Ex “oásis” da América Latina, Chile enfrenta a “fúria popular” contra a política neoliberal com forte repressão
Rafael Jasovich*
24 mortos
22.000 detidos
2009 feridos, principalmente nos olhos, cegos
52 vítimas de violência sexual
Entre os agredidos, crianças e adolescentes
Políticos e especialistas afirmaram que o aumento da tarifa do metrô é apenas a “ponta do iceberg” dos problemas que os chilenos estão enfrentando.
A palavra “desigualdade” ganhou protagonismo nos últimos dias, com centenas de manifestantes insistindo que a diferença social entre pobres e ricos no país é excessiva.
Segundo a última edição do relatório Panorama Social da América Latina, elaborado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a parcela de 1% mais rica da população chilena manteve 26,5% da riqueza do país em 2017, enquanto 50% das famílias de baixa renda representavam apenas 2,1% da riqueza líquida.
Por outro lado, o salário mínimo no Chile é de 301 mil pesos (cerca de R$ 1.715,70 — no Brasil, é de R$ 998).
Segundo o Instituto Nacional de Estatística do Chile, metade dos trabalhadores do país recebe um salário igual ou inferior a 400 mil pesos (R$ 2.280) ao mês. Já no Brasil, como comparação, 60% dos trabalhadores (ou 54 milhões de pessoas) tiveram um rendimento médio mensal de apenas R$ 928 no ano passado, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE.
Com esse salário, os manifestantes alegam que um aumento na passagem do metrô é inconcebível. Ainda mais se considerarmos que o transporte público no Chile é um dos mais caros do mundo, dependendo da renda média.
Um estudo recente da Universidade Diego Portales aponta que, de um total de 56 países ao redor do mundo, o transporte no Chile é o nono mais caro.
Assim, existem famílias de baixa renda que podem gastar quase 30% de seu salário no transporte público, enquanto, no nível socioeconômico mais rico, o percentual de gastos nesse setor pode ser inferior a 2%.
Dessa forma, o sentimento entre os cidadãos chilenos é de que não houve resposta dos governos a um problema que se arrasta há décadas.
O aumento da passagem do metrô se soma ao aumento do custo da eletricidade, da água e da crise no sistema público de saúde.
Os protestos também têm a ver com pensões: o Chile discute há muitos anos uma reforma do sistema privatizado de previdência, que, para muitos, apresenta deficiências significativas.
“É uma mistura que não oferece esperança de tempos melhores, que é precisamente a promessa do governo Piñera. Pelo contrário, acho que as pessoas percebem que o momento é pior”, afirma.
Tanto a oposição a Piñera quanto alguns de seus aliados concordaram que o atual governo reagiu tarde às manifestações.
Os críticos afirmaram que não houve explicações claras sobre os motivos do aumento da tarifa de transporte e que houve uma “falta de empatia” com os problemas das pessoas por parte do governo.
Além disso, a oposição tem questionado as autoridades pelo fato de o governo ter ameaçado coibir os protestos usando a Lei de Segurança do Estado, sem abordar o mérito das reivindicações. Os governistas classificaram os manifestantes como “delinqüentes” por várias vezes.
Foi um protesto que começou lento, mas aumentou gradualmente de intensidade, com muitos momentos para reagir. Mas houve apenas duas respostas: tecnocracia e repressão. O painel de especialistas define a tarifa e as Forças Especiais a aplicam. Há planilhas do Excel e repressão, enquanto a política permanece cega, surda e muda
Piñera foi fortemente criticado. Enquanto várias estações de metrô estavam pegando fogo, ele foi visto jantando em um restaurante em Vitacura (um dos locais mais ricos de Santiago). Na ocasião, ele estava comemorando o aniversário de um de seus netos.
Assim, os líderes das coalizões políticas da oposição, como a Frente Ampla, começaram a criticar o presidente e seus ministros.
O governo insiste em concentrar seu discurso na crítica à violência dos protestos, mas suas ações até agora apenas contribuíram para ela. Indolência levante mais cedo para não pagar passagem mais cara, mal-entendidos (“crianças em idade escolar não têm motivos para protestar”) e repressão.
A ex-candidata presidencial da Frente Ampla, Beatriz Sánchez, disse: “Só precisamos pensar em como o Chile seria diferente se os governos ouvissem o povo antes”.
Até um ex-ministro do primeiro governo de Piñera, Harald Beyer, disse ao jornal La Tercera que o episódio “demonstrou a falta de habilidade do governo para lidar com situações como essa”.
Por outro lado, a oposição também não escapou das críticas: há quem diga que ela reagiu tarde e não fez nada para melhorar a qualidade de vida dos chilenos, além de apoiar os protestos violentos.
Há anos, os dirigentes políticos chilenos prometem melhorias na qualidade de vida dos cidadãos. Reformas educacionais, constitucionais, tributárias e de saúde foram anunciadas, mas muitas delas falharam em atender às expectativas da sociedade.
Se os primeiros governos tanto de Bachelet quanto de Piñera eram símbolos de mudança, as segundas gestões de ambos esgotaram o estoque de esperanças. Eles pegaram a retroescavadeira e enterraram os melhores tempos. Eles estavam surdos à falta de um projeto nacional, um caminho para o desenvolvimento, uma meta compartilhada que dê sentido às dificuldades cotidianas.
Além disso, é importante lembrar que Piñera foi reconhecido por sua capacidade de gerar empregos e melhorar a economia. De fato, durante seu primeiro governo, essa foi sua grande conquista.
Desta vez, as pessoas ansiavam o mesmo e, até agora, a realidade econômica ficou abaixo das expectativas da sociedade chilena.
Os recentes protestos foram liderados principalmente por estudantes
A primeira manifestação ocorreu na segunda-feira, 7 de outubro, liderada por estudantes de escolas emblemáticas, principalmente do Instituto Nacional. Este estabelecimento, fundado em 1813, foi o ponto central de organização de protestos.
Segundo Carlos Peña, reitor da Universidade Diego Portales, os excessos que ocorreram nos últimos dias no Chile são resultado, em parte, do surgimento de uma nova geração “que se manifesta com crescente intensidade”, disse ele ao jornal El Mercurio. “Não é por acaso que todas essas formas de protesto violento são realizadas por jovens”, acrescenta.
Em 2011, essa demanda cresceu e o movimento estudantil também provocou grandes protestos, pressionando o primeiro governo de Piñera.
Embora não se saiba qual será a verdadeira dimensão das atuais manifestações, os últimos dias podem ser classificados com um dos momentos mais violentos que o Chile viveu em décadas.
Apenas algumas semanas atrás, e após crises parecidas no Peru e no Equador, muitos diziam que o país sul-americano era um “oásis” na América Latina.
Agora, a situação mudou abruptamente e ninguém sabe se a “fúria” popular vai continuar.
A repressão é violenta mais de 200 chilenos ficaram cegos pelo uso de armas dos carabineros, que apontam aos olhos dos manifestantes.
Tardiamente o governo tenta controlar o ímpeto dos manifestantes que não aceitam nada mais que uma nova Constituição que lhes conceda os direitos sociais que todos têm direito – e que estão sendo subtraídos pela política econômica neoliberal de Piñera.
*Rafael Jasovich é jornalista e advogado, membro da Anistia Internacional