Pão e circo têm desde a antiga Roma. No Brasil, o pão tomaram faz tempo

Rafael Jasovich*

O futebol, enquanto a modalidade esportiva de maior apelo popular no Brasil e ao redor do globo, pode ser usado como um importante instrumento dos atores no meio político. Não apenas na busca de posições governamentais, ou mesmo de empresários e outros ‘mecenas’ do meio esportivo que visem lucro ou oportunidades de negócio. Além da existência de estruturas hierárquicas de poder internas à realidade do futebol, este mesmo pode ser parte constituinte de uma relação maior na esfera política. Mas é importante que a delimitação do que é concebido por ‘política’ seja feita de modo amplo, e não reducionista.

É possível analisar a política não apenas como um conflito entre indivíduos representados por partidos políticos visando chegar ao controle de um Estado nacional, ou mesmo discutindo as suas ações. Como já afirmado acima, esta ciência possui um objeto bem maior do que meramente o estudo do Estado ou mesmo de partidos em conflito.

Estado e sociedade civil, não importa: a partir do momento em que uma das partes for capaz de exercer influência sobre a outra, existe poder.

Uma teoria que mostra de modo claro a importância que o futebol pode tomar na disputa e posteriormente na manutenção de um Estado é, por exemplo, a do pensador italiano Antonio Gramsci. Sua teoria engloba não apenas a sociedade política, mas também a sociedade civil no processo de consolidação de um regime.

Um poder que exercesse somente coerção de modo escancarado, claro e direto não se sustentaria a não ser pela violência física como na clássica teoria Weberiana acerca do Estado. E, mesmo assim, é impossível que não houvesse uma dura contestação a este governo e, porque não, um potencial revolucionário para um levante contra o governo vigente.

Neste ponto, a hegemonia – conceito trabalhado pioneiramente por Gramsci – se faz necessária. Para que um poder se consolide, ele precisa de aceitação, pelo menos parcialmente, ou de forma aparente. Mesmo que favorecendo uma parte do todo, é necessário que um Estado pareça ser norteado pelo bem comum, e pelo coletivo, como sendo, por exemplo, um ‘país de todos’.

Através de campos e instituições focadas na própria sociedade civil, os códigos vigentes se reproduzem para os subordinados, e um consenso é propagado para que a dominação esconda um caráter hierarquizante, classista, dominante.

Os aparelhos de hegemonia se mostram em vários campos, desde escolas e o sistema de ensino até a grande mídia, lazer, e quaisquer outros meios por onde se veiculam valores, diretrizes, tendências, códigos de ética. Então, se é necessário que a hegemonia alcance basicamente todas as classes, desde a média-alta até as mais subalternas, que melhor meio de difusão, pelo menos no Brasil, do que o futebol?

A relação entre o jogo e o Estado nacional brasileiro é íntima, estreita e de longa data. O fenômeno que existe em épocas de Copa do Mundo com o povo brasileiro é notório: a idolatria construída e a identidade nacional do povo com a seleção canarinho se solidificam de modo único durante o mês de disputas do mundial da Fifa.

Um fato que se tornou tradição ao longo dos mundiais é a associação da equipe nacional com o governo vigente: desde a seleção de 1970 e o fenômeno criado pelos militares exacerbando o Brasil e o amor pela pátria através da política da ‘pátria de chuteiras’, até as mais recentes visitas à Brasília por parte da seleção nacional, e a interação com os presidentes, sejam elas de ‘boa sorte’ ou de ‘parabéns’, indo e/ou ou voltando da competição. A associação entre a glória de conquistas da seleção e dos governos nacionais é propagada de maneira quase simbiótica para o grande público quando se trata de futebol em nosso país.

Mas o futebol não tem como única inserção nos jogos de poder um aparelho de hegemonia para impulsionar a identidade nacional. O futebol possui um alcance ímpar, e desperta paixão e interesse. Assim, este pode ser um fator decisivo para influenciar a opinião de vários indivíduos e, porque não, em eleitores?

Contudo, as relações entre a ciência política e o futebol vão muito além do Estado, ou mesmo dos jogos de poder. Aliás, ultrapassam e muito as fronteiras nacionais. Ao redor do mundo as relações entre política e o futebol podem ser observadas, tanto na utilização do esporte pela política, como na busca da expressão política pelos indivíduos no meio esportivo, caso (por exemplo) de clubes europeus durante a Segunda Guerra Mundial, como o Livorno, na Itália, que sempre representou e buscou representar a esquerda e as classes proletárias, ou em contrapartida a Lazio, com uma histórica orientação da extrema direita italiana.

Ainda, é importante pensar em termos de política esportiva, estratégias para fomentar a prática da atividade esportiva, e como isso pode se tornar benéfico para os alvos destas políticas, atrelando e agregando valor para iniciativas neste sentido.

O campo de estudos é tão vasto como se pode querer. Embora assuntos que ‘não se discutem’ historicamente, política e futebol possuem tanto debate quanto se pode imaginar, separadamente ou em conjunto. Ambos possuem uma relação intrínseca que se manifesta tanto na sociedade civil como na sociedade política, e cabe aos estudiosos da área esmiuçar todas estas ligações.

A copa de 2018 não desperta interesse da população em sua grande maioria. Observando tão somente o número de carros que circulam com a bandeira do Brasil podemos dizer que não alcança 10% do total, sem fogos de artificio, sem grandes torcidas. A população se reúne para assistir, mas o maior ícone da reunião é a cerveja, já que churrasco esta difícil na atual conjuntura econômica.

Pão e circo têm desde a antiga Roma. Aqui só restou o circo o pão tomaram faz tempo.

*Rafael Jasovich é jornalista, advogado, secretário e fundador da Associação Gremial de Advogados da Capital Federal, membro da Anistia Internacional

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