“A barragem de Itabiruçu não devia ser mais uma vez alteada, pelo risco que representa”, diz Maria Alice de Oliveira Lage

Fotos: Carlos Cruz

Nesta segunda e última etapa da entrevista, a professora Maria Alice de Oliveira Lage, primeira ambientalista de Itabira e ex-presidente do Conselho Municipal de Defesa e Conservação do Meio Ambiente (Codema), discorre sobre as barragens e os riscos que elas representam para a população que vive abaixo dessas estruturas, como também sobre os demais impactos da mineração, que se arrastam desde sempre sem que se encontre solução.

Ela cobra, por exemplo, que a Vale invista quantia vultosa, como faz no porto de Tubarão (ES), para diminuir de maneira significativa “o pó preto” de minério que é lançado sobre a cidade, agravando a saúde da população. Para a ambientalista itabirana, já passou da hora de a mineradora dar início à reabilitação de áreas mineradas, a exemplo da serra do Esmeril, que teve toda a sua vegetação suprimida na década de 1980.

Confira

(Carlos Cruz)

Atualmente, o que mais preocupa em Itabira são as barragens de rejeitos. Como você vê?

Com muita preocupação, principalmente depois que a Vale anunciou que vai, mais uma vez, altear Itabiruçu. Assusta muito e faço ideia como estão preocupadas as pessoas que moram abaixo. Porque não importa se a barragem foi construída a montante ou a jusante. Estão todas a montante dos principais bairros de Itabira, são 16. Itabira é a cidade com o maior número de barragens de mineração no país.

Depois do que ocorreu em Mariana e Brumadinho, com as mortes e destruição do meio ambiente, ninguém tem mais confiança nos relatórios que a empresa apresenta. Córrego do Feijão estava com a certificação de segurança de nível internacional, inclusive iam fazer uma intervenção na estrutura, parece que tirar o rejeito para reaproveitamento. E já se sabia que a estrutura não era segura.

As principais barragens da Vale em Itabira, todas a montante da cidade (Imagem: ANM)

Quais as barragens que mais te preocupam em Itabira?

Eu tenho receio muito grande com a barragem de Conceição (Zé Cabrito), ela talvez seja a mais perigosa e está acima das estruturas operacionais da empresa e é ameaça a muitos bairros…

Inclusive ao bairro Conceição, que já foi do Meio, e à Vila Técnica Conceição, que já foi dos engenheiros da Vale e hoje é dos novos ricos de Itabira.

Sim, mas Santana com o seu imenso reservatório de água, Pontal com os seus diques, e Itabiruçu, voltando com o alteamento, também preocupam. Na minha opinião, Itabiruçu não deveria ser alteada pelo risco que representa. A questão é o solo onde ela foi instalada, muito argiloso. Por mais que eles tenham um monitoramento apurado, nem sempre conseguem constatar os riscos.

 Pequenas fissuras, que nem sempre são detectadas, podem colocar em risco a sua segurança e a vida das pessoas. Depois de alteada, li que o volume total de Itabiruçu será de 500 milhões de metros cúbicos de lama de rejeito e muita água. Eu assustei com isso. O risco é muito grande. Já teve um problema lá em 2019, com o surgimento de fissuras no novo barramento, tanto que tiveram que paralisar as obras. É um sinal de alerta.

E tem as chamadas Zonas de Autossalvamento, com legislação que proíbe a expansão urbana nessas áreas.

É o que o pessoal do Comitê Popular dos Atingidos pela Mineração chama de alto risco de morte e eu concordo com eles. Essa turma é bem ativa, gosto muito da atuação deles, precisaria ter mais apoio da população. Santana está tendo um reforço, mas acho que precisam adotar outras medidas para proteger a população de Santa Maria.

Mineração em larga escala completa 80 anos em Itabira. No alto, à direita, a barragem de Conceição (Zé Cabrito)

A Vale diz que se não altear Itabiruçu, não vai ter como continuar processando itabiritos nas usinas Conceição.

A Vale precisa parar de fazer chantagem com Itabira. Ela que busque alternativas, como já está buscando, pois ela é a primeira a não querer o fim da mineração em Itabira enquanto tiver minério de ferro lavrável. Essa velha chantagem não cola mais.

Eu li há pouco tempo um artigo de um professor que diz que a mineração, antes mesmo de começar, já tem de começar a se preparar para a exaustão, com as reabilitações necessárias.

Isso aqui não aconteceu e agora, como tem feito todos os anos, a Vale informa que vai prolongar a vida útil das minas de Itabira. E assim vai protelando a discussão e as medidas necessárias para o descomissionamento das minas. Muita coisa já poderia ter sido realizada, se houvesse pressão dos políticos e da população, além de vontade política da Vale em atender as legítimas reivindicações de Itabira.

Barragem do Itabiruçu, que vai ser mais uma vez alteada, tornando-se a maior de Itabira

A empresa tem prazo até junho para informar à Agência Nacional de Mineração como vai garantir a segurança de quem vive nas zonas de autossalvamento.

Não vai ser fácil, todas as alternativas são complicadas. É um dilema muito grande que a cidade vive e que nem todos estão conscientes. Essa lei federal veio dar uma mexida muito grande, sinal de que é preciso prestar mais atenção, aqui em Itabira, com a segurança das barragens.

Eu não sei se a Vale apresentar um certificado de que as estruturas foram reforçadas e estão seguras, a população vai acreditar. Todas as barragens que romperam em Mariana e Brumadinho tinham atestados de estabilidade em dia. E a população dessas comunidades estão sofrendo até hoje, vivendo na insegurança.

A Vale precisa ser transparente. Não dá para deixar os moradores dos bairros Bela Vista e Nova Vista sem saber se serão removidos e quando isso acontecerá. Não são casas que serão removidas, são pessoas que têm seus laços afetivos, os seus relacionamentos de muitos anos. E tem a desvalorização dos imóveis que vão continuar. Aliás, todos os imóveis que estão na rota da lama foram desvalorizados.

A legislação obriga as mineradoras apresentarem, a cada cinco anos, planos atualizados de encerramento das minas. Cadê esses planos?

Pois é, falta transparência e informação. Isso é respeitar a comunidade, mas é também cumprir a lei. A sociedade itabirana tem o direito de saber o que a empresa está planejando fazer. Não é só o direito de ser informada, mas de participar das discussões das alternativas, como é o caso da reabilitação da serra do Esmeril.

Início da mineração na serra do Esmeril, na década de 1980, atrás do grupo escolar Major Lage. A mata nativa foi toda suprimida para dar início à extração mineral (Foto: acervo IBGE)

O problema é que não há interesse, poucos cobram em Itabira. A associação comercial é omissa, os sindicatos também.

Infelizmente, falta essa participação, essa cobrança. As pessoas têm os seus interesses e acabam omitindo por medo de ser demitido ou de um parente perder o emprego ou deixar de prestar um serviço. Falta consciência coletiva e cobrar mais. Infelizmente a economia fala mais alto.

Como a mineração, com a supressão das matas e descaracterização paisagística, afetou o clima em Itabira?

Hoje se fala muito em mudanças climáticas, isso já vem afetando Itabira há muitos anos. Os danos não são só paisagísticos, são muito mais graves. São os assoreamentos dos cursos d’água que aconteceram até a construção das barragens, mas que continuam acontecendo, por exemplo, quando a Vale libera mais água e lama das barragens, como vimos descendo no rio de Peixe, em direção ao bairro Gabiroba.

Impacta com a eliminação das nascentes e a consequente mudança dos regimes hídricos. É o que vai acontecer também em Belo Horizonte se for liberada a mineração na serra do Curral. As florestas, mesmo os galhos secos, funcionam como esponjas e ajudam manter a umidade e a recarga dos aquíferos. Tudo isso foi prejudicado em Itabira.

Muda também o regime das chuvas, altera todo o clima, não é mesmo?

Sim, é o que podemos observar em Itabira, que já não tem o mesmo clima de anos atrás. Eu vou fazer 78 anos, sou apenas dois anos mais nova que a Vale, e vi acontecer todas essas alterações em Itabira, com a supressão da vegetação do Cauê, Esmeril e Conceição.

Foi modificado o clima na cidade, a distribuição das chuvas e temos o aquecimento que há muito já sentimos na cidade. Na verdade, temos os extremos, uma hora faz muito calor, depois no inverno e mesmo antes, temos muito frio, é difícil prever.

Inclusive observo mudanças na floração das plantas, que estão diferentes. Uma hora adianta, no outro ano atrasa. Os ipês estão desorientados. Normalmente eles florescem no final de julho, início de agosto. Já teve ipê florescendo neste ano e isso tem ocorrido até duas vezes no ano, o que para mim é uma novidade.

Observo essa mudança não só no meu jardim, mas também na cidade. A flor de seda ainda não se abriu em meu jardim. Se altera o clima, muda o comportamento das plantas.

Maria Alice observa as mudanças climáticas pelo comportamento de suas plantas em seu jardim

Mudou também a velocidade dos ventos que levantam mais poeira. Concorda?

Sim, esse vento que vem de Santa Maria encontrou caminho livre passando pela mina do Cauê e levanta mais poeira quando encontra solo exposto e pilhas sem vegetação. Isso fez aumentar em muito a poluição do ar na cidade, o que ocorre também com o vento que levanta poeira na mina Conceição.

Nós estamos ainda no outono e podemos ter um inverno mais rigoroso. A saúde da população vai agravar com todo esse “pó preto” despejado na cidade. Muitas vezes isso ocorre durante à noite com ventos fortes e a população não vê por estar dormindo.

Quando li a notícia em seu site que a Vale vai investir R$ 4,6 bilhões para acabar com o pó preto no porto de Tubarão, pensei: por que não investir esse tanto também em Itabira?

É porque em Itabira as autoridades não cobram.

Se cobram, é muito pouco, com multas que a empresa não paga. Se a Vale tivesse feito a reabilitação de áreas degradadas e já mineradas, como está no acordo ambiental de 1993 firmado com o Ministério Público, possivelmente o volume de poeira despejada hoje na cidade seria bem menor.

A professora Ana Carolina (da Unifei) explicou muito bem os riscos e agravos provocados pela poeira de minério em Itabira. Achei muito interessante as explicações que ela apresentou de forma muito didática.

Nesses anos todos, nem sequer um pedido de desculpa a empresa apresentou à Itabira pela sujeira que provoca, um impacto de vizinhança muito grande.

Pois é, isso sem falar nas doenças respiratórias, que oneram o cofre público com o atendimento à população nos postos de saúde. Ficamos com as migalhas e damos viva como se fosse um benefício da empresa com a cidade.

Como podemos pensar no turismo com uma paisagem tão degradada dentro da cidade. Aqui poderia ter um museu da mineração bastante expressivo, que mostre a realidade do passado e do presente, para servir de exemplo de de como não se deve minerar.

É preciso também aprofundar os estudos epidemiológicos iniciados pela equipe do professor Paulo Saldiva, da USP, e que não foram conclusivos.

Faltaram dados para entender melhor as implicações do “pó preto” com o agravo das doenças respiratórias. Mas isso já pode ter continuidade agora que estão monitorando as partículas inaláveis (PM-10) e as respiráveis (PM-2.5). Antes diziam que o “pó preto” ficava retido nas vias aéreas superiores, mas será isso mesmo?

Temos também que enfrentar o problema das queimadas. Li uma entrevista do tenente Marlon Pinho Medeiros, do Corpo de Bombeiros, em que ele diz que Itabira é campeã na região em queimadas e incêndios florestais, que são em mais de 80% criminosos, provocadas pela ação humana.

São tantas ocorrências que o destacamento dos bombeiros não consegue atender e o fogo queima até destruir toda a vegetação e matar os micro-organismos que vivem no solo, degradando-o ainda mais, além de matar a fauna, destruir os ninhos e afugentar os pássaros.

Para se projetar uma cidade sem mineração, é preciso diminuir o “pó preto” desde já. Quem vai querer investir em uma cidade se a poeira pode inviabilizar o seu negócio ou mesmo a saúde de quem vem aqui trabalhar?

Quem sabe o projeto de uma cidade sustentável que o prefeito diz que está negociando com a Vale contemple essas questões?  Sem resolver esses problemas, a degradação paisagística, os tremores, a poeira, não haverá uma cidade sustentável nem mesmo na propaganda oficial.

Aliás, mineração não pode ser considerada uma atividade sustentável, se ela é finita. Como garantir às gerações futuras as riquezas atuais, se as reservas já estão prestes a exaurir?

É verdade, as gerações futuras ficarão sem usufruir dessa riqueza e corre o risco de ficar só com os buracos, sem perspectivas econômicas sem a principal fonte de trabalho e renda.

Ainda em relação ao desmatamento, temos também os impactos sobre a fauna.

Sim, a mineração afugenta os animais, os pássaros. Quantos existiam em Itabira e desapareceram? Foram muitas espécies que povoavam quando era abundante a Mata Atlântica e os fragmentos de campos rupestres, com as canelas de ema, muitas orquídeas.

Com a sua atuação no Codema, você conseguiu preservar um fragmento importante de Mata Atlântica na serra do Esmeril, hoje chamada de Mata da Maria Alice. Como foi isso?

A Vale disse que ia suprimir toda a mata para aumentam uma pilha de estéril. Ficamos preocupados com isso. E como havia uma promotora muito atuante, recorremos a ela. Reunimos com a Vale e mostramos que o volume de material estéril que seria depositado no local era muito pouco e não justificava o desmatamento.

O nosso argumento prevaleceu e a mata foi preservada, assim como também as nascentes que seriam suprimidas. Hoje a mata é lugar de refúgio de pequenos animais e de pássaros. Quando há pressão da sociedade a empresa age, mas sem isso, faz o que quer. Não se pode ficar omisso em relação à remoção compulsória de moradores, diante da poeira, da destruição de nascentes, o rebaixamento e soterramento dos aquíferos.

Mata da Maria Alice, na serra do Esmeril: vegetação nativa foi preservada pela ação do Codema e do Ministério Público

O que mais intriga é o silêncio das autoridades e da maioria da população. Se contentam com esmolas e deixam de cobrar o que é de direito e é devido à cidade.

É preciso não só gritar, mas também agir. E isso historicamente não tem acontecido na cidade, o que é uma pena. É preciso tomar uma atitude firme. Há quantos anos estamos discutindo tudo isso e nada de impactante acontece no sentido de mudar essa relação, permanece tudo como estava há décadas, os problemas são os mesmos…

Quase nada mudou, a não ser as “perfumarias” como as áreas de lazer da LOC, a maioria já degradada, e as unidades de conservação implantadas pela metade, sem que a Vale assumisse os compromissos firmados com os órgãos ambientais, como é o caso do parque Ribeirão de São José.

Somente com pressão popular, como ocorreu na audiência pública que antecedeu a LOC, esse quadro pode ser mudado. Sem isso, vamos continuar satisfeitos com os presentinhos da Vale. Espero que o prefeito consiga negociar projetos impactantes e estruturantes que mude essa realidade.

Mas isso não vai acontecer com tapinhas nas costas e em reuniões de gabinete. É preciso também envolver e engajar outros segmentos. Foi o que pressionou a Vale nas negociações da LOC. E que precisa voltar a acontecer com mais frequência, antes que o minério acabe.

Com a exaustão a cidade perde a sua força de reivindicar o que é de direito, pois não haverá mais nada a oferecer à empresa, que pode repetir tudo isso em outras cidades. Itabira não é um bom exemplo de mineração responsável a mostrar. Pelo contrário, é um mau exemplo.

Leia a primeira parte da entrevista com a professora e ambientalista Maria Alice de Oliveira Lage aqui:

“O Codema enfrentava a Vale e cobrava soluções para a poeira e outros impactos que permanecem atuais”, recorda Maria Alice de Oliveira Lage

 

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