Na real, pelo simulado quase ninguém escaparia da lama se uma barragem rompesse de fato e não de ficção
Carlos Cruz
Quando a sirene da Vale apitou, às 15h de sábado (17), avisando que o simulado de rompimento de barragem tivera início – e que todos deveriam sair de suas casas como se a lama de rejeitos estivesse chegando em alta velocidade, a dona de casa Ruth Alves nem prestou atenção – estava na cozinha coando o café da tarde e por lá permaneceu por algum tempo.
Mas o seu marido, o vidraceiro Antônio Matilde estava atento, esperando na janeila pela anunciada sirene. “Soou quase um zumbido, foi bem baixinho”, queixou-se – e foi avisar a mulher para saírem logo para o ponto de encontro onde, garantiram “as moças-laranja”, a lama que mata não chegaria.
Ruth quis terminar o café. Mas, de pronto, Matilde retrucou: “Vamos fazer direito (o simulado), como se fosse verdade”. E assim fizeram.
Da rua Joaquim Valadares, no bairro Nova Vista, onde moram bem rente do cordão que segura o rejeito, até o ponto de encontro na rua João de Oliveira, na curva onde começa a descida para o bairro Jardim das Oliveiras, eles levaram 30 minutos.
Com o atraso na saída, só chegaram às 15h45. Ou seja, se não fosse ficção, mas de fato uma corrida contra a morte, eles não se salvariam. “Não deu para correr, o morro é muito pesado”, queixou-se a dona de casa, cansada com a subida. “Eu confio só em Deus. Só Ele nos salva.”
Uma jovem que passava ao lado sugeriu: “A Vale bem que podia abrir uma academia de ginástica pra gente. Só com muito exercício vamos conseguir escapar com vida”.
Disse isso e seguiu para o ponto seguro, onde empregados da Vale e da Defesa Civil os aguardavam como quem os esperam de uma maratona, vitoriosos na corrida contra a lama fictícia – mas que já matou muita gente em Minas Gerais, ainda impunemente.
“Esse simulado foi só circo, não teve nem pão com salame com refrigerante. Ia ser muito mais divertido se tivesse essa recompensa para quem chegou ao ponto seguro”, queixou-se o estudante Edson Madeira, que reclamou da falta de oportunidades de emprego para o jovem – e também de lazer, pois nem o parque das Acácias existe mais no bairro.
Moradores acham que se tem perigo, a Vale tem de retirar quem quer sair
Na parte alta da rua João de Oliveira, a conversa entre amigos só podia ser o simulado no bairro Nova Vista. José Soares da Cruz, aposentado, acha que, se há perigo, todos devem treinar que é para aprender a correr da lama.
Mas ele mesmo vai ficar quieto em casa, pois onde mora o rejeito não chega. “Só vou sair depois com segurança, para ver se posso ajudar em alguma coisa.”
Ao seu lado, a também aposentada Luzia Gonçalves achou o simulado uma brincadeira de gente adulta com participação também de crianças. “Eu é que não vou sair correndo. Já cansei de correr na vida.”
Mas ela se preocupa com a segurança de quem vive na parte baixa do bairro Nova Vista, rente à barragem. “Tem muito idoso morando por lá. Se há perigo, como a própria Vale diz que tem, acho importante a ‘Companhia’ tirar todo mundo de lá”, solidariza-se.
Condicionante
É essa remoção que reivindica o Comitê Popular dos Atingidos pela Mineração em Itabira e Região, que exige junto ao Ministério Público o cumprimento da condicionante 46 da Licença de Operação Corretiva (LOC), aprovada em 2000, pela Câmara de Mineração, do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), concedendo licença para a Vale continuar minerando no complexo de Itabira.
A condicionante trata do reassentamento populacional, ”como medida preventiva a toda intervenção futura do empreendimento que implicar riscos às famílias”.
E é o que tem reivindicado a aposentada Maria José de Araújo, assim que rompeu a barragem 1 da mina de Córrego Feijão, em Brumadinho. Desde então não tem sossego.
Ela foi uma entre os 37 participantes da reunião preparatória ao simulado, sábado pela manhã no clube Real, com moradores da Vila Técnica Conceição, Conceição de Baixo, Ribeira, Rio de Peixe.
Maria José mora no bairro Conceição de Baixo, a menos de três quilômetros da barragem do Zé Cabrito (Conceição). “Se a lama descer, não tem como fugir”, assusta-se.
“Não tem que esperar chegar ao nível 2 para nos retirar de lá. Se tem risco a ponto de ter de impedir que se trabalhe abaixo da barragem e desativar o presídio, os moradores também têm que ser retirados”, diz ela, que participou do simulado com uma tarja preta no braço “em sinal de protesto pacífico”.
“Não teremos tempo de fugir. A rota de fuga nos manda de encontro da lama”, ela critica o manual de autossalvamento apresentado pela Defesa Civil. “A vida tem que estar sempre em primeiro lugar e não é brincadeira de simulado.”
A ativista do Comitê Popular teme até mesmo pelo descomissionamento (fechamento com medidas ambientais e de segurança) da barragem Conceição.
“Qualquer intervenção pode pôr em risco estrutura e danificar a barragem”, afirma Maria José, que, com razão, não quer continuar vivendo com a sua família abaixo de uma estrutura que ninguém sabe até que ponto é segura. “Nem a Vale já atesta a sua total segurança”, comenta a aposentada.
Experiência
Também moradora do bairro Conceição de Baixo, Divina Elizabeth da Cruz Macedo acredita que a remoção dos moradores é a única medida preventiva a se fazer – e não o simulado, que para ela representou quase nada.
Segundo a moradora, para se fazer a remoção, que tem de ser negociada com cada morador e não compulsória, a Vale tem experiência em desapropriar territórios. “Quando foi de seu interesse, ela ‘desapropriou’ e removeu a comunidade do Rio de Peixe, do Explosivo, da Camarinha e tantos outros bairros”, recordou.
“Quando foi de seu interesse, ela agiu rapidamente. Se corremos riscos, porque temos que ficar se queremos sair? Por que não fazer uma nova vila para a gente morar?”
Declaração
De acordo com recente resolução da Agência Nacional de Mineração (ANM), a remoção de moradores das chamadas zonas de autossalvamento (ZAS), ou do “salve-se quem puder”, deve ocorrer quando a estabilidade de determinada estrutura atinge o nível 3.
Mas para a Defesa Civil de Minas Gerais a remoção já deve ocorrer quando é atingido o nível 2. Em Itabira, todas as estruturas estão com as declarações da condição de estabilidade em dia, exceto a barragem do Pontal, uma vez que o dique 2 se encontra no nível 1, mas “sob controle”.
Já o Ministério Público, segundo a promotora Giuliana Talamoni Fonoff, encaminhou o pedido de remoção, formulado pelo Comitê Popular dos Atingidos pela Mineração, para ser avaliado pela assessoria técnica da Curadoria de Meio Ambiente. Isso para que seja avaliada a possibilidade de se fazer cumprir a condicionante 46 da LOC.
Se o laudo for positivo, deve ser proposta uma nova ação civil pública contra a mineradora. Isso se antes não for firmado um Termo de Ajustamento de Conduta, no caso de ser considerado válido o cumprimento da referida condicionante por ameaça de rompimento de barragem – e da vida de moradores.
Casal se separaria no pé do morro se a lama fosse real
A dona-de-casa Juliana dos Santos Lima, grávida do segundo filho, chegou muito cansada no ponto de encontro. Saiu da rua das Flores, quase ao pé do cordão Nova Vista, seguindo o caminho indicado pela Defesa Civil. Mas ela avalia que teria sido melhor se tivesse seguido em direção ao bairro Bela Vista.
Mas como era treino, optou por seguir o marido Edson Moraes, empregado de uma empreiteira da Vale, que fez o percurso carregando nos ombros o filho Bruno, de 5 anos. “Eu pegaria o meu filho e seguiria outro rumo. Já fiz os dois caminhos e esse morro que eles indicaram pra gente fugir é muito pesado.”
Juliana discorda também do marido quanto à visão que eles têm do cordão Nova Vista. Para o marido, a estrutura é segura. “Até aonde a vista alcança, me parece bem seguro com o reforço que fizeram. Mas não sei se tem infiltração do outro lado”, ressalva.
Já a sua mulher não se sente tão segura. Desconfiada, ela recorda que no passado a lama passou por cima do cordão e chegou bem perto de sua residência. “O cordão não era daquela altura, o minério vai subindo junto com o alteamento e debaixo do rejeito tem água. Fico preocupada”, afirma, com toda razão.
Edson mudou-se, na década de 1980, com a família para o bairro Nova Vista quando tinha 9 anos de idade. Eles foram retirados da Camarinha, que virou mina da Vale depois que a comprou da Extracomil, uma empresa municipal que minerava por lá. “Se for preciso, mudamos de novo”, resigna-se.
Passeio
No bairro Bela Vista, Márcia Basilissa Ferreira Nascimento Lourenza levou a mãe, Júlia Ferreira Nascimento, 89, até o ponto de encontro na rotatória, na parte alta do bairro. E voltaram caminhando para casa, ao lado do Parque Belacamp, como se fosse um passeio.
“Minha mãe não ouviu a sirene e eu disse a ela que iriamos dar um passeio. Viemos devagar até para saber quanto tempo a gente iria gastar até o ponto de encontro.”
Demoraram quase uma hora. Daí que se ocorrer um acidente de verdade, a saída, diz a filha, será transportar a mãe em uma cadeira de rodas.
“Tomara que isso nunca venha acontecer”, diz Márcia Basilissa Lourenza, que achou importante a realização do simulado. “Na hora do aperto pode não adiantar nada a gente correr, mas pelo menos ficamos sabendo que o perigo existe.”
No supermercado do bairro, na rua Frederico de Souza, o pedreiro José Francisco Souza e Silva continuou fazendo as compras da semana. “Não acredito nesse tal de simulado. Se correr a lama pega, se ficar morre assim mesmo”, diz ele.
Souza e Silva afirma que o melhor mesmo é acabar com todas as barragens existentes na cidade. “Podiam pelo menos deixar uns laguinhos para a gente pescar, né?”, reivindicou, pegando na gondola de aço do supermercado uma garrafa da pura “caninha” para esquentar na noite fria, que ninguém é de ferro. Só a Vale.
O artigo demorou muito a chegar… interessante que as mulheres tem certeza de que não há outra Rota senão a mudança de todas as pessoas que correm o risco. O que a Vale dirá depois de ler estes depoimentos, o que dirá? E Mariana? E Brumadinho?
E a Prefeitura?
E a Cãmara?
E o Metabase?
Que ano foi esse simulado?
Neste ano, em 17 de agosto. http://viladeutopia.com.br/na-real-pelo-simulado-quase-ninguem-escaparia-da-lama-se-uma-barragem-rompesse-de-fato-e-nao-de-ficcao/