Reflexões e versões sobre a verdade histórica: ditadura nunca mais

Rafael Jasovich*

Cultivo memória vívida e dolorosa da ditadura argentina do general Videla e seus sequazes. Sinto arrepios cruzarem o corpo de alto a baixo e tornarem minha pele áspera e arredia ao pensar na dor, no medo, na angústia e na desconfiança dos perseguidos.

Fico sem ar ao lembrar-me dos mortos, ao sentir o cheiro da terra seca e esquecida das valas sem lápide, sem homenagem e sem dignidade, e ao imaginar o quanto essas vítimas poderiam ter feito por suas famílias e por aquele país se não tivessem suas vidas violentamente ceifadas por um dos regimes mais duros e cruéis da América Latina.

Massera, Videla e Agosti, generais argentinos da junta militar que liderou o golpe de 1976. No destaque, Avós da Praça de Maio, em Buenos Aires, Argentina (Fotos: Historiandonanet)

Guardo em mim sons, toques, socos, piadas macabras e um cheiro de pólvora oriundo de cano de revólver quente que são oriundos de meus sentidos, apenas em pensamentos.

É a literatura ficcional política que permite às gerações do futuro desenvolverem os seus afetos em relação ao passado. E a nossa noção do mundo e nossos valores precisam desses afetos.

Li muito sobre a ditadura argentina e latino americana, livros de história e de política que me deram a dimensão social, conjuntural e estrutural daquele período ampliando minhas vivencias, tudo me dá a lágrima contida no canto de olho, a voz embargada e a vontade de gritar: nunca mais!

Romances moldaram e ainda moldam as minhas orientações sobre política e sobre a vida. O Brasil da crise aguda, da tristeza e do desânimo, o Brasil da polarização ainda não apareceu de forma substancial nas prateleiras de romances, dos contos e das poesias nacionais nas livrarias.

É cedo, nossa crise não acabou, e o que se já vivenciou dela ainda deve estar um tanto na mente de escritores e dos poetas, e outro bocado em originais em fase de gestação, quem sabe em clássicos a serem eternizados.

Não tenho dúvidas, contudo, de que a forma como futuras gerações vão interpretar esta fase dependerá muito mais de o que por esses artistas será contado, que pelas análises acadêmicas ou pelas matérias de jornal.

Dispensável afirmar o papel crucial tanto da imprensa quanto dos trabalhos dos estudiosos das universidades na construção da história futura sobre as mazelas de hoje.

Estes, no entanto, se perderão na necessária frieza do método se não chegarem acompanhados das obras cuja natureza as permita extravasar os limites da realidade para se tornarem ainda mais fiéis a ela.

O lado que vencer a batalha da criação dos sons, dos cheiros, dos amores e dos ódios que nunca existiram nestes nossos tempos sombrios será também o vencedor na construção narrativa do que hoje costumou-se chamar de verdade.

*Rafael Jasovich é jornalista e advogado, membro da Anistia Internacional

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