Auto brasileiro de Natal

Ilustração: Natal Brasileiro (1989), Raimundo Nonato Oliveira, 1949. Do Piauí.

Carlos Drummond de Andrade

Margem da Estrada Cuiabá-Rio Branco. Para o caminhão; desce o diretor e instala o alto-falante.

Diretor

É aqui neste lugar que se realizará o espetáculo. Mas podia ser em outro qualquer. Os atores ainda não chegaram? (Consulta o relógio). Puxa vida, estão sempre atrasados. Mas não tem problema. Esta é uma peça que se representa por si mesma. Não carece de texto, de produtor, de artistas nem de diretor. Eu mesmo, que modéstia à parte sou diretor diplomado, sindicalizado, premiado, etc., estou aqui de xereta: adoro ver as coisas acontecendo.

Coro Feminino (longe)

É tarde, meus chuchuzinhos,

é tarde, Rita e João.

Se não forem para a cama,

desligo a televisão.

Diretor

Ouviram? É sempre assim: querem impedir as crianças de assistir aos melhores programas. Como se fosse possível espetáculo sem criança. A criança é o próprio espetáculo. Mas não tem problema. Os garotos crescem por dentro, escondidos dos adultos. Os garotos tomam conhecimento de tudo, eles participam, eles…

Natal brasileiro sem neve, 1992. Toninho de Souza (1951-2005). Da Bahia.

Coro masculino (metálico, menos distante)

Índice BV médio, 45.2 pontos, batendo novo recorde. Ações da Paraíso Terrestre S.A. em ascensão-foguete, cotadas a 287 cruzeiros. Cinco apostadores da Loteria Esportiva, que marcaram o empate de 0x0 entre Santa Terezinha de Manaus e o Inhançã de Jequié, faturaram dois bilhões – eu disse dois bilhões – eu disse dois bilhões – cada um. Hora de lucrar, lucrar: aplique bem os seus 12% do 157, indo ao…

(O coro emudece, a um gesto de impaciência do diretor, que se dirige ao caminhão e tira de lá uma caveira de boi e uma máscara de burro, para colocá-las no leito da estrada).

Sem título, 1969, Aldemir Martins (1922-2006). Do Ceará.

 Diretor

Estas é que são as melhores figuras do elenco; não falam uma vírgula, e cumprem religiosamente com sua obrigação. Vieram para serem testemunhas oculares silenciosas. (Volta ao caminhão e retira dele uma lanterna, que pendura alto, no ar, entre a caveira e a máscara. A lanterna acende-se, com brilho intenso).

Digam o que disserem, não há festa

mais simples, mais bacana do que esta.

A luz do céu entoa uma seresta

que chega ao mais profundo da floresta.

(Música de fundo. Surge à esquerda o índio Kadiuéu, assustado, trazendo espanador e chocalho).

Sem título, 1984, Antônio Poteiro (1925 – 2010). Brasileiro de Portugal.

Índio

Gó-noéno-hódi está levando suura de laço no pantanal. Gó-noêno-hódi, nosso criador, companheiro nosso. E não reage. Ele é fraco, ele é pobre como a gente. A gente acha que não que não merecemos ter um criador mais forçudo do que ele.

(Inclina-se, move o espanador e sacode o chocalho diante da lanterna, em sinal de reverência, e sai pela direita, conservando a expressão de receio, enquanto aparece do mesmo lado a Baiana, pura ondulação).

Baiana

Eu vim dançar nas sete linhas dos sete planetas, com o meu colar de sete voltas, de contas de sete cores, de roxo e de amarelo, de azul e de rosa, de verde e de vermelho e de laranja, eu vim dançar. Saravá, meu filho!

Sem título, 1972, Clovis Graciano (1907-1988). De São Paulo.

Samba diante do foco de luz, e sai pela esquerda, sambando sempre. Aparecem no centro e avançam compassadamente o Fabricante de Roupa Super, o Fabricante de Calçado Máximus e o Produtor de leite em Pó Marvellous, trazendo oferendas.

1º fabricante

Ele não pode, ele não pode ficar vestido de nuvem.

2º fabricante

Absolutamente não pode ficar calçado de espinho.

Produtor

De jeito nenhum não pode ficar alimentado de febre.

1º fabricante

A roupa que eu vou dar a ele é toda de prata mais fina de São Domingos do Prata.

2º fabricante

O sapato que eu trouxe para ele é de ouro puro da Mina da Passagem.

Produtor

O leite que eu fabriquei pessoalmente para ele é especialíssimo, tirado da Vaquinha Encantada.

1º fabricante

Primeiro ele tem que vestir.

2º fabricante

Não senhor. Primeiro tem que calçar.

Produtor

Negativo. Antes de mais nada, tem que beber. (Engalfinham-se).

 

Diretor

Que é isso?! Calma no Brasil e na América Latina! Calma no globo terrestre e no espaço sideral já ocupado. Porque o resto do cosmos deve estar tranquilo, ao que presumo. Não se pode festejar sem briga? Amar sem guerrear? (Ouve-se a cantoria que se aproxima, alegre). Mas que zoeira gostosa é essa? Que alegria é essa, que parece brotar do chão? Ah, logo vi, são as Pastorinhas que vêm dar o recado.

(Afastam-se os contendores, ainda agitando os braços, enquanto irrompem de todos os lados as Pastorinhas, formando três grupos).

1º grupo

O dia ficou mais claro,

a noite mais transparente.

O caramujo na praia

virou joia de repente.

Os três grupos

Virou joia de repente.

2º grupo

Baila, baila, baila, baila,

ô morena,

que o ribeirão levou,

que o ribeirão levou,

a tua pena.

Os três grupos

Que o ribeirão levou,

a tua pena.

3º grupo

Oi canta, meu sabiá! Oi canta, meu

[jasmineiro!

Oi canta, meu vestido novo! Oi canta,

[minha vida nova!

É hora de cantar, é hora, é hora, é hora!

Oi canta, meu povo!

Os três grupos

Vim de Santa Catarina,

do Rio Grande do Norte,

vim de Goiás, vim de Minas,

de Sergipe, de Alagoas,

de São Paulo e Pernambuco,

de Roraima roraimundo,

de pra lá do pé do mundo,

de a-pé, de a cavalo,

de avião e de trem-de-ferro,

de carona e de bilhete,

vim nadando, vim remando,

vim voando,

vim cantando,

vou cantando o amor, a paz!

(Bailam em volta da luz e retiram-se com a mesma alacridade. Aparece o Anjo Triste, de uma asa só).

Diretor

Qual é mesmo o teu papel? Eu esperava um anjo todo jubiloso, com uma trombeta radiosa.

Djanira Natividade -1968

Anjo

Ele não pode vir, está ocupado com um festival lá em cima. Então me mandou em seu lugar, sem me dar instruções.

Diretor

Devias ter chegado antes de todos, para anunciar. Agora não é mais necessário. Mas podes ficar por ai alguns instantes.

Anjo

Devia anunciar… tudo?

Diretor

Tudo, não. Claro que não se deve anunciar tudo, para que haja esperança. Apenas o começo, a alegria do começo, e o desejo de que o começo dure indefinidamente.

Anjo

Coisas bem desagradáveis acontecerão com ele.

Diretor

Eu sei.

Anjo

Ninguém pode evitá-las, parece.

Diretor

Há coisas que não podem ser evitadas.

Anjo

Se fosse possível, bem que eu gostaria de contar a todos. Pelo menos ficariam alertados, sofreriam menos depois.

Diretor

A questão é que, sem depois, nada precisava acontecer.

Anjo

Se eu ficasse mais tempo aqui embaixo… e na hora marcada o substituísse, morresse por ele…

Diretor

Isso não figura no texto, meu caro. Mas, com a devida licença, que pretensão a sua! Vamos, nem pense uma coisa dessas.

Anjo

Então volto para lá de onde eu vim. Falhei no cumprimento de minha missão. Nem ao menos vi aquilo que o boi e o burro viram: a luz acender.

Diretor (batendo-lhe no ombro)

Os anjos falham, como os homens, querido.

(Desparece o Anjo. Um pela direita, outro pela esquerda, entram os Hermeneutas, sobraçando livros, jornais, cartazes).

Natal, 1976, Lula Cardoso Ayres (1910-1987). De Pernambuco.

1º Hermeneuta

A lição dos textos é claríssima. Ele vem para instaurar a paz entre os homens.

2º Hermeneuta

Entre os homens, não. Só entre os homens de boa vontade. É claríssima a lição dos textos.

1º Hermeneuta

Ora, os outros se renderão a mansuetude de sua palavra.

2º Hermeneuta

Mansuetude? Ele pegará do chicote, expulsará os vendilhões, derrubará as mesas…

1º Hermeneuta

Vem pregar o amor.

2º Hermeneuta

Vem proclamar a justiça.

1º Hermeneuta

A justiça com misericórdia.

2º Hermeneuta

A justiça pelo combate.

1º Hermeneuta

O seu reino – atenção para este ponto – não é deste mundo.

2º Hermeneuta

Isto é muito importante: o seu reino começa neste mundo

1º Hermeneuta

Em que ficamos?

2º Hermeneuta

Ficamos na mesma. Em divergência. (Mostram-se mutuamente seus livros, jornais e cartazes, mas o Diretor os afasta para fora, com delicadeza).

Diretor

Discutem há muitos anos, sem chegar a um acordo. O espetáculo não terminaria se continuassem a falar. E querem ir além da peça. A peça é tão simples! Decerto já notaram que está faltando alguma coisa… Não, não falta. Procurem bem e haverão de encontrá-la. No texto não está escrito, ou em vocês mesmos. Aliás, tudo se passa mais dentro de nós do que nesta estrada. Há uma grande solidão, que se povoa desde que saibamos enchê-la, e, como a estrada, se enche sem que seja preciso chamar ninguém, tocar nenhum sino… Para que foi que eu trouxe este alto-falante, se não precisava?

(Voltam todos, lentamente, em silêncio, e postam-se em redor da lanterna, como no presépio. Música de fundo).

[Jornal do Brasil (Rio), 24/12/1970. Hemeroteca BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira].

 

 

 

 

 

 

 

 

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