milhões de anos era, aos olhos da ciência, a Eva Africana, que deu à luz a humanidade. A partir daí, a história segue seus passos. Ela é bíblica soberana de Sabá, dona do coração de Salomão. Ela é negra rainha. Regente na Etiópia, construiu palácios, cimentou a cultura e a arte. Contra-atacou os invasores. Foi general da Núbia, liderando exércitos.
Ela é, no Vale do Nilo, a personificação da autoridade divina, fonte do poder. Guardiã da linhagem real. Como Hórus, lança fogo contra seus inimigos. Ela é esposa e Mãe do Egito – a Deusa Ísis – amamentando o divino filho, Hórus, inspiração para a imagem da santíssima mãe nos primeiros santuários cristãos. É também Neith, a deusa mais velha, que fala com a voz atemporal ‘Eu sou tudo o que foi ou será’. E Hathor, autogerada, doadora da vida, protetora dos mortos, deusa dos sentidos.
Ela é mestre Hypátia de Alexandria, ‘a última grande cientista mulher da antiguidade’. Ela é Merit Pitah a mulher que cria a medicina e a primeira ideia de casas de maternidade na história da humanidade. Ela é guerreira, é Nzingha de Angola, na luta contra o colonialismo português, e que insistia em ser chamada de rei, ao marchar para o campo de batalha com roupa de varão. É Yaa Asantewa dos Ashanti. A Rainha Mãe de Ejisu, em Gana, que lutou contra os britânicos, e ao seu povo declarou: ‘Se os homens de Ashanti não irão para frente, então vamos todos nós. Nós, as mulheres, iremos’. Do lado de cá, é a conselheira Acotirene de Palmares, a sagrada mulher que empossou Ganga Zumba. É Teresa do Quariterê. É Maria Felipa, Luiza Mahin, e muitas outras.
Ela é a matriarca nesses cafundós coloniais e imperiais. Neste lado do Atlântico, formou novos laços familiares, irmandades negras, sociedades secretas que deram origem a diversas religiões de matriz africana. É a mãe preta, ‘ama de leite’, que amamentava o sinhozinho, que estava com dengo e só queria um xodó. É quem trança as madeixas fazendo cafuné, enquanto canta quadras e conta histórias para ninar. Cantigas cantadas em língua nativa, que citavam itans africanos, perpetuados entre nós.
Criou as feiras livres, nas praças e esquinas. Vendedoras de frutas e legumes, equilibrando seus tabuleiros, cestos sobre a cabeça, as primeiras empreendedoras do Brasil. São as filhas de Oya, que pregoam: Ê e abará! Que descendo a alameda da cidade com seus encantos, de saia rodada, sandália bordada, coberta de contas e balangandãs pisando nas pontas, sabe encantar. A “negra forra”, que faturava alguns mil réis, para a compra da carta de alforria das suas irmãs cativas. Doceira, quituteira, quitandeira.
Ela que alimenta, no seu tabuleiro tem… Vatapá, Caruru, Mungunzá. Põe na gamela o tempero, machuca a pimenta da costa e mais uma pitadinha de sal, põe farofa de dendê e veja só no que dá. Tem angu e aluá. Também tem Bobó, Acarajé e Efó. E depois o quindim e doce de leite com amendoim.
Quem dá fé aos saberes das folhas. Uma doutora ou curandeira. Ervas pra curar, ervas pra benzer. Mas se é canjerê, ela ‘corta’ quebranto, invoca o seu santo para lhe proteger. No axé, ela é Yamin, Preta Velha, Agbá, Mametu, Nochê… Mãe que prepara o ebó para o Oboró e para a Yapeabá. E cultua no Gèlèdè que reverencia e apazigua as Mães Primeiras, as ‘Senhoras dos Pássaros da Noite’, as energias geradoras da vida, e controladoras da morte. Para assegurar o equilíbrio do mundo. Sabe que para o povo africano ‘tudo aquilo que o homem vier a conseguir na terra, o será através da mão da mulher’.
Ela que seguindo os mestres e griôs, na tradição oral africana, fortaleceu as lutas de libertação. E através da palavra escrita, eternizou sua história. Ela… autora negra, guardiã dos valores ancestrais, desde Maria Firmina dos Reis, a primeira romancista do Brasil à Carolina Maria de Jesus, que registrava o cotidiano da comunidade, ao comparar a favela e seus cafofos, ao quarto de despejo de uma cidade. Estas e demais escritoras, superaram imposições sociais ao figurarem o seleto meio literário do país.
Ela… é memória do mundo; deusa; rainha; guerreira; sacerdotisa; feiticeira, a matriarca, que trabalha e sustenta a prole sozinha, seu nome é resiliência. Mãe, irmã, amante e companheira. Velha guarda, baiana, passista, porta-bandeira. Ela… cheia de graça, bendita mulher e seu ventre, com seus formosos pássaros, do alto dos céus, olhai por nós!”
Samba-enredo
Bem, pretendia discorrer sobre a história/trajetória e personagens marcantes e inesquecíveis da Acadêmicos do Salgueiro. Mas, vamos deixar para outra ocasião, muito em breve, pois é tempo de aprender a cantar o samba-enredo que irá embalar o desfile da agremiação vermelha e branca, na voz dos intérpretes Leonardo Bessa, Tuninho Jr. E Hudson Luiz. São autores os compositores Xande de Pilares, Demá Chagas, Dudu Botelho, Renato Galante, Jassa, Leonardo Gallo, Betinho de Pilares, Vanderley Sena, Ralfe Ribeiro e W. Corrêa.
“Senhoras do ventre do mundo inteiro
A luz no caminho do meu Salgueiro
A me guiar, vermelha inspiração
Faz misturar ao branco nesse chão
Na força do seu ritual sagrado
Riqueza ancestral
Deusa raiz africana
Bendita ela é e traz no axé um canto de amor
Magia pra quem tem fé
Na gira que me criou
É mãe, é mulher, a mão guardiã
Calor que afaga, poder que assola
No Vale do Nilo, a luz da manhã
A filha de Zambi nas terras de Angola
Guerreira feiticeira general contra o invasor
A dona dos saberes confirmando seu valor
Ecoou no Quariterê
O sangue é malê em São Salvador
Oh matriarca desse cafundó
A preta que me faz um cafuné
Ama de leite do senhor
A tia que me ensinou a comer doce na colher
A benção mãe baiana rezadeira
Em minha vida seu legado de amor
Liberdade é resistência
E a luz da consciência
A alma não tem cor
Firma o tambor pra rainha do terreiro
É negritude, Salgueiro
Herança que vem de lá
Na ginga que faz esse povo sambar”