Reminiscências do poeta do carnaval de Itabira: Casaca Vermelha

Casaca Vermelha

Carlos Drummond de Andrade

14 de março de 1965

Passando pela rua do bairro, quedei-me a contemplar as máscaras expostas na lojinha. Eram medonhas, de espantar adulto, e para esquecê-las só se eu tivesse ao lado o rostinho de Romy Scheider; não tinha: àquela hora, ela passeava de lancha, sem me convidar.

As máscaras – as más caras, pronúncia exata – deviam estar ali menos para ser usadas do que como alegoria de carnaval, que é, ou foi, essencialmente mascaradas.

Então, outras começaram a desenhar-se no fundo de minha memória; pobres máscaras de Itabira do Mato Dentro, que os próprios foliões fabricavam em casa, sobre formas de barro, como em casa se preparava a indumentária e o armamento carnavalesco.

Carnaval de Itabira na década de 1930 (Fotos: acervos de O Cometa e Cristina Silveira)

Ninguém se lembraria de sair à rua sem rigoroso incógnito, pois à conveniência do disfarce se juntava o prazer do jogo de identificações. O “Você me conhece? ” era para valer, mesmo.

Toda gente no interior era um pouco charadista, e levava esse gosto para o carnaval.

Meu tio, quando moço, saiu à rua absolutamente irreconhecível, fantasiado de Madame Durocher, parteira francesa que impressionava o Rio imperial; de valisa na mão, ele entrava pelas casas de famílias conhecidas, oferecendo préstimos a senhoras e senhoritas escandalizadas. Não tinha graça o folião deixar-se reconhecer.

O automóvel era o grande fetiche, como é ainda hoje

Sabíamos que o carnaval estava chegando porque, semanas antes, os operários se encarregavam de anuncia-lo à noite, com o zé-pereira ensaiando ao longe, como trovoada surda.

Não tambores, mas caixas-de-guerra bem batidas a encher o sono dos meninos com visões carnavalescas muito acima da realidade humilde. A essência do carnaval errava no ar, prometendo-nos delírios que não avaliávamos bem em que constituiriam – carnaval imaginado, imaginário.

Carnaval na década de 1970 em Itabira

Os cordões chamavam-se, candidamente, “Violeta”, “Primavera”, “Mineiro”; apenas um, audacioso, era “Ou vai ou Racha”.

Nós garotos, combinávamos longamente a formação de “bandos”, para os quais sempre faltava dinheiro, a ser obtido mediante laboriosas operações de venda de selos, canários, fascículos de “Nick Carter” e apelos ao erário paterno.

Em 1911, os proprietários de terras haviam torrado suas últimas lavras de ouro, e o dinheiro dos compradores ingleses encheu de euforia a cidade.

Inaugurou-se o cinema Eurico, o teatro municipal em ruínas é reconstruído, Joaozinho Rosa funda o Bar e Restaurante Pólo, João Bicudinho o High Life Bar, e os rapazes de “bem” se organizam num grande clube carnavalesco:

Foi uma festa, um festão

O do “Casaca Vermelha”

É um club ainda em botão

Que aos do Rio se assemelha

Tivemos prêmios bonitos,

Tivemos prenda mui chiques,

Doces, charutos perulitos

E berloques e berliques…

Dizia o poeta Piff, ao jeito dos bardos cariocas, no jornalzinho de lá. Não sei como ele terá cantado o desfile dos Casacas, no carnaval, mas lembra-me que foi espetacular o longo cortejo de dezenas (ou centenas?) de rubros foliões a cavalo, entre clarinadas.

Tudo isso – prosperidade e clube – durou pouco. O bastante para impregnar a retina infantil, de sorte que quando mais tarde vi os Femininos, Democráticos e Tenentes do Diabo passeando a guarda de honra equestre de seus préstitos pela Avenida Rio Branco, o esplendor da reminiscência impediu qualquer apreciação benévola; reparei antes nas tristes alimárias assustadas, que deixavam um pouco de si no asfalto. “Que aos do Rio se assemelha! ” Pois sim: o Casaca tinha outra classe.

Joias de Crioulas

No mais, era o limão de cheiro, realmente perfumado, que se consumia em grandes porções, quando não se preferia pegar a vítima à força e dar-lhe um banho no primeiro chafariz.

Em 1964, passando o carnaval nos arredores de Buenos Aires, vi que o entrudo ainda vingara ali, pelos campos com o pessoal fazendo caçadas de incautos, como há 50 anos em Minas.

Mas de que unção – desculpem a palavra – se revestia o ato final de nossa festa, com o “enterro” do carnaval, em vasta ceia de empadões, pasteis, galinhas, sobremesas de canudo e pudim, tudo molhado a cerveja, soda gasosa – farta mesa obtida, parte por contribuição dos sócios do “bando”, parte por munificência de famílias amigas, que sobretudo queriam ver-se livres da malta de garotos.

Fito demoradamente as máscaras da lojinha, mas são outras, longínquas e particulares, que estou vendo.

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