Retalhos das Crônicas – Extraordinária visita

Aurora Collegial nº. 196 – Ano XV, Nova Friburgo, 10.6.1919.

“Adaptação em prosa, com intenções humorísticas do poema The Raven (O Corvo de A. Poe). (Py)

Extraordinária visita, por Carlos Drummond Andrade.

Há dias, extenuado e sonolento, achava-me com a cabeça pendida sobre as páginas de uma desencadernada “História Natural”, quando subitamente, uma impetuosa rajada escancarou de par em par as janelas do meu quarto.

Era noite alta. Fazia frio, de sorte que eu me encontrava envolvido em meu capotão estilo Luiz XV. Recebendo em cheio sobre a face as palmadinhas do vento, dei três pulos sobre a cadeira, após o último dos quais, soltei uma praga em latim (Ó tempora! Ó venti!) e resolvi fechar as janelas.

O corvo (Foto: Ben Porter)

Nisto, graves e solenes como uma arenga de Clémenceau, treze badaladas soaram no campanário da Glória. Contei-as, uma por uma, e, ouvindo a decima terceira, arrepiaram-se todos os cabelos que o Pilogenio poupou na minha pobre e atormentada cabeça de estudante. Pois que?! Treze horas da noite?! Cruzes! … A apostar como isso são artes do demo!

Mal acabara de proferir essas palavras quando um grande corvo me entrou pelo quarto a dentro, indo pousar – o assombro! – no busto… de… de… numa cadeira desconjuntada.

E esta?!… exclamei eu, mais com os olhos, do que com a boca. Não é que este meliante está a me fazer arrepiar os cabelos? Os manes de Edgard Poe!

“Come te chamas, meu benzinho? ”

“Never more.”

“Never more!” Aquilo, dito por um corvo, sobre uma velha cadeira, às treze horas da noite – era lúgubre. Pus-me então a examinar o estranho visitante noturno. Era negro, com grande topete roxo sobre o bico aquilino e desmesurado. Que belo specimen para o jardim zoológico, para o Bristish Museum!

Inspirado por um não sei que, crendo ser aquela ave profeta dos estudantes (!), voiviá carga:

“Mas, dize, meu caro, tu, que assim apareces a um pobre rapaz, dize, sim, dize, abençoado profeta, voltará o decreto? “

“Never more”, grasnou o corvo sinistro.

“Corvo maldito” ave ou demônio que negrejas” “nas costas da noite plutônica! ” pela alma dos teus avós, dize: conseguirei cartas de recomendação para os meus examinadores? “

“Never more”, respondeu o malvado, encarando a ponta do próprio bico, um bico desmensurado e aquilino.

“Ó céus! Ó dor! Filho das trevas, gênio de Satã, o espirito do mal! Dize, profeta da desgraça, pavoroso núncio da desventura: serei feliz nos meus exames?

“Never more! ”, pronunciou a ave implacável, volvendo o bico para o lado, como a dizer: Já não me aborreças. ”

Não pude mais. Senti crescer em mim uma onda de revolta e avancei para o estranho animal: e quando estava a erguer a terrível ponta da vassoura, um cataclismo inaudito tudo subverteu, entre explosões horrorosas e estampidos infernais…

… e, então, acordei.

(Pesquisa, organização e compartilhamento: Cristina Silveira)

 

 

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3 Comentários

    1. Querida, não tenho não. Mas lhe enviei uma mensagem oferecendo as 11 crônicas publicadas no Aurora, transcrição que fiz da Fundação D. João. Tó sem emeio, por falta de pagamento, e assim que regularizar minha pendencia lhe envio. Também conversei na Casa de Rui sobre o acervo do poeta e o Memorial de Itabira, pelo emeio lhe dou o endereço e nome. Beijoca, linda morena!

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