“O Codema enfrentava a Vale e cobrava soluções para a poeira e outros impactos que permanecem atuais”, recorda Maria Alice de Oliveira Lage

Fotos: Carlos Cruz

Muito antes de a Constituição Federal de 1988 consagrar os direitos de todos têm de usufruir de um meio ambiente preservado, equilibrado e sadio, a professora e geógrafa Maria Alice de Oliveira Lage já militava nessa causa, difusa e coletiva, que deveria ser de todos os itabiranos e não só de poucos ativistas.

“Quem dera tivesse em Itabira mais gente participando dessa luta, que é de todos, juntamente com a turma do Comitê dos Atingidos pela Mineração”, conclama a professora, que foi a primeira presidente do Conselho Municipal de Defesa e Conservação do Meio Ambiente (Codema), atenta aos acontecimentos relevantes dessa cidade que vem sendo minerada, em larga escala, há mais de 80 anos.

Se o itabirano fosse mais participativo, acredita Maria Alice, lutaria pela causa comum contra os efeitos recorrentes e permanentes da mineração que suja a cidade, trinca residências com dinamitagem de alta potência nas minas, remove bairros e moradores sempre que é de seu interesse.

E que faz tudo isso desde os primórdios, em 1942, sob os olhares complacentes das autoridades que cruzam os braços, satisfeitos com os “gordos” (“só isso?”, já inquiriu o poeta) recursos dos royalties que prolongam a dependência econômica, sem solução à vista.

“É muita passividade”, afirma a professora ambientalista, indignada diante de tanta letargia, a mesma observada por Drummond, em 1933, em Vila de Utopia:

“A cidade não avança nem recua. A cidade é paralítica. (…) Tudo aqui é inerte, indestrutível e silencioso. A cidade parece encantada. E de fato o é. Acordará algum dia? Os itabiranos afirmam peremptoriamente que sim. Enquanto isso, cruzam os braços e deixam a vida passar. A vida passa devagar em Itabira do Mato Dentro.”

Maria Alice e Drummond são exceções, deram cada um a seu tempo o grito de alerta contra tudo isso. Hoje aposentada, cuidando de suas plantas, a professora e geógrafa permanece atenta e observadora.

Foi com esse olhar atento e crítico que ela recebeu este repórter para uma longa entrevista, na tarde de quinta-feira (2), no início deste mês em que se “celebra” o Dia Mundial do Meio Ambiente (5 de junho).

Passados todos esses anos, desde que em 1985 ela assumiu a presidência do Codema, Maria Alice faz a triste constatação de que tudo permanece como antes na cidade, sem solução, com o agravo que agora sabemos dos riscos das barragens.

“A poeira continua alta, a paisagem desolada. E ainda querem fazer mais um alteamento de Itabiruçu. Não deveriam, pelos riscos que representa”, alerta.

Confira.

(Carlos Cruz)

Para começar, quem é Maria Alice de Oliveira Lage?

Sou professora de Geografia aposentada. Sempre lecionei Geografia pela Funcesi. Eu já dei aulas de História, mas a maior parte de minha vida profissional foi lecionando Geografia. Eu me formei na faculdade de Itabira e depois completei o curso na Católica, em Belo Horizonte. Tenho licenciatura e bacharelado em Geografia, portanto sou também geógrafa aposentada.

Como foi que você se tornou uma ativista ambiental na década de 1980?

Eu sou de origem rural e sempre me interessei pelas coisas da terra. A própria escolha do curso tem a ver com esse interesse pelas plantas, com os animais, com a terra. Depois estudando fui conhecer mais profundamente essa relação do homem com a Terra e com todo os seres vivos que nela habitam.

Como professora comecei a discutir esses temas com os alunos, procurando entender toda essa relação, muitas vezes conflituosa na ocupação desordenada do solo, na exploração dos recursos naturais. A expansão urbana desordenada, esse caos que vivemos não só em Itabira, mas em todo o país eram objetos de estudos com os meus alunos.

Ainda hoje observamos que falta de planejamento e a especulação imobiliária desenfreada acarretaram muitas tragédias que enfrentamos até hoje, principalmente a população mais pobre, situação que é agravada com as mudanças climáticas.

E como foi que você virou a principal crítica em Itabira da mineração, dessa relação historicamente conflituosa da Vale com a cidade?

Acho que devo isso muito a vocês do Cometa, que abriram espaços para todas essas manifestações de inconformismo com o que há anos vinha acontecendo na cidade sem que ninguém se manifestasse, desse um grito de alerta. As reportagens que vocês publicaram chamou a atenção para essa questão ambiental e muito me tocou. Depois veio o Encontro Nacional de Cidades Mineradoras, em 1984, juntamente com o Fórum de Debates das Alternativas Econômicas para Itabira, e a pauta ambiental começou a se fazer presente na cidade.

Cuidando do jardim de sua casa, e mesmo aposentada, Maria Alice não deixa de se preocupar com o que ocorre na cidade. E fica triste ao ver que os impactos da mineração permanecem os mesmos do século passado

Foi quando você teve um embate com o então superintendente da Vale Juarez Fonseca. Como foi isso?

Eu não pude ficar calada quando ele disse em público, no Encontro de Cidades Mineradoras, em 1984, que a poluição do ar em Itabira era insignificante, que o problema da poeira estava solucionado e que a grande causa dos pernilongos que infestavam a cidade, vindos das barragens, era por culpa das donas de casa que não limpavam os quintais.

Indignada, fui à frente, peguei o microfone, e contestei a sua afirmação, mostrando que a realidade era outra, que Itabira não suportava tanta poluição do ar, como temos até hoje, só que os dados naquela época ainda não eram divulgados. A população sentia na pele, nas vias aéreas superiores, com as doenças respiratórias.

Só mais tarde, com os inquéritos civis abertos a pedido de vocês do Cometa ao doutor Bevilácqua (José Adilson Marque Bevilácqua, já falecido, que instaurou os primeiros inquéritos ambientais no país com base na recém-promulgada Lei Federal 7.347, de 24 de junho de 1985, instituindo a ação civil pública e que ainda está em vigor), a empresa foi obrigada a divulgar os dados do monitoramento que vinha fazendo sem tornar público. Foi quando a cidade ficou sabendo que os índices extrapolavam em muito o que era admitido por uma recomendação da Organização Mundial da Saúde.

Foi nesse contexto que surgiu o Codema e você assumiu a sua presidência, cargo que exerceu por muitos anos. Como foi isso?

Os impactos da mineração, a degradação paisagística, a poeira, as detonações, tudo isso entrava na pauta das reuniões do Codema (Foto: acervo IBGE)

Sim, o conselho municipal de meio ambiente foi uma das recomendações dos prefeitos das cidades mineradas reunidas no Encontro Nacional de Cidades Mineradoras, e que foi prontamente acatada pelo ex-prefeito José Maurício Silva (1983-88). Com o Codema demos apoio aos inquéritos do doutor Bevilácqua, eu mesma depus nos inquéritos e confirmei todas as denúncias formuladas pelo Cometa, inclusive o desmatamento que foi feito pela Florestas Rio Doce, que suprimiu uma grande área de mata nativa para plantar eucalipto.

 Foi assim que os impactos da mineração sobre o meio ambiente viraram assuntos muito presente em nossas reuniões, resultando em muitos embates com os representantes da Vale. A empresa não tinha sequer um departamento para cuidar do meio ambiente. A partir daí foi criado uma sessão que depois virou gerência de Meio Ambiente, Eustáquio Mendes foi o primeiro gerente.

Tinham os representantes da comunidade muitos ativos e que cobravam solução não só para pôr fim à poeira, mas também em relação à poluição das águas, das nascentes que foram secando, dos danos paisagísticos que perduram até os dias de hoje. Cobrávamos também solução para as detonações que até hoje causam danos à vizinhança, abalando as estruturas das residências, trincando as paredes das casas. Teve até “chuva” de pedras de minério caindo na Vila Paciência depois de uma detonação sem controle na mina de Chacrinha.

Além dos impactos da mineração, o que mais o Codema debatia e cobrava?

Poeira em Itabira permanece sem solução à vista: “sofre a população com a sujeira e as doenças respiratórioas.”

Anos depois, já no governo de Luiz Menezes, passamos a discutir com a Paula (Menezes, filha do prefeito e então presidente da Itaurb) a implantação da coleta seletiva na cidade, o que de fato ocorreu e chegou a ser referência no país.

A coleta seletiva ficou por um tempo deixada de lado, até por conta da pandemia, mas agora voltou e tenho observado que está melhorando. Mas ainda falta uma ampla campanha junto à população que, me parece, andou se esquecendo de como se faz a segregação dos resíduos domiciliares.

Naquela ocasião, no fórum de debates, que depois virou permanente por muitos anos, o Codema e a Prefeitura trouxeram a Itabira autoridades no assunto e tudo isso foi discutido e depois implementado pela Paula Menezes, com muita competência. Mas há muito que melhorar na gestão de resíduos na cidade.

A população já não está tendo o comportamento adequado não só com os resíduos recicláveis, mas também com o orgânico. Deixam os sacos com lixo nos passeios fora de hora, não facilitam o trabalho dos garis, que andam correndo atrás do caminhão, um trabalho perigoso e insalubre.

Tem que ter respeito com esses trabalhadores, acondicionar adequadamente os resíduos. É mais que nossa obrigação, é respeito aos coletores, para que não sofram acidentes. Falta educação ambiental em Itabira, antes era uma condicionante da Vale. Hoje nem mais tem o Centro de Educação Ambiental. A Prefeitura também promovia educação ambiental nas escolas e nas comunidades. Tudo isso era sugerido e cobrado pelo Codema

E o aterro sanitário, como você vê? Estão fazendo a coisa certa?

Atualmente não sei, mas vi fotos de animais em meio aos resíduos. Isso é muito sério, não pode. O lixo gera um resíduo que é altamente poluente, o chorume, que se não for bem tratado polui os cursos d’água, inclusiveos cursos d’água que abastecem a estação de tratamento dos Gatos. Antes era um lixão, virou aterro com uma condicionante da Vale. É preciso ter um manejo correto para não poluir os cursos d’água e não encurtar a sua vida útil.

E a questão da falta d’água na cidade enquanto tem em abundância nas minas?

Também era um tema sempre presente em nossas reuniões e no fórum de debates. Vieram também especialistas em água, descobrimos que para extrair o minério, a Vale não só secava as nascentes, mas também rebaixava o aquífero, comprometendo todo o abastecimento na cidade.

Uma das primeiras correspondências do Codema foi para alertar a Vale para os impactos decorrentes do rebaixamento dos aquíferos. Foi quando ela enviou o hidrogeólogo Agostinho Sobrero à Espanha para conhecer o que aconteceu por lá, onde a mineração. assim como faz em Itabira, afetou o abastecimento nas cidades.

Foi quando disseram que a Vale passou a proteger os aquíferos, não sei se foi de forma satisfatória. Só sei que a questão da água é seríssima e que agora vão buscar essa alternativa de captar no rio Tanque. Pelo menos agora é a Vale que vai pagar, antes queriam que a população pagasse. Se bem que a Vale vai ficar com boa parte dessa água…

A Vale dizia, no início deste século, que Itabira não precisava buscar água do rio Tanque, pois teria em abundância dos aquíferos assim que exaurissem as Minas do Meio. Agora decidiu jogar rejeitos nas cavas exauridas e Itabira perdeu esse “legado”.

Pois é, teve tudo isso, eu me lembro. A mineração ficava, como ainda fica, com a água de classe especial, enquanto a cidade é abastecida com uma água que precisa de muito tratamento para ser consumida, com vários tipos de poluição provocados pela mineração, como é o caso do excesso de manganês nas barragens e mesmo nos cursos d´água remanescentes.

A Vale vai ficar com o excedente da água do rio Tanque, a demanda de Itabira é por mais 200 litros por segundo. Serão captados 600 l/s. A Vale é muito boazinha…

Para se ver como os problemas persistem até hoje sem solução. Há quanto tempo que Itabira discute novas fontes de suprimento de água? Se essa era a melhor alternativa, deveria ter sido viabilizada há muito tempo.

Queimadas e incêndios florestais agravam as doenças respiratórias, juntamente com a poeira de minério

Quais os outros problemas que vocês enfrentavam na cidade, além dos impactos da mineração?

Tinha, como ainda tem, a questão sanitária, a falta de rede de esgoto em muitos bairros, a questão da água que já citei, as ameaças das barragens que a gente já se preocupava, não na dimensão do risco que hoje conhecemos com as tragédias, com as mortes e destruição ambiental em Mariana e Brumadinho.

Há ainda a questão das queimadas e dos incêndios florestais. Falta também campanha para conscientizar as pessoas para deixarem de fazer queimadas, de provocar incêndios florestais e não cometerem crimes ambientais. Temos também que enfrentar o problema das queimadas.

Li uma entrevista do tenente Marlon Pinho Medeiros, do Corpo de Bombeiros, na Vila de Utopia, em que ele diz que Itabira é campeã na região em queimadas e incêndios florestais, que são em mais de 90% criminosos, provocadas pela ação humana.

São tantas ocorrências que o destacamento dos bombeiros não consegue atender e o fogo queima até destruir toda a vegetação e mata os micro-organismos que vivem no solo, degradando-o ainda mais, além de matar a fauna, os ninhos e afugentar os pássaros.

No governo passado, o então presidente do Saae dizia que Itabira tratava 80% do esgoto urbano…

Não trata nem a metade. Falta construir a ETE-Pedreira e a gente vê que tem muito esgoto ainda sendo lançado diretamente nos córregos da Penha, Água Santa, Rio de Peixe. Itabira tem a obrigação de tratar 100% de seu esgoto, com redes apropriadas, respeitando o meio ambiente e dando dignidade à população.

Esse empréstimo que o prefeito está querendo fazer, se for mesmo para levar rede de esgoto a muitos bairros que ainda não tem, sou a favor. É inadmissível que Itabira ainda tenha ruas com esgoto correndo a céu aberto.

Como você vê a atuação do Codema hoje, quando fica praticamente com a atribuição de licenciar atividades de menor impacto ambiental, as chamadas classes 1 e 2 e quase não debate e toma providências em relação aos impactos da mineração?

Mesmo sendo a legislação federal, o Codema não pode deixar de lado essa questão, pois afinal afeta a vida de quem aqui mora, colocando em risco até mesmo as nossas vidas. Além disso, é obrigação das autoridades municipais cuidarem da segurança, da saúde, integridade e bem-estar da população.

Observo com tristeza esse abandono, mas observo que o assunto começa a ser pautado novamente, agora com o Denes (Martins da Costa Lott, secretário municipal de Meio Ambiente) na presidência. O tema tem voltado às reuniões e espero que tenha continuidade, pois o órgão ambiental municipal não pode permanecer omisso à essas questões relacionadas aos impactos da mineração.

Você concorda com a atual organização do Codema, que passou a ser deliberativo e o cargo de presidente virou atribuição exclusiva do secretário de Meio Ambiente?

Eu acho que perde legitimidade. O Codema era mais representativo quando o presidente era escolhido entre os conselheiros, geralmente algum representante da sociedade civil organizada. Seria interessante mudar o regimento, rediscutir as atribuições e as representatividades, para que a população dos bairros também tenha mais participação. Afinal, são os moradores que mais sofrem com os impactos ambientais, não é mesmo?

Que o Codema tenha na presidência uma pessoa dinâmica, comprometida e engajada. E que a Prefeitura fiue com a secretaria executiva, acate e implemente as deliberações, realizando as fiscalizações para saber se a legislação ambiental está sendo observada.

O Codema pode continuar com os licenciamentos de classe 1 e 2, e até mesmo de outras atividades mais impactantes, mas não pode se esquecer que a sua grande missão é cuidar do meio ambiente na cidade de uma forma global, o que envolve a mineração, que é a principal fonte de poluição.

Leia nesta terça-feira a segunda e última parte da entrevista com Maria Alice de Oliveira Lage:

– Balanço da mineração e meio ambiente nos últimos 80 anos;

– Mineração e as barragens de rejeitos. Maria Alice vê risco no alteamento de Itabiruçu

– A questão das Zonas de Autossalvamento e a insegurança dos moradores, não só dos bairros Bela Vista e Nova Vista, mas de toda a cidade;

– Como a mineração afetou o clima em Itabira. A poeira e as doenças respiratórias;

– A omissão das autoridades, a aletargia dos itabiranos. Diga não às perfumarias, cobre o que é de direito, não aceite esmolas.

Leia na Vila de Utopia, na “celebração” da Semana do Meio Ambiente, a segunda parte da entrevista com a professora e ambientalista Maria Alice de Oliveira Lage:

“A barragem de Itabiruçu não devia ser mais uma vez alteada, pelo risco que representa”, diz Maria Alice de Oliveira Lage

 

Posts Similares

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *